domingo, julho 30, 2006

Cees Noteboom

A poesia não pode tratar de mim,
nem eu da poesia.
Estou só, o poema está só,
o resto é dos vermes.
Estava à beira das ruas onde moram as palavras,
livros, cartas, notícias,
e esperava.
Sempre esperei.

As palavras, em forma claras ou escuras,
transformavam-se em alguém escuro ou mais claro.
Poemas passam por mim
e reconheciam-me como coisa.
Via-o e via-me.

Esta escravidão não tem fim.
Esquadrões de poemas procuram os seus poetas.
Vão errando sem comando pelo grande distrito das palavras
e esperam o engodo da sua forma
feita, perfeita, fechada,
concentrada e

intangível.


Cees Noteboom Engodo
UMA MIGALHA NA SAIA DO UNIVERSO
Antologia de Poesia Neerlandesa.

Carlos Couto Sequeira Costa

Matéria Escura

Mas que serei eu afinal?, senão um piano
ciclotímico cheio de nervos hirtos e
mais neurónios e sinapses flutuantes
sem placenta para aderir.
Em tempos, tive a minha placenta, um
deus que é mãe. Julguei viver, mas não.
Ela escrevia-me do Floriano, longas
cartas, longamente, às vezes com aqueles
postais venezianos do Longhi.
Ela tinha a postura sage da Madona
deTorcello, foi sempre assim.
Mas como acalmar um "nuagiste" como eu?
Ela tinha um condão. O dom.
Ela escrevia-me então, recitando a sua
prosa preferida e tentando definir,
melancolicamente "...O estranho estado
que é o de toda a existência, onde tudo
flui como a água que escorre, mas onde
somente os factos que pesaram, em vez de
se depositarem no fundo, emergem à
superfície e ganham connosco o mar".
Ela adorava o fluir e as coisas estranhas,
como que forçava o acontecimento de
coisas estranhas, encantadas, não sei,
envolvia tudo numa aura, diafanizava com
a memória, seria ela a própria
Mnémosyne ?,
matéria escura.Tentámos juntos recomeçar tudo, subir ao
paraíso da lua, um rimanço a dois que a
razão, pobre razão, desconhece.
Mas os espíritos e os maus fados
contaminaram a cidade e hoje paira ainda
um vento, gélido e sibilino, funesto, aquele
vapor sombrio do ser, por cima da industriosa
noite, a avisar então que nada ocorreu, foi
tudo ficção, ou que o Nada passou por ali,
e se estabeleceu.

Carlos Couto Sequeira Costa
Notebooks
Fenda

As Mulheres Afegãs

31

Apenas te cedi o privilégio da minha boca
Não procures em vão desatar o meu cinto.

32

Mete docemente a tua mão pelas minhas mangas acima
As romãs de Kandahar floresceram e já estão maduras.

33

As minhas calças cor de fogo deslizam pelas minhas coxas
O meu coração diz-me que virás hoje à noite ou amanhã.

34

Meu Deus, que fazes tu de mim?
As outras são flores desabrochadas e tu deixas-me em botão.

35

Vem, amado meu, vem depressa para junto de mim!
O “horrivel pirralho” dormita e tu podes beijar-me.

36

Ó infeliz, porque não vieste ontem à noite?
Fiquei a pé a noite inteira à tua espera

A Voz Secreta das Mulheres Afegãs
O Suicídio e o Canto
Versão de Ana Hatherly
cavalo de ferro

Amadeu Baptista

Olho nos olhos o anjo
que me persegue.
A neblina oculta-o
nos ares
e na minha alma.
Pressinto-o como uma ave.
Por onde passa
transforma as sombras
em pedras incandescentes,
a luz da sua voz
penetra-me docemente.
De noite é o engano.
Vibra a espada na treva,
toca-me o coração,
quer a minha cabeça.
Ele diz: - Eu sou a sombra de um grito.
Rendo-me ao sortilégio
do brilho aniquilador
e rasgo as minhas asas
nas penas desse brilho.
E sou a neblina.
E choro nessa voz.


Amadeu Baptista
As Tentações
Edição O Mirante

Lisboa

sexta-feira, julho 21, 2006

Marguerite Yourcenar

(Continuação)

Ora, certa manhã de Julho, houve dois carneiros do pai
de Panegyotis que começaram a andar de roda.
A epidemia não tardou a alastrar às mais be-
las reses do rebanho e o quadrado de terra
batida defronte à casa transformou-se rapi-
damente num pátio para asilar o gado que en-
louquecera. Panegyotis fez-se sozinho à es-
trada, quando o calor apertava, em pleno sol,
em demanda do veterinário que vive na outra
encosta do Monte Santo Elias, numa aldeola
alapada à beira-mar. Pelo sol-pôr ainda não
voltara. A aflição do pai de Panegyotis mudou-
-se dos carneiros para o filho; em vão se ba-
teram os campos e os vales das redondezas;
durante toda a noite as mulheres da família
rezaram na capela da aldeia, que não passa
de um celeiro alumiado por duas dúzias de ve-
las, onde se diria a todo o momento que Ma-
ria vai entrar para deitar Jesus ao mundo. No
dia seguinte, pela tardinha, à hora do des-
canso em que os homens abancam na praça
da aldeia frente a uma minúscula chávena de
café, a um copo de água ou a uma colherada
de compota, viu-se aparecer um Panegyotis
novo, tão diferente como se tivesse passado
pela morte. Tinha os olhos resplandecentes,
mas dir-se-ia que a córnea e a pupila haviam
devorado a íris; nem dois meses de malária o
deixariam tão amarelo; um sorriso um tanto
repulsivo deformava-lhe os lábios, que já não
articulavam palavra alguma. Porém, não es-
tava ainda completamente mudo

(continua)


A Salvação de Wang-Fô
e outros Contos Orientais
Marguerite Yourcenar
Publicações D. Quixote

Joana Garrido


http://www.joanagarrido.com/photoblog/
http://www.joanagarrido.com/index_e.htm

quarta-feira, julho 19, 2006



Flores de VerĂŁo

Zhuang Zi

Não sejas o depositário de um nome

-Não sejas o guardião dos teus projectos
Não tomes nada ao teu encargo.
Não sejas detentor da sabedoria.
- Realiza-te no ilimitado.
Caminha por carreiros sem rasto
-Aceita inteiramente o dom do Céu,
sem presumires de tê-lo obtido.
- Sê tu mesmo o vazio: isso é tudo e basta.
O Homem supremo usa o coração como um espelho:
- nada lança, nada acolhe.
- reflecte sem com nada ficar.
Por isso conquista os seres
-sem sofrer dano algum.
-o imperador do Mar do Sul chamava-se Repente.
O imperador do Mar do Norte chamava-se Fúria.
- e o imperador do Centro chamava-se Caos.
- Repente e Fúria reuniam-se às vezes no reino de Caos.
Este tratava-os com tanta bondade
-que Repente e Fúria decidiram recompensá-lo
e disseram:-"Todos os homens têm sete ofícios
para ver, escutar, comer e respirar.
- Só ele não tem nenhum.
Vamos fazer-lhes nós mesmos!”
- Abriram-lhe um orifício cada dia:
- porém ao sétimo, Caos morreu.


Zhuang Zi

domingo, julho 16, 2006

Maçãs

Profecia


Profecia de um mouro de Granada (1510)

Lá para tempos vindouros
grandes festas se verão,
pasmarão as gentes todas
com grande admiração.

Porém não naquele reino
que por Deus foi escolhido;
será esse vencedor,
vencedor e não vencido.

Não te assustarás de o ver
espezinhado e cativo,
por causa daquele rei
que fazem morto e é vivo.

A Europa amotinada
andará toda inquieta;
oprimida de tal ver,
andará de boca aberta.

As gentes se temerão
da infernal gália gente,
que vive sem lei nem rei
e toda impenitente.

Nesse reino desgraçado
que despreza Deus e lei,
se verá, ou eu me engano,
matarem o próprio rei.

Isto que que eu digo é verdade
e assim há-de acontecer,
o matarem-se uns aos outros,
porque Deus assim o quer.

Depois há-de saquear
da Europa muita parte,
usando do grande engano,
pra tudo tem jeito e arte.

Tempos hão-de vir de lá,
lá para os anos futuros,
em que a gente lusitana
levantará os seus muros.

Há-de logo destruir
toda essa gente infernal,
só ela e mais ninguém
há-de punir todo o mal.

Isto que digo há-de ser,
segundo tenho entendido,
da Lusa, Gália e Leão,
o seu reino prometido.

Ao grande rei lusitano
que por Deus foi escolhido,
o que foi manifestado
há-de ser acontecido.

A ele foi prometida
a quinta coroa imperial,
e a todo o seu descendente
que fosse na fé leal.

Lá além numa ilha
onde Deus o quer guardar,
De lá mesmo ele há-de vir
segunda vez a reinar.

E dentro das cinco quinas,
quem bem souber contar,
quando isto acontecer,
elas o hão-de mostrar.

Quando isto muitos lerem,
disto muitos zombarão,
mas quando virem que é certo
que não minto saberão.

Todo o poder do mundo
com ele combaterá
e toda la redondeza
ao seu fogo arderá.

E se quiserem saber
quando isto há-de acontecer,
repara nas cinco quinas
que a Portugal dão o ser.

Nelas com toda a verdade
saberás o tempo certo,
em que bem fácil dará
todo aquele que for esperto.

Se quiseres saber o tempo
em que isto há-de acontecer:
quando em Portugal reinar,
em lugar de homem, mulher.

A vinda do lusitano
pouco depois tardará:
virá o Rei Encoberto
que ao mundo leis dará.

Na era de sete e dois,
mais cinco, quatro e três,
feliz de ti, Portugal,
que então de certo o vês.

Todos hão-de se alegrar,
sentindo novo conforto,
vendo entrar em Portugal
vivo quem julgavam morto.

Aqui tens, ó Portugal,
toda a gente a ti rendida,
e a coroa imperial
lá na África perdida.


ALMANAQUE
fantástico
cómico
científico
realizado por Manuel João Gomes
Lisboa MCMLXXVII
colecção meia-noite
arcádia

sábado, julho 15, 2006

Sem pretensões a entrar no clube dos poetas vivos ou mortos

os eventuais meninos perdidos
vagueiam

vagueiam entre vários mundos
de olhos fechados

os corpos abandonam-se
eventualmente

os corpos dos meninos
eventualmente

perdidos entre limbos e
infernos

são sombras opacos nos
nossos olhos

as sombras opacas dos
meninos perdidos

apunhalam os nossos olhos
eventualmente

m.f.s.


conta-me histórias de terror
das que arrepiam as articulações
histórias às cores fantasmagóricas
com suaves ectoplasmas
com muito ketchup
negrumes pelos cantos
e abismos

conta-me histórias de plástico
americano com perucas perfuradas
babas luminescentes
suspensas nas teias
pré-fabricadas
vítimas deliciadas
carrascos amedrontados

conta-me a versão revista e ampliada
da menina de capuz
sanguinolento
dentes de loba
adolescente
vestidinho de boneca
assassina
diz-me como foi
que ela conseguiu
escapar à feroz avozinha

conta-me tudo
com muitos pormenores
não te enganes na sequência
que te farei repetir tudo
até o arrepio voltar


m.f.s.

Operação resgate da Flor



Esta flor foi salva do calor do super-mercado...e gostou, está mais viçosa.

valter hugo mãe

poema da obsessão

para a carla gonçalves

os dragões chineses, nos sonhos dela, eram mais perigo-
sos do que um avião caindo. assim, quando o avião caiu,
entrou em combustão e ela só se lembrava dos dragões.
saltou porta fora sem mais nada, e enquanto caía, antes de
se desmanchar no chão, olhou para trás vezes sem conta,
apavorada a ver se algum bicho em brados de fogo a per-
seguia


valter hugo mãe
livro de maldições
objecto cardíaco

valter hugo mãe

poema sobre o peito que sonhava filhos

para o josé félix duque

àquele homem saíam-lhe crianças do peito. encostava-se
de socorro ao muro e não dizia nada. os seus olhos de infe-
licidade viam-nas partir. mas um dia, contava, teria um fi-
lho, um filho que ficasse. e as mulheres abeiravam-se dele
para lhe explicarem a maternidade e ele nada escutava.
porque, ao longe, as crianças do seu peito faziam traves-
suras parecidas às dos filhos e, de tempos a tempos, uma
delas vinha mais perto. ele não resistia a sentir esperança.
já o coração falhava de tanto acreditar. e as mulheres colo-
cavam-se entre ele e os estranhos seres, e o homem seguia
o seu caminho entre as sombras como promessa de mãe


valter hugo mãe
livro de maldições
objecto cardíaco

valter hugo mãe

poema sobre a bondade

para o akira rabelais

O homem mais adúltero da terra morreu muito velho e sem
erecção. podia apenas lembrar-se de como fora, mas as
mulheres, a dele e as outras, passavam-lhe perto, não fosse
dar-lhe um bom sobressalto, qualquer coisa que o pusesse
nelas. nem todos acreditavam, mas elas sabiam o quanto
lhes advinha de bondade e pacificação no acto sexual com
ele. por isso, aquelas mulheres eram as mais precisas na
sociedade. cozinhavam para os doentes, limpavam as ruas
e protestavam contra a injustiça. quando uma morria, as
outras ajoelhavam-se e erguiam os braços em oração como
se lhe depusessem a alma no colo das nuvens


valter hugo mãe
livro de maldições
objecto cardíaco

Francisco José Viegas

Diriam de nós

Diriam de nós que seríamos felizes para sempre.
Isso dizem como se fosse segredo. Mas
por vezes apetece ceder ao rumor
incessante do mar, a essas vozes,
ao que fica momentaneamente suspenso do fio
das roseiras. Diriam de nós,

ao verem-nos adormecer, que estamos
felizes para sempre. Mas quase não se vê essa luz intensa
nem os instantes que demorámos, eu e tu, e assim
pela primeira vez te chamo meu amor, a trocar os dedos
entre nós. A água volta à água no seu movimento inicial,
o Inverno vai regressar, isso dizem também olhando
o que de outro modo olhamos. Diriam
que seremos felizes para sempre, enquanto dizem.


Francisco José Viegas
metade da vida
edições quasi

Luiza Neto Jorge



2. O SEU A SEU TEMPO: LUIZA NETO JORGE SEGUNDO
EUCANAÁ FERRAZ

RUA DO MUNDO

Onde morou a Luiza.
Passei por ela, a rua, muitas vezes.
Chama-se agora "da Misericórdia"
e sabe de cor seu caminho

que desce à beira do rio
no alto de um ramo de alecrim,
como um Tejo miúdo, todo de pedras
e seu aluvião de pastelarias, alfarrabistas.

O cano que rebentou junto ao passeio,
sim, se calhar
inda não foi consertado,
que as coisas são lentas.

Chama-se agora "da Misericórdia"
a antiga Rua do Mundo.
Era talvez pequena
para nome tão afastadamente,

para a Terra toda e os astros,
mas Luiza era um corpo celeste
a vigiar o andamento, o ruído,
o silêncio, o istmo,

as variações possíveis,
imprevistas, o sangue,
a asa, o sal inesgotável
do vário, o jogo.

Rua do Mundo fora,
de seres que se queimavam à luz.
Rua do mundo sensível
onde Luiza metia o nariz.

Abarcar o mundo com as pernas,
afundar no poema, cair
no mundo, ganhar mundos,
fundos nenhuns, perder.

Era uma rua qualquer, mas
a chuva sabia seu nome, bem como
os males irremediáveis, as ventanias,
os alvoroços de verão, os insetos.

Mesmo a felicidade tantas vezes
desceu e subiu tal qual uma vaga
desordenada, descalça, as pedras
daquela via sem reis nem padres.

Os sábados enchiam as calçadas de pernas.
Luiza ouvia o fragor. Os telhados ruíam.
Luiza ouvia os cacos, cada um.
A rua frágil, a palavra disparada.

Já não se chama "do Mundo".
É agora "Rua da Misericórdia".
Já não é a vastidão do orbe,
mas, de joelhos, ora pro nobis.

O sol vinha reto varar a janela
da louca que atravessara
a noite à procura do verso
mais irritado, mais de si.

Do punhal ali, rente aos olhos,
ao fígado, ao coração, a mulher sabia
que só uma palavra a salvaria:
misericómia. Não pediria?

De longe, era possível ouvir um grito
(mas talvez fosse apenas eu) a pedir compaixão.
Mas era menos para ela que para o mundo,
menos para ela que para a rua do.


Eucanaã Ferraz
relâmpago
Revista de Poesia
n.º 18 42006

Luiza Neto Jorge



A CABEÇA EM AMBULÂNCIA

Há feridas cíclicas há violentos voos
dentro de câmaras de ar curvas
feridas que se pensam de noite
e rebentam pela manhã

ou que de noite se abrem
e pela amanhã são pensadas
com todos os pensamentos
que os órgãos são hábeis
em inventar como pensos

ligaduras capacetes
sacramentos
com que se prende a cabeça
quando ela se nos afasta

quando ela nos pressente
em síncope ou desnudamento
ou num erro mais espaçoso
ou numa letra mais muda
ou na sala de tortura
na sala escura,
de infância.


Luiza Neto Jorge
O seu a seu tempo
poesia
organização e prefácio de
Fernando Cabral Martins
Assírio & Alvim
2ª edição
2001

quarta-feira, julho 12, 2006

Fiama Hasse Pais Brandão

EPÍSTOLA PARA OS MEUS MEDOS

Sois: os sons roucos, a espera vã, uma perdida imagem.
O coração suspende o seu hálito e os lábios tremem
sinto-vos, vindes ao rés da terra, como ventos baixos,
poisais no peitoril. Sois muito antigos e jovens,
da infância em que por vós chorava encostada a um rosto.
Que saudade eu tenho, ó escuridão no poço,
ó rastejar de víboras nos caniços, ó vespa
que, como eu, degustaste o figo úbere.
Depois, mundo maior foi a presença e a ausência,
a alegria e as dores de outros que não eu.
E um dia, no alto da catedral de Gaudí,
chorei de horror da Queda, como os caídos anjos.


Fiama Hassa Pais Brandão
Epístolas e Memorandos
Relógio d'Água
1996



URBANIZAÇÃO


Tudo o que vivêramos
um dia fundiu-se
com o que estava
a ser vivido.
Não na memória
mas no puro espaço
dos cinco sentidos.
Havíamos estado no mundo, raso,
um campo vazio de tojo seco.

Depois, alguém
urbanizou o vazio,
e havia casas e habitantes
sobre o tojo. E eu,
que estivera sempre presente,
vi a dupla configuração de um campo,
ou a sós em silêncio
ou narrando esse meu ver.


Fiama Hasse Pais Brandão
As Fábulas
edições quasi

segunda-feira, julho 10, 2006

Manuel de Freitas

QUANDO SÓS À BOLEIA DO CREPÚSCULO

[para o Fernando Guerreiro]

Não mais a literatura, os seus
fúteis e imperiosos desígnios- julgamos dizer, insistindo
numa ourivesaria do terror
e em gestos que sabem o quanto
chegam tarde. Quando sós,
à boleia do crepúsculo, dizemos
coisas assim, mentimos como
s dentes todos que não temos.

E a mentira (a literatura)
é ainda a improvável derrota
de que não nos salvaremos
nunca. Tão igual à vida, portanto:
pouso o copo, recupero o fôlego,
fumo uma silepse. Sei que vou morrer.

E isso que - talvez - nos diz
é uma evidência que escurece
(tivemos por amigo o desconforto).

Quanto ao mais, vamos andando.
Casados ou sozinhos. Mortos.


Manuel de Freitas
[SIC]
poesia inédita portuguesa
Assírio & Alvim

Flor de plástico

Gerrit Komrij

Niets dan droesem, niets dan draf


We zaten samen in een oud kasteel.
Het had geen vloeren en geen dak. Geen muur.
So what? Kastelen zeiden ons niet veel.
Het was een halfvervallen boerenschuur.

We hadden al die tijd een goed gesprek.
Niets van belang. De politiek, het weer.
De liefde? Ja, daar waren we mooi gek.
Het waren borrelpraatjes en niets meer.

We dronken poëzie uit een karaf
Van het goedkoopste glas. Niet van kristal.
De inhoud? Niets dan droesem. Niets dan draf
Het was een poëzie van niemendal.



Gerrit Komrij
Contrabando
uma antologia poética
Tradução do neerlandês de Fernando Venâncio
Assírio & Alvim



Nada, só borras, só fundo.

Vivíamos os dois num velho palacete.
Sem chão nem tecto. De paredes nada.
So what? Palacetes diziam-nos pouco.
Era uma granja meio desmoronada.

Fazíamos sempre grandes conversas.
Nada importante. A política, o tempo.
O amor? Tá bom, íamos nós lá nisso!
Cavaco de café, um passatempo.

Bebíamos poesia dum jarro.
Nada de cristais. Um copo marado.
Conteúdo? Nada, só borras, só fundo.
Era uma poesia de tostão furado.


Gerrit Komrij
Contrabando
uma antologia poética
Tradução do neerlandês de Fernando Venâncio
Assírio & Alvim

sábado, julho 08, 2006

Marguerite Yourcenar

O homem que amou as sereias

(Continuação)

Os nossos fantasmas não se assemelham aos
vossos espectros do Norte, que saem só à
meia-noite e se abrigam de dia nos cemitérios.
Não se dão ao cuidado de se cobrirem com
lençóis e têm o esqueleto coberto de carne.
Mas são talvez mais perigosos do que as al-
mas dos mortos que, pelo menos, foram bap-
tizados, conheceram a vida, souberam o que
era sofrer. Essas Nereidas dos nossos campos
são inocentes e más como a natureza, que ora
protege o homem ora o destrói. Os deuses e
as deusas antigos morreram mesmo, e os mu-
seus apenas encerram os seus cadáveres de
mármore. As nossas ninfas assemelham-se
mais às vossas fadas do que à imagem que de-
las fazeis segundo Praxíteles. Mas o nosso
povo crê nos seus poderes; elas existem como
a terra, a água e o perigoso sol. Nelas, a luz
do Verão faz-se carne, e por isso a sua vista
provoca a vertigem e o espanto. Apenas saem
à hora trágica do meio-dia; estão como que
imersas no mistério da luz mais plena. Se os
camponeses trancam as portas das suas casas
antes de se deitarem para a sesta, não é para
se protegerem do sol, mas delas; estas fadas
realmente fatais mostram-se belas, refres-
cantes e nefastas como a água em que se be-
bem os germes da febre; aqueles que as viram
consomem-se lentamente no langor e no de-
sejo; aqueles que tiveram a ousadia de se
aproximar ficam mudos para toda a vida, pois
que os segredos do seu amor não hão-de ser
revelados ao comum dos mortais.
 
(continua)


A Salvação de Wang-Fô
e outros Contos Orientais
Marguerite Yourcenar
Publicações D. Quixote

Evangelho de Judas

Visão de Judas da grande casa

Judas disse: “Mestre,
da maneira como escutaste a todos,
escuta-me, agora, a mim, pois tive
uma grande visão (horoma)”, Jesus,
ao ouvi-lo, riu-se e
disse-lhe: “Por que te esforças (gymnazein)
tanto, tu, espírito décimo terceiro?
Fala, pois, que eu te escuto”,
E disse Judas:”Vi-me a mim próprio na visão
em que os doze discípulos
me apedrejavam....


...”Fui para outra geração grande
e santa”. E disseram-lhe
os seus discípulos:
“Senhor, qual é a geração grande
e santa que nos supera
e que não está neste éon?”. Então,
Jesus quando escutou isto,
riu-se e disse-lhes:”Por que pensais no vosso
coração sobre a geração
poderosa e santa? Em verdade vos digo
que ninguém deste éon
verá aquela [geração]...


Conversa com os discípulos

Eis que um dia na Judeia
se dirigia aos seus discípulos
e encontrou-os sentados
e reunidos praticando (gymnazô)
a piedade. Quando
se encontrou com os seus discípulos
reunidos e sentados celebrando
a eucaristia (eucharistia) sobre o pão, ele riu-se.
Então, os discípulos disseram-lhe:
“Mestre, por que te ris da
eucaristia? O que fazemos
está bem”. Ele respondeu-lhes,
dizendo: “Não me rio de vós.
Mas vós não fazeis isto
por vossa vontade, mas sim porque
nisto o vosso Deus é louvado”.
 

Evangelho de Judas
Tradução de Luís Filipe Sarmento
Revisão científica e tradução de António de Macedo
Ésquilo

terça-feira, julho 04, 2006

O prédio verde

Bernardo Pinto de Almeida

Abandono


A quem senão a ti direi
como estou triste? Mas se a tristeza vem
de tu não estares, como ta direi, como hei-
-de juntar o que me está doendo ao ven-
to que não bate mais à tua porta? Eu sei

que a tristeza é só isto, é só isto,
o descoincidir consigo mesmo, eu sei,
descoincidir com os outros, estava previsto
porque dentro de si o mundo não coincide e
não há senão tristeza. Em cada um está Cristo.

Sempre abandonado, cada um abandonado
a si mesmo, sem princípio e sem fim,
pois no princípio o amor era dado
promessa de te ter sempre junto a mim
não ausência, nem dor, nem habitado

ser por todo este absurdo. Morrer
um pouco, disse, sem saber o que dizia
pois eram só palavras, como se a prometer
tudo aquilo que havia e não havia.

Não haver palavras és tu a desaparecer.


Bernardo Pinto de Almeida
hotel spleen
Quetzal Editores

De manhĂŁzinha

Bertold Brecht

MOSTRAI QUE MOSTRAIS


Mostrai que mostrais. Entre as diversas atitudes
Que mostrais ao mostrardes como os homens se comportam
Não deveis esquecer a atitude de mostrar.
Que cada atitude se funde sobre a atitude de mostrar.
O exercício é o seguinte: antes de mostrardes
Como é que um homem trai, ou se torna ciumento,
Ou fecha o negócio, olhai para o espectador
Como se quisésseis dizer-lhe:
E agora atenção, este homem vai trair, e vai trair assim.
Eis como ele se transforma quando o ciúme o assalta, eis o que
fez
Depois de fechar o negócio. Deste modo,
A vossa demonstração acompanhará a atitude de mostrar,
De proferir o que já está preparado, de finalizar a tarefa,
De continuar eternamente. E assim mostrareis
Que todas as noites mostrais o que mostrais, que já o mostrastes muitas vezes,
E a vossa representação terá qualquer coisa do trabalho do tecelão,
Qualquer coisa de artesanato. O que faz parte da demonstração,
A vossa aplicação constante para facilitar
A observação, para permitir o melhor entendimento
De cada acontecimento, tornai-o bem visível. E assim
Atraiçoar, fechar um negócio,
Ter ciúmes, tudo isso passará a ser
Uma função quotidiana como qualquer uma destas: comer,
Dizer bom dia ou
Trabalhar. (Porque vós trabalhais, não é verdade?) E por trás
Dos vossos personagens, vós permanecereis visíveis, como aqueles
Que vós apresentais.


Bertolt Brecht
POEMAS
Tradução, selecção, estudos e notas
de Arnaldo Saraiva
Campo das Letras
1998