sexta-feira, julho 21, 2006

Marguerite Yourcenar

(Continuação)

Ora, certa manhã de Julho, houve dois carneiros do pai
de Panegyotis que começaram a andar de roda.
A epidemia não tardou a alastrar às mais be-
las reses do rebanho e o quadrado de terra
batida defronte à casa transformou-se rapi-
damente num pátio para asilar o gado que en-
louquecera. Panegyotis fez-se sozinho à es-
trada, quando o calor apertava, em pleno sol,
em demanda do veterinário que vive na outra
encosta do Monte Santo Elias, numa aldeola
alapada à beira-mar. Pelo sol-pôr ainda não
voltara. A aflição do pai de Panegyotis mudou-
-se dos carneiros para o filho; em vão se ba-
teram os campos e os vales das redondezas;
durante toda a noite as mulheres da família
rezaram na capela da aldeia, que não passa
de um celeiro alumiado por duas dúzias de ve-
las, onde se diria a todo o momento que Ma-
ria vai entrar para deitar Jesus ao mundo. No
dia seguinte, pela tardinha, à hora do des-
canso em que os homens abancam na praça
da aldeia frente a uma minúscula chávena de
café, a um copo de água ou a uma colherada
de compota, viu-se aparecer um Panegyotis
novo, tão diferente como se tivesse passado
pela morte. Tinha os olhos resplandecentes,
mas dir-se-ia que a córnea e a pupila haviam
devorado a íris; nem dois meses de malária o
deixariam tão amarelo; um sorriso um tanto
repulsivo deformava-lhe os lábios, que já não
articulavam palavra alguma. Porém, não es-
tava ainda completamente mudo

(continua)


A Salvação de Wang-Fô
e outros Contos Orientais
Marguerite Yourcenar
Publicações D. Quixote

1 comentário:

Anónimo disse...

..... "Vida emocional de Marguerite Yourcenar"... A primeira mulher a ser eleita em 1980 para a Academia Francesa nasceu com o nome de Marguerite de Crayencour, no dia 8 de junho de 1903 em Bruxelas, filha de mãe belga e pai francês. Antes de morrer "no campo de honra das mulheres" de uma febre puerpural consecutiva a seus partos, sua mãe, Fernande de Cartier de Marchienne, recomenda que não se impeça a menina de se tornar religiosa se ela assim quiser. Ingressando na literatura, Marguerite acredita ter atendido o desejo de sua mãe. Michel, seu pai, que é mais do que um pai, um pedagogo, um confidente, um amigo, não é homem de fazer a filha ingressar em qualquer ordem que seja. Esse anticonformismo deixa-lhe como herança o gosto pela vida errante, ilustrado nesse adágio que ela nunca esquecerá: "Só se pode estar bem em outro lugar"; além de uma grande cultura, que divide com ela, assim como sua biblioteca.

Em 1919, ele financia pessoalmente o Jardin des Chimères (Jardim das Quimeras), poema dialogado que a filha compôs sobre a lenda de Ícaro. Marguerite tem então apenas dezesseis anos; ela nunca havia colocado os pés na escola; mas nem por isso deixará de obter o baccalauréat (certificado de conclusão do segundo grau). Juntos, pai e filha escolhem para ela um pseudônimo que é o anagrama de seu sobrenome: Yourcenar. Sua primeira obra publicada por uma verdadeira editora é Alexis ou o Tratado do Vão Combate, carta de ruptura escrita à mulher por um homem que prefere os homens, pudico pequeno texto que reforça, na linhagem do escritor André Gide, a liberdade das preferências sexuais.

Nesse meio-tempo morre seu pai, em 1929, e a jovem Marguerite vai conhecer os anos mais intensos de sua vida de mulher. Ela ama, escreve, perambula pela Europa, que se prepara para o cataclisma sem ter consciência disso. Yourcenar é um pouco menos inconsciente do que muitos outros. Ela evoca, em Denier du Rêve (1934) um atentado frustrado contra Mussolini por uma passionaria revolucionária.



A perambulação dos sentimentos

Esses anos serão sobretudo os anos de uma paixão impossível por um homem que não a ama e que, como Alexis, prefere os homens. Feux (1936) é produto dessa crise amorosa. Menos conhecido do público do que as obras-primas da maturidade, esse poema em prosa mistura a vida e seus símbolos do amor absoluto, a evocação dos grandes mitos de Antígona, Fedra ou Maria Madalena com o lamento pessoal do amor e da dor. Mais tarde, ela condenará esse amor de desejo, sentimento pouco honrado, repleto de possessividade e amor pessoal.

E começa a abraçar as distâncias, a exemplo do velho pintor Wang Fo de Nouvelles Orientales (1938), que sai pelo mar de jade azul afora que o seu pincel acaba de traçar. Estes últimos escritos são inspirados na literatura e no folclore dos Bálcãs, em sua Grécia bem-amada, e na �sia com a qual se identifica intelectual e espiritualmente. Ela já encontra ai essa percepção do "eu incerto e flutuante" que atribuirá mais tarde ao imperador Adriano esse senso aguçado do vago e da passagem.