terça-feira, agosto 01, 2006

Marguerite Yourcenar

(Continuação)

Escapavam-se-lhe da boca sílabas sacudidas
como os últimos gorgolejos de uma fonte em agonia:
- As Nereidas... As damas... Nereidas... Be-
las... Nuas... Um portento... Loiras... Cabelos
todos loiros...Foram as únicas palavras que conseguiram
arrancar-lhe. Nos dias seguintes, por diversas
vezes o ouviram repetir baixinho para con-
sigo: "Cabelos loiros... loiros", como se afa-
gasse seda. Depois, mais nada. Os olhos dei-
xaram de brilhar, mas o olhar tornou-se vago
e fixo e adquiriu estranhas propriedades; con-
templa o sol sem pestanejar; talvez se com-
praza a fitar esse objecto tão esplendorosa-
mente loiro. Encontrava-me na aldeia durante
as primeiras semanas do seu delírio: nem fe-
bre, nem o menor sintoma de insolação ou de
um ataque. Os pais levaram-no a um mosteiro
célebre das redondezas para que fosse exor-
cizado: deixou-se conduzir com a brandura
de um cordeiro doente, mas nem as cerimó-
nias da Igreja, nem as fumigações de incenso,
nem os ritos mágicos das velhas da aldeia
conseguiram expulsar-lhe do sangue as loucas
ninfas da cor do sol. Os primeiros dias do seu
novo estado passaram-se num vaivém cons-
tante: voltava incansavelmente ao local onde
se dera a aparição; existe aàuma fonte onde
os pescadores vão por vezes abastecer-se
de água doce, um valezinho cavo, um campo
de figueiras com um carreiro que desce até ao mar.

(continua)

A Salvação de Wang-Fô
e outros Contos Orientais
Marguerite Yourcenar
Publicações D. Quixote

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