terça-feira, julho 31, 2007

segunda-feira, julho 30, 2007

Capas de Discos (1)


Panda Bear Person Pitch


Interpol Our Love To Admire


Antony and the Johnsons I Am A Bird Now



Autechre Amber

Informática

INFORMATIQUE

L’ordinateur en chansons

NOUVELOBS.COM | 25.07.2007 | 15:58

Vous avez oublié le nom de votre chanson favorite ? Pas de soucis, fredonnez l’air à votre ordinateur qui se chargera de trouver le titre et proposera même de vous la télécharger. Bien sûr, aujourd’hui c’est irréalisable mais la prochaine génération d’ordinateurs devrait le permettre.
Selon l’informaticienne australienne Sandra Uitdenbogerd, retrouver de la musique en chantant un petit air sera possible avec l’apparition des prochains logiciels de recherche, d’ici trois à quatre ans. Aujourd’hui, il reste encore pas mal de problèmes à régler mais la le développement s’accélère sous l’impulsion de certaines majors voyant là un moyen d’augmenter les ventes de chansons on-line.
Concrètement, ce type de prospection ne pourra pas s’effectuer sur un banal moteur de recherche mais nécessitera la connexion à un site web dédié disposant d’un certains nombre de morceaux stockés dans une base de données. Reste maintenant à résoudre le problème de la reconnaissance vocale.
Une chose et sure plus le demandeur chantera juste et plus la recherche sera courte. En effet, le logiciel s’emploiera à retrouver des suites de notes. Les paroles faciliteront également les tris et au final, l’utilisateur aura le choix entre quatre ou cinq propositions. Plusieurs obstacles bloquent encore le développement de ces outils.
Le principal étant le nombre impressionnant de morceaux devant être mémorisés dans les bases de données. Les informaticiens proposent de faire des sites regroupant une seule catégorie musicale (opéra, rock, jazz …) mais les systèmes de récupération fonctionneraient alors avec une gamme limitée de musique. L’autre possibilité est de faire des sites généralistes, dans ce cas le danger est alors de n’avoir que les airs les plus connus recensés.
L’autre problème concerne l’identification des notes, le logiciel doit être capable de différencier le bruit de fond pour le filtrer ou l’éliminer. Les influences extérieures peuvent, en effet, modifier la fréquence des notes que l’ordinateur tente de reconnaitre. Cette difficulté est en passe d’être résolue ce qui préfigure une arrivée imminente des premières versions d’essais.

J.I.
Sciences et Avenir.com
25/07/07

http://tempsreel.nouvelobs.com/actualites/sciences/technologies/20070725.OBS8166/lordinateur_en_chansons.html

segunda-feira, julho 23, 2007

ALLGARVE- Arte Contemporânea








Obras de vários artistas portugueses e estrangeiros
Fábrica da Cerveja - Faro
de 14 de Julho a 30 de Setembro
A exposição mostra-se em vários pontos do Algarve
Para mais informações consultar
www.visitportugal.com
www.visitalgarve.pt

Inez Wijnhorst



Inez Wijnhorst
Inside-Out
desenho
Casa das Artes de Tavira
21 de Julho a 10 de Agosto de 2007

http://www.inezwijnhorst.home.sapo.pt

domingo, julho 22, 2007

Miguel Esteves Cardoso

Enviaram-me este texto:

Miguel Esteves Cardoso

Primeiro, as verdades. O Norte é mais Português que Portugal . As minhotas são as raparigas mais bonitas do País. O Minho é a nossa província mais estragada e continua a ser a mais bela. As festas da Nossa Senhora da Agonia são as maiores e mais impressionantes que já se viram.

Viana do Castelo é uma cidade clara. Não esconde nada. Não há uma Viana secreta. Não há outra Viana do lado de lá. Em Viana do Castelo está tudo à vista. A luz mostra tudo o que há para ver. É uma cidade verde-branca. Verde-rio e verde-mar, mas branca. Em Agosto até o verde mais escuro, que se vê nas árvores antigas do Monte de Santa Luzia, parece tornar-se branco ao olhar. Até o granito das casas. Mais verdades. No Norte a comida é melhor. O vinho é melhor. O serviço é melhor. Os preços são mais baixos. Não é difícil entrar ao calhas numa taberna, comer muito bem e pagar uma ninharia. Estas são as verdades do Norte de Portugal. Mas há uma verdade maior. É que só o Norte existe. O Sul não existe. As partes mais bonitas de Portugal , o Alentejo, os Açores, a Madeira , Lisboa, et caetera, existem sozinhas. O Sul é solto. Não se junta. Não se diz que se é do Sul como se diz que se é do Norte. No Norte dizem-se e orgulham-se de se dizer nortenhos. Quem é que se identifica como sulista? No Norte, as pessoas falam mais no Norte do que todos os portugueses juntos falam de Portugal inteiro.

Os nortenhos não falam do Norte como se o Norte fosse um segundo país. Não haja enganos. Não falam do Norte para separá-lo de Portugal. Falam do Norte apenas para separá-lo do resto de Portugal . Para um nortenho, há o Norte e há o Resto. É a soma de um e de outro que constitui Portugal . Mas o Norte é onde Portugal começa. Depois do Norte , Portugal limita-se a continuar, a correr por ali abaixo. Deus nos livre, mas se se perdesse o resto do país e só ficasse o Norte , Portugal continuaria a existir. Como país inteiro. Pátria mesmo, por muito pequenina. No Norte. Em contrapartida, sem o Norte , Portugal seria uma mera região da Europa. Mais ou menos peninsular, ou insular. É esta a verdade. Lisboa é bonita e estranha mas é apenas uma cidade. O Alentejo é especial mas ibérico, a Madeira é encantadora mas inglesa e os Açores são um caso à parte.

Em qualquer caso, os lisboetas não falam nem no Centro nem no Sul - falam em Lisboa. Os alentejanos nem sequer falam do Algarve - falam do Alentejo. As ilhas falam em si mesmas e naquela entidade incompreensível a que chamam, qual hipermercado de mil misturadas, Continente.

No Norte, Portugal tira de si a sua ideia e ganha corpo. Está muito estragado, mas é um estragado português, semi-arrependido, como quem não quer a coisa. O Norte cheira a dinheiro e a alecrim. O asseio não é asséptico - cheira a cunhas, a conhecimentos e a arranjinho. Tem esse defeito e essa verdade. Em contrapartida, a conservação fantástica de (algum) Alentejo é impecável, porque os alentejanos são mais frios e conservadores (menos portugueses) nessas coisas.

O Norte é feminino. O Minho é uma menina. Tem a doçura agreste, a timidez insolente da mulher portuguesa. Como um brinco doirado que luz numa orelha pequenina, o Norte dá nas vistas sem se dar por isso.

As raparigas do Norte têm belezas perigosas, olhos verdes-impossí veis, daqueles em que os versos, desde o dia em que nascem, se põem a escrever-se sozinhos. Têm o ar de quem pertence a si própria. Andam de mãos nas ancas. Olham de frente. Pensam em tudo e dizem tudo o que pensam. Confiam, mas não dão confiança. Olho para as raparigas do meu país e acho-as bonitas e honradas, graciosas sem estarem para brincadeiras, bonitas sem serem belas, erguidas pelo nariz, seguras pelo queixo, aprumadas, mas sem vaidade. Acho-as verdadeiras. Acredito nelas. Gosto da vergonha delas, da maneira como coram quando se lhes fala e da maneira como podem puxar de um estalo ou de uma panela, quando se lhes falta ao respeito.

Gosto das pequeninas, com o cabelo puxado atrás das orelhas, e das velhas, de carrapito perfeito, que têm os olhos endurecidos de quem passou a vida a cuidar dos outros. Gosto dos brincos, dos sapatos, das saias. Gosto das burguesas, vestidas à maneira, de braço enlaçado nos homens. Fazem-me todas medo, na maneira calada como conduzem as cerimónias e os maridos, mas gosto delas. São mulheres que possuem; são mulheres que pertencem.

As mulheres do Norte deveriam mandar neste país. Têm o ar de que sabem o que estão a fazer. Em Viana, durante as festas, são as senhoras em toda a parte. Numa procissão, numa barraca de feira, numa taberna, são elas que decidem silenciosamente. Trabalham três vezes mais que os homens e não lhes dão importância especial. Só descomposturas, e mimos, e carinhos. O Norte é a nossa verdade. Ao princípio irritava-me que todos os nortenhos tivessem tanto orgulho no Norte, porque me parecia que o orgulho era aleatório. Gostavam do Norte só porque eram do Norte. Assim também eu. Ansiava por encontrar um nortenho que preferisse Coimbra ou o Algarve , da maneira que eu, lisboeta, prefiro o Norte. Afinal , Portugal é um caso muito sério e compete a cada português escolher, de cabeça fria e coração quente, os seus pedaços e pormenores.

Depois percebi. Os nortenhos, antes de nascer, já escolheram. Já nascem escolhidos. Não escolhem a terra onde nascem, seja Ponte de Lima ou Amarante, e apesar de as defenderem acerrimamente, põem acima dessas terras a terra maior que é o "O Norte". Defendem o "Norte" em Portugal como os Portugueses haviam de defender Portugal no mundo.

Este sacrifício colectivo, em que cada um adia a sua pertença particular - o nome da sua terrinha - para poder pertencer a uma terra maior, é comovente. No Porto, dizem que as pessoas de Viana são melhores do que as do Porto . Em Viana, dizem que as festas de Viana não são tão autênticas como as de Ponte de Lima .
Em Ponte de Lima dizem que a vila de Amarante ainda é mais bonita. O Norte não tem nome próprio. Se o tem não o diz. Quem sabe se é mais Minho ou Trás-os-Montes, se é litoral ou interior, português ou galego? Parece vago. Mas não é. Basta olhar para aquelas caras e para aquelas casas, para as árvores, para os muros, ouvir aquelas vozes, sentir aquelas mãos em cima de nós, com a terra a tremer de tanto tambor e o céu em fogo, para adivinhar.

O nome do Norte é Portugal . Portugal , como nome de terra, como nome de nós todos, é um nome do Norte. Não é só o nome do Porto . É a maneira que têm de dizer " Portugal " e "Portugueses". No Norte dizem-no a toda a hora, com a maior das naturalidades. Sem complexos e sem patrioteirismos. Como se fosse só um nome. Como "Norte". Como se fosse assim que chamassem uns pelos outros. Porque é que não é assim que nos chamamos todos?

in K, Nº 2, Novembro de 1990

__._,_.___

quinta-feira, julho 19, 2007

Al Berto

Última vontade

Não sei como começar a contar-lhe, caro leitor, o desaire que me afligiu há uns meses atrás, em pleno Verão lisboeta - quando andava mergulhado, até à medula, na Vida e Obra do Dr. Begónio Turreiro, romancista.
Precisava, mais do que nunca, de concentração e calma. Assim não acontecetu. Começei a ficar com os nervos num molho de brócolos ao aperceber-me de que fora um erro, um grave erro aceitar escrever a biografia do dito Begónio. Ainda por cima, a pouco e pouco, descobrira que a vida e obra do Begónio eram duma nulidade confrangedora.

Arrependi-me mil vezes de o ter feito, claro. Mas, a verdade é que, na altura, as finanças estavam nas lonas, além de poder assinar a obra com um pseudónimo. Ninguém daria por isso, ou não vivêssemos num país de pseudónimos.

Deixemos isto, que não tem especial interesse para o desenrolar dos acontecimentos, e peço-lhe, caro leitor, que regresse comigo àquela noite do defunto mês de Agosto.

Lisboa dormitava debaixo de um calor húmido, peganhento. Eu estivera a trabalhar na biografia até altas horas, sem grandes resultados. Bebera café e mais café para me manter acordado e minimamente lúcido - embora o sono e o cansaço já me fechassem os olhos. O que me apetecia, a sério, era sair e ir ao Frágil beber uma cerveja. Mantive- me firme, apesar de, uma vez mais, ter chegado à conclusão que a biografia não andava nem desandava. Uma coisa sem jeito nem trambelho. E a cerveja continuava a fazer-me crescer a sede. Mas resisti.

Pelas quatro da manhã atirei com a papelada para um canto e fui deitar-me com a cerveja atravessada no pensamento.

Dormi mal, lembro-me, em sobressalto. Transpirei muito. E no dia seguinte levantei-me com a cabeça a latejar - como convém a um honesto escritor de biografias.

Arrastara-me para fora da cama como quem se levanta da tumba. Olhara as folhas escritas, com asco. Doía-me o ombro direito. Uma dor aguda e intermitente.

Estremunhado, fui abrir a janela e tive, nesse preciso instante, um pensamento singular: "Esta dor no ombro... vai crescer-me, aqui, uma asa."

Abanei violentamente a cabeça e sorri. Dirigi-me para a casa de banho. De repente, sussurrei comigo mesmo: "Estás a passar-te. Uma asa?" Meti-me na banheira. Ali permaneci duas horas em estado de entorpecimento total, enfiado na água até ao queixo.

A dor sumiu-se, e com ela a derradeira esperança de alguma vez me crescer uma asa. Saltei do banho depois da água se ter escoado por completo.

Foi quando tocaram à porta.

Primeiro ouvi a campainha retinir dentro de mim, como um estremecimento de sangue. Pensei que estava doente, mas, logo de seguida, mais três campainhadas fizeram-me vestir o roupão e correr para a porta.


Abri a porta com um esticão.

O carteiro, o Sr. Rebite Neves, estendeu-me umas quantas cartas e uma encomenda. Esboçou um esgar que pretendia ser um sorriso amável, tartamudeou qualquer coisa sobre o calor e o lixo que se acumulara com a greve e desapareceu.

Meti as cartas na algibeira do roupão. Fechei a porta devagarinho. Verifiquei que a encomenda era enviada pela minha irmã.

Quando voltei à casa de banho, para acabar de me barbear e vestir, atirei as cartas e a encomenda para cima da mesa.


Comi qualquer coisita. Não tinha fome. Nunca tenho fome quando acabo de me levantar, e ainda por cima com aquele calor... só me apetecia café e cigarros, muitos cigarros.

Depois, sentei-me perto da janela aberta.

Lisboa recortava-se, como um cenário de filme, contra o verde sujo do rio.

Resolvi, então, abrir a correspondência.

Nenhuma surpresa. Dois convites para exposições, uma de pintura e outra de fotografia. Uma carta do Zé Tolas a dizer que estava na Zambujeira - e eu aqui, com este calor! - a passar uns dias e que o ambiente era bué de fixe e pim e blá-blá e etc. prà carola no Clube da Praia e no Fresco, mais umas quecas...

Abri, com vagar, a encomenda da minha irmã. Era uma caixa de tabaco para cachimbo Flying Man, e uma carta. Pus a carta de lado e andei, excitadíssimo, pela casa toda, abrindo e fechando gavetas, à procura do cachimbo.

Encontrei-o, por fim, debaixo de uns bilhetes postais e mais tranquitana sem nome. Enchi-o e fumei, deliciado. O tabaco picou-me a garganta. Não me importei, era a falta de hábito. Há muito que deixara de fumar cachimbo e passara aos três maços de Suave filtro.

Voltei a sentar-me perto da janela, esfumaçando, e abri o último envelope. Uma carta que eu escrevera à Teresa, e vinha devolvida, não sei bem porquê. A Teresa, que eu soubesse, não tinha mudado de casa e o endereço estava correcto.

Ela tinha-me pedido, pelo telefone, que a ajudasse a organizar a casa. Dissera que não percebia nada de tarefas domésticas, nem sentia qualquer vocação para dona de casa. Resolvi enviar-lhe, na altura, o plano que se segue:

Serviço Doméstico / Horário e Funções

Manhã: Pôr a mesa para o pequeno-almoço e servi-lo. Dar de comer e água às galinhas. Pôr a cozer a carne do Conon. Tirar a roupa da máquina de lavar e pô-la a secar, semrpe do avesso. Arrumar os quartos: limpar o pó, fazer a cama, aspirar, despejar cinzeiros. Limpar a casa de banho. Fazer o almoço e servi-lo.

Atenção: As camisas devem ser postas a secar na marquise, em cabides, sempre do avesso.

Tarde: Lavar a loiça e arrumar a cozinha. Passar a ferro. Varrer o terraço, as escadas e a entrada. Arrumar e aspirar: salas de jantar e estar, hall, e corredores. Limpar o pó: mesas, cadeiras, estantes, armários, parapeitos, chaminés, rodapés, maples, sofás.

Engraxar os sapatos.

Periodicamente: Encerar 1 vez por mês (não esquecer de tirar os tapetes, carpetes e passadeiras). Lavar os vidros de 15 em 15 dias. Regar as flores dos vasos e floreiras das janelas 1 vez por semana. Lavar as jarras de flores às sextas-feiras. Limpar as teias de aranha 1 vez por mês, ou de 15 em 15 dias, em toda a casa, incluindo entrada, marquise e terraço. Lavar a marquise e limpar parapeitos de 15 em 15 dias.

Limpeza geral à cozinha 1 vez por mês.

Observações: Verificar se não fica roupa lá fora, ao anoitecer. Fechar portas e janelas. Apagar as luzes. Deixar a lareira acesa nos meses de Inverno. Quando há visitas, deixar a mesa posta para o jantar ou para o pequeno-almoço.


Ainda hoje acho que a Teresa não gostou do meu plano. Se calhar, foi por isso mesmo que o devolveu. Nunca o saberei, não voltámos a falar do assunto. Mas, pelo que sei, continua a viver numa grande desorganização... é lá com ela! Enquanto relia a carta da Teresa continuara a encher o cachimbo e a fumar. O tabaco ainda me picava na garganta, mas agora com menos intensidade. De qualquer maneira, tinha sido uma óptima ideia a minha irmã ter mandado a caixa de Flying Man. É que, por instantes, vieram- me à cabeça os mais disparatados acontecimentos da minha adolescência.

Entre muitos, recordo aquele em que o cachimbo tinha sido uma mania. Tinha dezasseis anos, queria ser escritor. Achava que o cachimbo me dava um ar sério, circunspecto, altivo. Mas veio o dia em que me fartei daquela gergonça sempre pendurada na boca e desatei a fumar cigarros - o que não me impediu de realizar aquele desejo adolescente e de me encontrar na triste situação em que me encontro: biógrafo de gente sem tempero.

Lembrara-me, também, daquela vez que a Tininha Albuquerque quis beijar-me e eu, num desatino, me esquecera de tirar o cachimbo.

Resultado: uma atrapalhação. Brasas, cabelos de Albuquerque chamuscados, guinchos da Tininha... enfim, o namoro acabado. E ainda bem. Nunca gostei muito da Tininha.


Vi a carta, por abrir, da minha irmã. Senti um prazer especial em não a ler, em não saber ainda o que ela me contava. Recostei-me na cadeira, enchi outra vez o cachimbo e fumei o resto da manhã, com Lisboa nos olhos e a memória agitada por longínquas aventuras adolescentes.

Por volta das duas da tarde recomecei a trabalhar na biografia do Begónio.

Interrompi, a dado momento, o que estava a escrever para consultar o caderno de notas. Abri-o e li: "(...) coitado do Begónio, a úlcera não lhe dá descanso, não o larga - como ele também não larga o boné de basebol vermelho que enterra na cabeça, como um tonto, até ao nariz. Talvez pense que o boné lhe dá um ar suficientemente moderno, ou coisa assim. O Begónio anda a redigir um romance erótico O Pinguim Cor-de-Rosa."

Fechei o caderno, nauseado. Francamente, onde é que eu estava metido? O Pinguim Cor-de-Rosa? Valha-me São Freud...

Tentei serenar o ânimo. Depois, subitamente, ocorreu-me ter anotado umas quantas frases que ouvira a um amigo íntimo do biografado. Pensei que talvez me ajudassem. Procurei-as e logo me arrependi de as ter encontrado: "O Begónio arrasta de proa, abava a palhinha. O maricas afrancesado e..."

Desisti. Larguei a canenta e o caderno de notas, empurrei tudo para longe da minha vista e fui a correr buscar mais café.

Agarrei na carta da minha irmã, mas não a abri. Enchi o cachimbo. Deviam ser quatro, quatro e meia da tarde.

Lisboa turvava-se com a neblina azulada que subia do rio. Fiquei de chávena na mão, um tempo sem fim. E fui pensando coisas horríveis, formas de abate, sobre o estuporado do Begónio. Amaldiçoei-o a meia voz, como se rezasse. Por fim, encolhi os ombros. Fumei, bebi café, enquanto Lisboa se acendia ao lusco-fusco. De repente, pensei que a melhor forma de abater o Begónio era desistir da biografia encomendada. Foi o que fiz.


Mas voltemos ao que interessa. Naquele fatídico dia de Agosto ninguém me visitara, ninguém telefonara. Pelas sete e meia saí para jantar. Mas voltei para casa, logo a seguir, com a firme intenção de fazer a última tentativa para escrever a biografia.

Só consegui fumar e espiar, de vez em quando, a carta por abrir. Quando percebi que tinha fumado o Flying Man todo andei, deseperado, à procura de cigarros. Atirei de vez com a biografia para o cesto dos papéis. Acendi um cigarro. Instalei-me comodamente no sofá, ao fundo da sala. Abri a carta da minha irmã que passo a ler-vos, agora, em voz alta:


Meu querido irmão,

Encontrei esta caixa de Flying Man e pensei que gostarias de a ter. Estava na arrecadação, dentro duma mala com livros. No sótão, onde arrumaste tudo o que era teu antes de partires para Lisboa. Meteste-a na mala, de certeza, quando deixaste de fumar cachimbo, depois daquela cena com a Tininha Albuquerque. Lembras-te?

Por aqui as coisas vão andando mais ou menos. A mãe tem estado benzinho, e as tias estão, é claro, cada vez mais velhas. Parecem ter-se perdido numa idade sem algarismos, só de rugas. Lá continuam a roer as mesmas bolachas e a ir, aos domingos, ao cemitério. Fazem renda e remendam toalhas e lençóis, como sempre fizeram, para matar o tempo.

E agora o pior, querido irmão.

O pai, como sabias, andava muito mal. Não te quis dizer nada, para não te preocupar. Aí, tão longe, de qualquer modo, nada podias remediar.

O pai morreu na madrugada do dia 2 de Julho último. Morreu serenamente, lúcido até ao último segundo.

Como deves saber, exigiu que fosse cremado. Ele já te tinha falado nessa sua última vontade.

Lá andámos aflitas, eu e a mão, para conseguir a autorização. Tudo se resolveu sem grandes sobressaltos. Enfim, as tias é que ficaram muito impressionadas e, também, desgostosas. Para elas foi uma sepultura a menos para visitar.

Uma tarde desta semana abrimos o testamento. Nada de especial, o pai não tinha grande coisa. Estivemos todas reunidas para o acto e elas voltaram a desfazer-se em lágrimas.

Passo por cima dos detalhes e excessivas minúcias do testamento que, quando vieres de férias, tu mesmo verás. No entanto, anexo ao testamento havia uma pequena lista de últimas vontades. Tentámos cumpri-las com rigor. De resto, nada que não se pudesse executar.

Numa delas, o pai queria que fosses tu a guardar as suas cinzas. És o primogénito. notura, pediu que se continuasse a pôr, diariamente, a cadeira de baloiço debaixo da palmeira, perto do terraço, onde ele se sentava ao entardecer. Enfim, assim temos feito todos os dias.

Quanto às suas cinzas - quase me esquecia de te dizer -, como ia mandar-te a caixa de Flying Man aproveitei e misturei-as com o tabaco. Guarda-as preciosamente, o pai era um homem bom.

Beija-te, saudosa, tua irmã

Mila


Al Berto, O Esconderijo do Homem Triste, "VER", Círculo
de Leitores, Lisboa, Primavera 1992, N' 18, pp. 62-63