domingo, julho 30, 2006

Carlos Couto Sequeira Costa

Matéria Escura

Mas que serei eu afinal?, senão um piano
ciclotímico cheio de nervos hirtos e
mais neurónios e sinapses flutuantes
sem placenta para aderir.
Em tempos, tive a minha placenta, um
deus que é mãe. Julguei viver, mas não.
Ela escrevia-me do Floriano, longas
cartas, longamente, às vezes com aqueles
postais venezianos do Longhi.
Ela tinha a postura sage da Madona
deTorcello, foi sempre assim.
Mas como acalmar um "nuagiste" como eu?
Ela tinha um condão. O dom.
Ela escrevia-me então, recitando a sua
prosa preferida e tentando definir,
melancolicamente "...O estranho estado
que é o de toda a existência, onde tudo
flui como a água que escorre, mas onde
somente os factos que pesaram, em vez de
se depositarem no fundo, emergem à
superfície e ganham connosco o mar".
Ela adorava o fluir e as coisas estranhas,
como que forçava o acontecimento de
coisas estranhas, encantadas, não sei,
envolvia tudo numa aura, diafanizava com
a memória, seria ela a própria
Mnémosyne ?,
matéria escura.Tentámos juntos recomeçar tudo, subir ao
paraíso da lua, um rimanço a dois que a
razão, pobre razão, desconhece.
Mas os espíritos e os maus fados
contaminaram a cidade e hoje paira ainda
um vento, gélido e sibilino, funesto, aquele
vapor sombrio do ser, por cima da industriosa
noite, a avisar então que nada ocorreu, foi
tudo ficção, ou que o Nada passou por ali,
e se estabeleceu.

Carlos Couto Sequeira Costa
Notebooks
Fenda

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