poema sobre o peito que sonhava filhos
para o josé félix duque
àquele homem saíam-lhe crianças do peito. encostava-se
de socorro ao muro e não dizia nada. os seus olhos de infe-
licidade viam-nas partir. mas um dia, contava, teria um fi-
lho, um filho que ficasse. e as mulheres abeiravam-se dele
para lhe explicarem a maternidade e ele nada escutava.
porque, ao longe, as crianças do seu peito faziam traves-
suras parecidas às dos filhos e, de tempos a tempos, uma
delas vinha mais perto. ele não resistia a sentir esperança.
já o coração falhava de tanto acreditar. e as mulheres colo-
cavam-se entre ele e os estranhos seres, e o homem seguia
o seu caminho entre as sombras como promessa de mãe
valter hugo mãe
livro de maldições
objecto cardíaco
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Autobiografia de Valter Hugo MĂŁe -
nasci no dia vinte e cinco de setembro de mil novecentos e setenta e um, numa cidade angolana outrora chamada henrique de carvalho , hoje conhecida por saurimo. o meu pai trabalhava no banco de angola, antes disso havia sido militar, e passava o tempo arrastando a famĂlia de cidade para cidade. a minha irmĂŁ marisol nasceu em luanda, o meu irmĂŁo marco em nova lisboa e a minha irmĂŁ flor nasceu nas fĂ©rias em guimarĂŁes. quando Ă©ramos pequenos o meu irmĂŁo tinha ciĂşmes de mim mas protegia-me contra os estranhos, a minha irmĂŁ mais velha era uma segunda mĂŁe e a minha irmĂŁ mais nova era divertida.
às vezes penso que o vinte e cinco de abril de setenta e quatro foi o dia em que a minha cabeça nasceu. a ideia é mais simples do que possa parecer, dessa data guardo a minha recordação mais antiga.
em setenta e quatro eu faria o meu terceiro aniversário e posso lembrar-me daquele dia por duas razões distintas, nenhuma menos relevante para toda a minha vida; primeira: eu estava com os meus pais e os meus avĂłs maternos em lisboa, subitamente apanhados entre ruĂdos de tiros e confusões em redor do banco de portugal; segunda: viĂ©ramos de angola havia pouco tempo e lá nĂŁo vira nenhuma criança loira, de pele clara, como o menino que brincou comigo no tempo de espera pelo meu pai.
lembro-me de estar com a minha mĂŁe e sair do carro com ela. havia um espaço verde e um pequeno recreio infantil um pouco adiante. estávamos em lisboa porque o meu pai deixava o banco em angola para vir para a uniĂŁo de bancos portugueses, coisa a ser tratada na capital. fizĂ©ramos a viagem na nacional antiga, durante seis horas, talvez mais, e nĂŁo sabĂamos de nada porque o rádio esteve sempre desligado. lembro-me de haver uma luz clara no recreio. nĂŁo tinha frio. um menino disse-me, eu cá vou para o escorrega, e eu nunca mais esqueci a sua expressĂŁo oral. dizia eu cá para tudo. parecia-me estranho. e menos igual vira um menino tĂŁo claro que me confunde ainda hoje a memĂłria: nĂŁo sei se em verdade o dia estava luminoso, se era o cabelo dele que o acendia em nosso redor.
em angola, dissera-me anos mais tarde a minha professora, os meninos sĂŁo pretos como a noite. eu, nessa altura, nĂŁo me lembrava de nada. nem dos meninos da noite nem do menino do dia vinte e cinco de abril de setenta e quatro. acho que sĂł aos oito ou nove anos me lembrei do sucedido. comprovei a histĂłria com os meus pais. apareceu-me como uma encarnação passada e mediu a minha vida com outra extensĂŁo. na minha meninice livre, permitida numa vila pequena como era paços de ferreira, abria-se um fosso no tempo e tambĂ©m lembrei como corremos, eu e a minha mĂŁe, aos gritos do meu pai aflito sob os ruĂdos dos tiros. corrĂamos de cabeça baixa que a minha mĂŁe era assim que fazia, e eu sei que ainda corri um pouco e depois fui tomado no colo. nĂŁo nos deixámos parados dentro do carro. o meu pai imediato nos levou dali para fora. a capital estava a ser revolucionada, e ainda que as pessoas confusas achassem que era para o bem , os tiros ouviam-se e pareciam tĂŁo rentes por vezes.
eu expliquei à minha professora que não me lembrava dos meninos de áfrica, mas que me lembrara de estranhar os meninos mais claros de portugal. na altura ainda lhe disse algo sobre uma menina da classe. tinha os cabelos muito loiros e alguém lhe chamava de francesa. para a frança emigravam as pessoas todas daquela zona, por isso, o estrangeiro para nós era paris.
no liceu fiz uma qualquer redacção sobre o vinte e cinco de abril, não sei bem que coisa disse – a nota não foi muito boa – sei o que quis dizer. no dia em que a minha cabeça nasceu ofereceram-me a liberdade e conheci a diferença. conheci e aceitei a diferença. que no mundo haveria de ver gente clara ou escura, pobre ou rica, mão esquerda ou mão direita fechada sobre o peito, e haveria de me reportar constantemente àquele momento que guardei esquecido para só entender mais tarde. haveria de entender, vez por todas, que não desperdiçaria nunca coisa tão cara que um só dia me trouxe.
assim, vivi em paços de ferreira, onde fiz a escola primária, e lembro da cidade – uma vila muito pequena, entĂŁo – como um lugar pacĂfico onde se brincava na rua sem medos, entre riachos e mato, terras que aluĂam e caminhos de paralelo a prejudicar as rodas das nossas bicicletas. a escola onde andei foi deitada abaixo em favor de um prĂ©dio horrĂvel. a casa onde vivi – a casa da dona alice, devota da santa sĂlvia cardoso – esteve em ruĂnas muito tempo a albergar toxicodependentes. agora, disse-me o senhor luĂs magalhĂŁes, meu amigo de freamunde, foi deitada abaixo. fui verificar e tenho uma sĂł fotografia onde se vĂŞm as suas paredes rosa. Ă frente dela estou eu, com 7 anos talvez, uns calções brancos, cara de miĂşdo bem comportado, muitos sonhos a nascer. no nosso quintal imenso apareceram prĂ©dios. os meus amigos de infância, com quem perdi o contacto, sĂŁo estofadores de mĂłveis, diabĂ©ticos, casados, gordos, donos de fábricas e distantes.
era uma casa imensa para mim, dividida ao meio por um longo corredor, eu digo que era uma casa com risca ao meio no interior, e eu podia ir da sala ao meu quarto de bicicleta. era cor de rosa velho e tinha heras agarradas aos muros, muitas, assim a tapar as vistas e a criar uma privacidade que nos possibilitava, aos miĂşdos, acampar no quintal pelo verĂŁo, cheios de medo que viesse um bicho qualquer que nos fizesse viver uma aventura maravilhosa. vivĂamos assim, como se as coisas boas tambĂ©m nos dessem medo, de tanta ansiedade por elas.
viemos para vila do conde em oitenta. senti tanta falta dos meus lugares que me levei a sério. escrevi poesia. antes disso havia sido meio seduzido para a escola porque me ensinariam a escrever por meu punho provérbios e outras máximas que eu pudesse ler repetidamente. fascinavam-me as frases perfeitas, absolutas, como saberes dogmáticos. ganhei na escola primária um chocolate por recolher o maior número de provérbios. não o comi de qualquer assentada, esperei como a lidar solenemente com o orgulho, ou como se esperasse o momento exacto em que o chocolate florisse para comê-lo mais caviar, nuvens, livros inteiros, abraços de minha mãe, noites de grandes sonhos, e outra vontade maior de voltar à escola e estudar.
em vila do conde conheci a nany, mais velha do que eu, a incentivar-me a levar a poesia mais ao caminho. conseguiu. comecei a ler desalmadamente o pessoa e a achar que também se podiam encontrar poetas vivos. mesmo assim fiz o curso de direito, no porto, e estagiei como advogado com o dr. almeida sampaio, espirituoso e excelente para meu patrono. dizia-me que haveria de traduzir o �ulisses' do joyce. eu já editara nessa altura o meu primeiro livro. ele achava que eu poderia ainda salvar-me do mundo áspero do direito. disse-mo muito convicto e eu fiquei orgulhoso.
esqueci a advocacia e fugi para a organização de um evento poético, em vila do conde, que me levou ao contacto reiterado com o centro de estudos regianos. a manuela laranjeira , do centro, ajudou-me e entrei a trabalho na associação. fiquei mais de dois anos, maravilhado com conhecer melhor a obra de régio e com o trabalhar na cultura, como sempre quis.
ganhei um prémio de poesia da associação dos jornalistas e homens de letras do porto com um livro chamado «egon schielle auto-retrato de dupla encarnação». por causa disso conheci o francisco duarte mangas, que admiro. escrevi este livro pelo pintor e por ter ouvido, numa tarde qualquer na biblioteca rocha peixoto, da póvoa de varzim, o disco dos rachel's chamado «music for egon schielle». logo ali, os auscultadores nos ouvidos, escrevi o poema que abre todo o texto e achei, por um tempo, que o pintor se andava a meter na minha vida, tão obcecado fiquei com descobrir-lhe particularidades.
o jorge reis-sá , que eu tinha conhecido meio de relance, aproximou-se um dia desses, no ano de noventa e nove, e convidou-me a apresentar um livro para o projecto que criara, ainda muito amador, chamado quasi edições. fiquei vaidoso e aceitei. depois convidou-me, poucos encontros mais tarde, para ser sócio dele na aventura e constituir uma empresa, uma editora a sério. aceitei, achei coisa doida de mais, era de aceitar. entreguei-lhe um livro chamado «três minutos antes de a maré encher», quando saiu, apresentado pelo escritor mário cláudio, já eu era, de palavra, sócio da quasi.
o meu pai morreu no entretanto, a nove de janeiro. tinha cinquenta e nove anos e um mieloma, um cancro no sangue que destrĂłi o corpo todo, como se bichos corressem por dentro dele, como corria o sangue a fazer-lhe comichĂŁo, que era, na verdade, a enfraquecer-lhe as paredes dos ĂłrgĂŁos a desfazerem-se. tenho muitas saudades dele. lidar com a morte de alguĂ©m que nos pertence Ă© impossĂvel, por isso Ă© tĂŁo difĂcil.
deixei o centro de estudos e dediquei-me sĂł Ă editora em janeiro de dois mil e dois. passámos de tudo um pouco mas vimos o projecto crescer. em dezembro de dois mil e quatro saĂ. guardo com carinho a recordação da escolha e edição de cada um das centenas de livros que produzimos mas, se atĂ© o mundo gira, como nĂŁo estaremos nĂłs em movimento. parti para outra.
antes ainda, tinha-me inscrito num mestrado na área de letras. entrei. estudei saúl dias. ultrapassei o prazo para a entrega da tese. fiquei pós-graduado em literatura portuguesa moderna e contemporânea. um dia destes reinscrevo-me para defender a tese e completar o mestrado.
conheci o antony, do projecto antony and the johnsons. acho-o genial. somos amigos. há coisas na voz dele que viajam de longe, como importações directas entre cĂ©u e terra. fiz dele uma personagem do meu primeiro romance, «o nosso reino», editado pelas temas e debates. conheci o adolfo luxĂşria canibal. somos amigos. já lhe disse que quando era miĂşdo achava que cresceria para ser igual a ele. se nĂŁo sou sequer parecido talvez seja porque vou crescer um pouco mais. o lee ranaldo tambĂ©m chegou a ter um livro programado para a quasi. estive com ele no porto. eu e o alexandre a lembrar as coisas mais incrĂveis de um certo tempo na nossa vida.
em dois mil e três editei, nos cadernos do campo alegre a convite do joão gesta, um livro chamado «o resto da minha alegria seguido de a remoção das almas». dediquei o primeiro poema à adriana calcanhotto. ela fez a capa do livro, onde pode ver-se a sua colecção de relógios, forma de manifestar a passagem do tempo, do seu tempo, através da exposição de cada relógio que usou em todos os anos da sua vida. quis que esse livro fosse uma declaração de amor. coisa de que precisei muito ao ouvir «a fábrica do poema». odeio repetir-me, mas vou ter de, um dia, escrever algo que me apazigue e case definitivamente com a amália, com a patty waters, com o caetano veloso, com a lisa gerrard, com a diamanda galás, com a billie holiday, o devendra banhart, ó meu deus, com o bosch e o william blake, lautréamont e wilde, shakespeare, camões, josefa de óbidos, da vinci, sei lá quanta gente mais.
se nĂŁo fosse a escrita sĂł a mĂşsica me ganharia. ou a pintura. ou o cinema. o teatro. ou um projecto incrĂvel em áfrica ou outro lugar qualquer onde pudesse salvar uma vida e entender porque sempre acreditei que entre tudo os outros sĂŁo sempre o mais importante do mundo. como se deus existisse e quisesse muito que eu acreditasse nele
Bibliografia:
Publicou nove livros de poesia, entre os quais: egon schielle auto-retrato de dupla encarnação (Prémio de Poesia Almeida Garrett); três minutos antes de a maré encher; a cobrição das filhas; útero e o resto da minha alegria.
É autor das seguintes antologias: O encantador de palavras, poesia de Manoel de Barros; SĂ©rie poeta, Homenagem a Julio-SaĂşl Dias; Quem quer casar com a poetisa, poesia de AdĂlia Lopes; O futuro em anos-luz, 100 anos, 100 poetas, 100 poemas, para o Porto 2001 e Desfocados pelo vento, A poesia dos anos 80, Agora.
Poemas seus estão traduzidos e editados em espanhol, francês, inglês, checo e árabe.
É responsável, juntamente com Jorge Reis-Sá, pelas Quasi edições, editora de autores como Mário Soares, Caetano Veloso, Adriana Calcanhotto, António Ramos Rosa, Artur do Cruzeiro Seixas, Ferreira Gullar e muitos outros.
Co-dirige a revista Apeadeiro.
Prepara tese de mestrado sobre SaĂşl Dias e Ă© licenciado em Direito.
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