domingo, outubro 29, 2006

Letra A - Anna Akhmátova

Partiram todos, ninguém voltou,
apenas tu, fiel à promessa de amor,
meu último amor, viraste
o rosto e viste o céu em sangue.
A casa e a causa amaldiçoadas,
em vão tinia a canção, mais terna,
e não me atrevia a erguer os olhos
para a minha terrível estrela.
Profanaram a palavra sacra
com que falei (o meu verbo sagrado)
das enfermeiras do trinta e sete
com quem lavei o chão ensanguentado.
Arrancaram-me do filho único,
torturaram meus amigos nas masmorras,
cercaram-me com a sebe invisível
da sua vigilância organizada.
Dotaram-me de mudez, lançaram-me
um anátema perante o mundo,
deram-me a comer peçonhenta calúnia,
para beber deram-me veneno
e, levando-me à beira do abismo,
aàme deixaram ficar.
Para mim é bom, maluca da cidade,
pelas praças agónicas vaguear.

[1959]


Anna Akhmátova
Só o Sangue Cheira a Sangue
tradução de Nina Guerra e Filipe Guerra
Assírio & Alvim



RESPOSTA TARDIA


Para Marina Tsvetáeva

Invisível, espectro, ave escarninha,
porque te escondes nos arbustos negros?
Na casota esburacada do estorninho,
nas cruzes quebradas ora faíscas,
ora gritas da torre de Marinka:”Hoje voltei a casa.
Admirai, campos maternos,
o que por causa disso me esperava.
Meus seres amados sorvidos num abismo,
a casa dos meus pais aniquilada.”
Hoje andamos, Marina, tu e eu,
pela capital da meia-noite, em nossa
peugada milhões de semelhantes,
e não há procissão mais silenciosa,
à volta dobram fúnebres os sinos
e os gemidos selvagens da nevasca
moscovita, cobrindo nossos trilhos.

(16 de Março de 1940, Casa do Fontanka)


Anna Akhmátova
(1889-1966)
Só o Sangue Cheira a Sangue
tradução de Nina Guerra e Filipe Guerra
Assírio & Alvim


DEDICATÓRIA


Curvam-se ante esta desgraça os montes
e deixa de correr o grande rio,
mas os ferrolhos da prisão são fortes,
por trás deles os “covis dos forçados”
e uma angústia mortal.
Há para quem sopre o vento fresco,
para quem seja terno o poente -
nós não sabemos, somos sempre as mesmas,
só ouvimos o ranger odioso
das chaves, passos de chumbo dos guardas.
Cedo erguer, como para a missa da manhã,
ir pela capital asselvajada
e encontrar-nos, mais hirtas que os mortos,

o sol mais baixo, o Nevá mais brumoso,
mas a esperança ainda canta ao longe.
Virá a sentença... jorrarão as lágrimas,
eis a mulher, de todos arrancada
como se lhe arrancassem com dor a vida
do coração, a rojassem de costas
no chão. Mas anda... Cambaleia... Sozinha.
Onde estão agora as minhas companheiras
de inferno, desses dois anos de pasmar?
Que visões lhes traz o nevão das Sibérias,
o que lhes aparece no círculo lunar?
Meu acenar de adeus vai para elas.

Março de 1940

Anna Akhmátova
Só o Sangue Cheira a Sangue
tradução de Nina Guerra e Filipe Guerra
Assírio & Alvim


TERRA MATERNA

Não a trazemos ao peito como amuleto,
não soluçamos para ela em verso sentido,
ela não perturba o nosso sonho amargo,
ela não nos parece o éden prometido.
Na nossa alma ela não se molda
em objecto de compra e de venda,
nunca nos lembramos dela na hora
miserável e muda e doente.
Sim, ela é para nós lama nas botas,
sim, terra nos dentes esmigalhada.
E mais amassamos, mais remoemos
este pó que não tem culpa de nada.
Mas nela nos deitamos, nela nos tornamos,
por isso, com direito, nossa lhe chamamos.

[Leninegrado, 1961]

Anna Akhmátova
Só o Sangue Cheira a Sangue
tradução de Nina Guerra e Filipe Guerra
Assírio & Alvim

Edward Hopper

Edward Hopper
The Automat (detail), 1927

quinta-feira, outubro 26, 2006

José Tolentino de Mendonça

A MONTANHA ÚNICA


“o escravo não permanece sempre na casa
mas o filho aàpermanece”
Do Evangelho de João (8,35)



Em algum momento fomos simultâneos
como dois corpos tombando na água
passávamos por portas diferentes
de forma que se prestava a tamanhas confusões
nossos gestos equivaliam-se com precisão
quando um estendia um pano de púrpura
o outro pousava um pano escarlate
quando um erguia a sua lâmpada
dir-se-ia a mesma mais além a ser erguida
com os vasos idênticos
e os reservados aromas da oblação
Entre as duas tábuas de pedra
a montanha única ardia em fogo
até ao céu

José Tolentino de Mendonça
(inédito)
mAGAZINE artes
Número 4

domingo, outubro 22, 2006

Publicidade

Irene Cruz num anúncio publicitário
eva-natal 1962

Augusto Abelaira

ENCONTRO

(Continuação)

Ana Isa esticou a camisola amarela comprada em Inglaterra, Artur
viu-lhe o busto mais nítido.
- Julgavas que tinha esperado por ti todos estes anos? Chorosa;
fechada num quarto escuro, recusando-me a receber gente?
- Julgar talvez não julgasse. Desejava. E então, um dia, encon-
trávamo-nos por acaso e tudo recomeçava. Não, tudo começava.
- Não tens vergonha? - Segurava os cabelos.
-Talvez... Mas qual é o homem que não desejaria que uma
mulher o esperasse muitos anos?
- Não, não me casei, não tenho filhos... Mas não concluas daí­
que fiquei à tua espera. Não esperei por ninguém, não esperei por
ninguém...
-As mãos de novo nos cabelos, um sol fresco e macio.
-Para onde é o Norte?
-E eu? Não perguntas? Não perguntas se me casei?
- Está vento... É o vento norte? Mas é bom, não é?
- Casei-me, sim...
- De manhã a água estava fria, mas ontem ainda estava mais
fria. O meu filho queria andar numa “gaivota”. Chama-se Artur.
- Deste-lhe o meu nome?
-Dei. Pegou-lhe nas mãos, beijou-lhas. Ana Isa não reagiu, mas quando
ele tentou beijar-lhe a testa, afastou-se.
A traineira apitou duas vezes, mas primeiro tinham visto o fumo
do apito.
-Porquê?-disse-lhe Artur.
-Porque lhe deste o meu nome?
-Porque havemos de alterar o passado se fomos tão felizes? Se
nos conhecemos melhor, agora, não compreendes que o passado perderá
a beleza? Não sabes que nenhum de nós é o que imaginávamos tantas
vezes, isto é, um futuro feliz?
A traineira dera uma volta, impelida pelo vento, estava de proa,
bem a direito, como se tivesse um mastro em vez de dois.
- Gostava de passar uma noite numa traineira.
- Será fácil?
- Este calor... Se fôssemos nadar?
-Passou o vento. Sem vento o calor...
Artur interrompeu-a:
-Para que tem as mãos nos cabelos? Gosto de ver uma mulher
com os cabelos ao vento...-
Não sei...
- Vestida de branco?
- Ou de camisola amarela e calças brancas.
- Passei a infância no Faial. Vim para o continente há quatro anos.
- Antes, nunca veio?
- Nunca.
- E casou-se lá?
- Sim. Não com quem gostava. Uma vez, numa praia, durante
cinco dias conheci outro. Pouco dissemos, pouco dissemos. Foi-se em-
bora para a Terceira. Na última noite arranjei os cabelos para ele, só
para ele, mas não deu por nada.
- Ou fingiu que não deu?
- Estive um vez para ir aos Açores...
A traineira não completamente de proa. Artur pode contar: dois
mastros. Quase um, mas dois, apesar de tudo.
- Quando foi? No ano passado? De repente uma mulher bonita
perguntou-me se eu tinha fósforos.
- Disse-lhe que tinha uma caixa mas que receava o vento?
- Como adivinhou?
- Não sei... Ou melhor: sucedeu-me também uma história se-
melhante...
- Tenho passado a vida à espera de um acontecimento inesperado.
Não é preciso que seja muito extraordinário, uma coisa simples basta...
De repente uma mulher saída nem sei de onde pergunta-me se tenho
fósforos. Basta isso...
- Na vida nunca sucedem essas coisas.
- Não acaba de suceder?
- Bem sabes que não, que nos conhecemos há muito tempo, que
estamos a brincar.
Ana Isa endireitou-se, pôs um cigarro nos lábios. O vento passara,
acendeu o fósforo fàcilmente, virou-o de cabeça para baixo, abrigou-o
com a própria mão que o segurava.
- Não gosto de fumar.
- Não fumo porque meu pai fumava.
Agora os dois mastros eram bem dois mastros. Dois mastros ligados
por um fio. Dois mastros que paralelamente baloiçavam. A bordo
-não o tinham visto subir- o cachorrinho aleijado.
- Terá sido um desastre?
-Quê?-Não sabia do que ela falava.
- Custa-me ver um animal que sofre.
-Mesmo uma cobra?
-Sim.
- Nunca estive nos Açores, mas numas férias no Algarve, conheci
por cinco dias uma rapariga parecida consigo... Uma história seme-
lhante à sua. Ela arranjou os cabelos, fingi que não dei por nada.
-Fingiu ou não deu?
- Fingi. Se soubesse como chorei durante a viagem! Porque não
juntamos as nossas histórias, porque não fingimos que fomos nós os
dois, se a nossa história é igual?
- Nós não somos os mesmos.
- Que importa que não sejamos?
- Que importa que não importe?
- Que importa que não importe que importa?
-Não gosto de fingir. Esta manhiã nadei mais de meia hora, estive
a espreitar para os peixes lá em baixo.
- Quem seria o desavergonhado que inventou que os barcos pareciam uma casca de noz
nas ondas revoltas?
- É isso, as cintilações do mar...
- ...quais estrelas...
- ...quais estrelas!
- A abóbada celeste.
- Um luar de prata.
- A grande metrópole.
- A cidade tentacular.
- Um nariz aquilino.
- Um queixo proeminente.
- Uns olhos de fogo.
- Um olhar líquido.
- Um olhar aquático.
- Cintura de vespa.
-Veloz como uma gazela.
- Veloz como um bólide.
- Memória de ferro.
- Inimigo figadal.
- Basta, basta!
- Sim, dois mastros cada vez mais afastados
um do outro.
- Recordas-te? Dissemos estas palavras há
dez anos. Com uma diferença. Eu é que dizia
os lugares-comuns que tu disseste, tu é que
dizias os que eu disse.


(Continua)

Augusto Abelaira
eva-natal1962

domingo, outubro 15, 2006

Claire Varin

Oeil de Femme


L'animal rampe, la mer roule,
l'arbre rit, la feuille sourit,
car le vent susurre à son oreille:
“Viens vite, viens vis”
Si l'oiseau peut prendre son envol, nous pouvons tout!
Les yeux de la femme sont glacés mais sereins.
Le soir venu, ses paupières s'abâment
et le chant de la hyène s'allie à la patte de colombe.
Ne leur en veuillez pas.
Elles atteignent à l'orgasme et touchent Dieu qui n'a pas de dents


CLAIRE VARIN
Tradução de João Domingues
POESIA DO MUNDO/4
Organização de Maria Irene Ramalho de Sousa Santos
Edições Palimage

Japanese Graphics


Ma-pattern
D: Sayako Takasaki
Japanese Graphics Now!
EDS. GISELA KOZAK & JULIUS WIEDEMANN

Japanese Graphics

Heiwa´s Peace
D: Ken Miki & Associates
Japanese Graphics Now!
EDS. GISELA KOZAK & JULIUS WIEDEMANN

Japanese Graphics


Masaaki Tsuji Glass Art Exibition
D: Takaaki Fujimoto
Japanese Graphics Now!
EDS. GISELA KOZAK & JULIUS WIEDEMANN

sexta-feira, outubro 13, 2006

Escritos

há uma luminosa palidez nos candeeiros
presos em abóbadas

a sua luz não pode empurrar a treva
deixa-se esbater em partículas

a treva sempre se vangloriou disso


m.f.s.



os pés das mulheres descalças
os pés que acariciaram a pele das
montanhas em rocha viva

os pés das mulheres são esculturas de carne rija
os nós dos dedos não suportam anéis

as mulheres de dedos de pedra
são as esculturas andantes
das montanhas em carne viva


m.f.s.

Matriz para gravura

terça-feira, outubro 10, 2006

Letra A - Al Berto

envolver-me na mais obscura solidão das searas e gemer
amassar com os dentes uma morte íntima
durante a sonolência balbuciante das papoulas prolongar
a vida deste verão até ao mais próximo verão
para que os corpos tenham tempo de amadurecer

colher em teu sexo o sumo espesso
e no calor molhado da noite seduzir as luas
o riso dos jovens pastores desprevenidos... as bocas
do gado triturando o restolho... as correrias inesperadas
das aves rasteiras

e crescerei das fecundas terras ou da morte
que sufoca o cio da boca
subirei com a fala ao cimo de teu corpo ausente
transmitir-lhe-ei o opiáceo
amor das estações quentes


Al Berto
Vigílias
selecção e prólogo de
José Agostinho Baptista
Assírio & Alvim
2004



o silêncio tem a espessura das papoulas murchas
e os objectos de barro parecem aproximar-se do sono
inclinam-se para o lado onde se situam os moinhos as ermidas os bos-
ques diluídos
o nítido ladrar dos cães
que horas serão para lá desta fotografia?
com uma grande angular circundo o mosteiro ao morrer do dia
perto dos jardins cheira a laranjas orvalhadas em tua respiração
tenho uma iluminação de astros rebentando do arco-íris da noite
quando abro o diafragma todo para as linhas oblíquas do rosto em
telha quase rubra
o dia desaguou ao fundo das ruas desertas
apresso o passo debaixo do voo das aves
recolho o olhar
onde um fauno vem beber a nocturna nudez das uvas


Al Berto
Vigílias
selecção e prólogo de
José Agostinho Baptista
Assírio & Alvim
2004



MAPA


abres o mapa da europa e
assinalas o lugar perdido junto ao mar - o sol
fulmina a narceja e o leite sábio das mães
coalhou num sabor a plâncton e húmus

na floreira da janela virada ao mars
ecaram os goivos dos navegantes e um cardo amarelo
irrompeu hirsuto e firme - o tempo chuvoso
alastra pelas ruelas insinuando-se na alma
uma babugem grossa de maresia - a europa afasta-se
com seus falhanços ao som dos tambores de água

recordas assim a noite varada à porta dos grandes frios
o corpo carbonizado que perdeu a nacionalidade
as cidades sem nome o acidente a auto-estrada
o recado deixado no café a cerveja entornada
o alarme da noite em fuga
a terra dos gelos eternos a viagem sem fim a faca
rente ao pescoço e os comboios ligando
a treva à treva
um país a outro país - onde dissemos coisas que matam
e largam rastros de aço nas pálpebras

mas
no cansaço da torna-viagem no desalento de tudo
o mapa da europa ficou aberto no sítio
onde desapareceste

ouço o atlântico uivando de abandono
enquanto os dedos se cansam a pouco e pouco
na lenta escrita de um diário - e depois
fecho o mapa e vou
pela crueldade desta década sem paixão


Al Berto (1948-1997)
Horto de Incêndio
Assírio & Alvim



5


vem comigo
ver as pirâmides fantásticas do vento
no interior luminoso da terra encontrarás
o segredo de quartzo para desvendares o tempo
onde contemplamos a ruiva doçura das cerejas

iremos para onde os restos de vida não acordem
a dor da imensa árvore a sombra
dos cabelos carregados de pólenes e de astros
crescemos lado a lado com o dragão
o súbito relâmpago dos frutos amadurecendo
iluminará por um instante as águas do jardim
e o alecrim perfumará os noctívagos passos
há muito prisioneiros no barro
onde o rosto se transforma e morre
e já não nos pertence

vem comigo
praticar essa arte imemorial de quem espera
não se sabe o quê junto à janela
encolho-me
como se fechasse uma gaveta para sempre
caminhasse onde caiu um lenço
mas levanto os olhos
quando o verão entra pelo quarto e devassa
esta humilde existência de papel

vem comigo
as palavras nada podem revelar
esqueci-as quase todas onde vislumbro um fogo
pegando fogo ao corpo mais próximo do meu


Al Berto
O Medo
Assírio & Alvim



o junco entrançado das cadeiras conhece a memória do corpo
este demorado tempo de ausência... sobre a cama de areia
onde o amor se desenvolve o cheiro a poejo dos lençóis

a noite vem do esquecimento da voz
persigo-te com os dedos pelo vácuo
encontro o rosto amarelecido nas fotografias... despojos
do atormentado sono... perscruto o lugar
onde nunca mais voltaremos a cal insiste em revelar-me
outro rosto... lateja-me na boca um coração de papel
dissolve-se um desastre no escuro interior dos objectos

eis a última visão do deserto... um mar triste
uma canção de abandono sobre a boca

o sonho
invadindo a vida que me enche de sede
mas vai chegar o inverno
o corpo afrouxar-se-á como o fazem algumas flores
ao cair da noite dobram-se para o fulcro morno da seiva
e cismam um sonho de ave que só a elas pertence

são horas de ter medo meu amor
cansadas horas quebradas nas mãos.
horas de alucinação
estes dias abertos à corrosão do ciúme... estas janelas
derramando sémen à

velocidade do surdo grito... são horas
horas de fingir que nos amámos

lentamente os dedos aperfeiçoaram a arte de pararem
sussurrantes sobre o corpo... não a deslizarem
não a percorrerem o espaço da veloz insónia
as mãos redescobriram o silêncio inesgotável da escrita
praticam esse ofício muito antigo
de na imobilidade da fala tudo desejarem


Al Berto
Vigílias
selecção e prólogo de
José Agostinho Baptista
Assírio & Alvim



ÚLTIMA CARTA DE VAN GOGH A THÉO


nunca me preocupei em reproduzir exactamentea
quilo que vejo e observo
a cor serve para me exprimir théo: amarelo
terra azul corvo lilás sol branco pomar vermelho
arles
sulfurosas cores cintilando sob o mistério
das estrelas na profunda noite afundadas onde
me alimento de café absinto tabaco visões e
um pedaço de pão théo
que o padeiro teve a bondade de fiar
o mistral sopra mesmo quando não sopra
os pomares estão em flor
o mistral torna-se róseo nas copas das ameixeiras
arde continuou a arder quando tentei matar aquele
que viu a minha paleta tornar-se límpida
mas acabei por desferir um golpe contra mim mesmo
théocortei-me uma orelha e o mistral sopra agora
só de um lado do meu corpo os pomares estão em flor
e arles théo continua a arder sob a orelha cortada
por fim théo
em auvers voltei a cara para o sol
apontando o revólver ao peito senti o corpo
como um torrão de lama em fogo regressar ao início
num movimento de incendiado girassol


Al Berto
O Medo
Assírio & Alvim



2


maravilhar-te as insónias
com o paciente crepúsculo da idade
acordar fora do corpo esquecer o olhar
sobre o pêlo ruivo dos animais beber
o fulgor das estrelas no esplendor da alba
nomear-te
para recomeçarmos juntos a vida toda

ensinar-te o segredo dos alquímicos minerais
acender-te um pouco de culpa
na imatura paisagem do coração

eis a travessia que te proponho
amanhecer sem querermos possuir o mundo
e no orvalho da noite saciar o desejo adiado
respirar a música inaudível das galáxias
sentir o tremeluzir da água no medo da boca

o amor
deve ser esta perseguição de sombras
esta cabeça de mármore decepada
ou este deserto
onde o receio de te perder permanece oculto
na sujidade antiga dos dias


Al Berto
O Medo
Assírio & Alvim



dizem que a paixão o conheceu
mas hoje vive escondido nuns óculos escuros
senta-se no estremecer da noite enumera
o que lhe sobejou do adolescente rosto
turvo pela ligeira náusea da velhice
conhece a solidão de quem permanece acordado
quase sempre estendido ao lado do sono
pressente o suave esvoaçar da idade
ergue-se para o espelho
que lhe devolve um sorriso tamanho do medo
dizem que vive na transparência do sonho
à beira-mar envelheceu vagarosamente
sem que nenhuma ternura nenhuma alegria
nenhum ofício cantante
o tenha convencido a permanecer entre os vivos


Al Berto
Vigílias
selecção e prólogo de
José Agostinho Baptista
Assírio & Alvim
2004

domingo, outubro 08, 2006

MĂşsica

"Eu e o Mário vamos pôr música no re-aberto Europa: Dia 10 de Outubro, 3ª-Feira, a partir das 23 horas.

De Curtis Mayfield a Pere Ubu...
De Gonzales a Sex Pistols...

Vai ser divertido, apareçam!

R. de S. Paulo 19, ao Cais Do Sodré.

Joana Garrido"

sexta-feira, outubro 06, 2006

Arte na paisagem

Michael HEIZER
Dissipate (deteriorated)
# 8 of Nine Nevada Depressions
1968
Wood
1,400 x 1,500 x 30 cm
Black Rock Desert, Nevada
Heizer set pieces of wood into lhe flat bottom of a dried lake
The artist was aware
how quickly this work would be reclaimed into lhe landscape.
He explained, 'As the
physical deteriorates, the abstract proliferates,
exchanging points of view'
- Michael Heizer, Artforum, 1969
His main interest in making this piece was the gradual transformation and
deterioration of lhe piece with the passage of time as the natural environment erases
his intervention in the landscape,
Land and Environmental Art
Jeffrey Kastner
Brian Wallis
Phaidon

quarta-feira, outubro 04, 2006

Arqueologias

Poetas sem amor

uma crónica de João Gaspar Simões


Afonso Duarte
.
Pascoais, tal como Pessoa, nĂŁo sĂł se isolou da mulher, mas quase se
converteu em criatura ostensivamente estranha aos aliciamentos do amor.
Por mais humanas que sejam as obras destes dois grandes poetas -uma
coisa lhes falta: o sentimento da fatalidade, irmão gémeo do amor. É em
Afonso Duarte, afinal, que o vamos encontrar, e já depois de velho. Assim
o proclamam as estrofes do Canto de Morte e Amor, o poema que lhe
inspirou a mulher a quem amou pode dizer-se mais na morte que na vida.
Conquanto, em verdade o cantor de Ossadas, malogrado muito cedo
na sua vida fĂ­sica, tenha perdido, por assim dizer, a virilidade que transpĂ´s
Ă­ntegra para a poesia, o certo Ă© que nunca se deixou vencer e o seu com-
portamento de homem manteve-se o activo destino de quem sabe ter vindo
a este mundo para amar. Amar a quem? Pouco importa: o imperativo estava
na sua alma. Se um amor ancilar lhe trouxe ao caminho uma pobre rapariga
a quem ele concedia um afecto parecido com o que dedicava Ă s rolas e Ă s
rosas de toucar, a morte dessa mulher inspirou-lhe das mais pungentes rimas
de toda a sua poesia. Intocado na sua alma jazia o sentimento que ele
julgava contentar-se com as alegrias de uma devoção quase pagã a tudo
quanto no mundo é vivo e pleno. Um dia, porém, a morte bateu à porta
dessa criatura simples e dedicada. E um amor por assim dizer pĂłstumo, um
amor que a prĂłpria morte converteria em canto alto e profundo se lhe
revelou de sĂşbito. E foi assim que este poeta tĂŁo predestinadamente sĂł
como os seus Ă©mulos Pascoais e Pessoa pĂ´de dar Ă  poesia portuguesa, quando
já soara há muito a hora da paixão, um dos seus mais belos poemas de morte e amor.
Como abre e fecha uma flor/No seu diálogo mudo,/Era tudo a nossador/E o nosso amor por tudo./Dois corpos numa só vida/E nem por mortepartida/No seu diálogo mudo.

.

João Gaspar Simões

eva

Natal

1961

terça-feira, outubro 03, 2006

Film Posters - Horror



Young Frankenstein (Mlody Frankenstein) (1974)
Polish 38 x 27 in (97 x 69 cm)
Art by Jerzy Flisak
Courtesy of The Reel Poster Gallery

Film Posters - Horror



Young Frankenstein (IfjĂş Frankenstein) (1974)
Hungarian 33 x23 in. (84 x 58 cm)
Art by Dekany
Courtesy of The Reel Poster Gallery

Augusto Abelaira

(Continuação)

-De se abrir...
Não em direcção ao largo. O barco a remos deu meia volta e à
proa, subitamente aparecido, talvez porque acabasse de acordar, ladrava
um cachorrinho.
-Falta-lhe uma pata...
E Artur:
-Se soubesses como chorei durante toda a viagem... Voltei-me
várias vezes para trás, mas tinha desaparecido. Agitaste uma vez
a mão e pronto!
E Ana Isa:
-Porque não disseste nada do meu penteado?
-Que penteado?
- Perdi mais de meia hora a arranjá-lo.
-Passaram-se tantos anos!
- Copiei-o da capa de uma revista. Mas fingiste que não deste
por nada... E agora não te lembras!
-Lembro...
- Era importante! passaste o serão a jogar o xadrez com o médico,
nem olhaste para mim um segundo... E no entanto ias-te embora
de madrugada, ias para o Porto, eu ia para Lisboa, nunca mais nos
veríamos.. .
- Vemo-nos neste momento...
-Nem sequer sabias a minha direcção... E eu estava para me
casar...
- Casaste-te?
- Casei-me.
-Tiveste filhos?
Ela tirou outro cigarro. Sem um sorriso, com a mesma ruga na
testa, perguntou:
-Fósforos?
-Não fumo...
- Há pessoas que nâo fumam e têm fósforos...
-E cigarros...
- As pessoas generosas.
- Um cachorrinho e já sem uma perna! É estranho, é criminoso,
é desumano, é bárbaro, é inadmíssivel... - Tirou da boca o cigarro,
como se estivesse aceso, voltou a apertá-lo entre os lábios, voltou
a tlrá-lo. - É desumano, é bárbaro, é criminoso... Sou capaz de nâo
ter pena dum homem aleijado, mas dum câo... E das crianças? Que
coisa estúpida! Que têm os homens a menos para que eu não tenha
pena deles, eles que são merecedores de tanta pena?
-Talvez porque... -Ana Isa, com a palma da mão, fechou-lhe
a boca. E era macia e ele beijou-a.
Ana Isa, retirando a mão (a mão e a palma da mão):
-Porque estamos a fingir que já nos conheíamos?
-Porque estamos a fingir que não nos conheciamos?
Ana Isa agitou o lenço como se estivesse a dizer adeus. Ao homem
do cachimbo? Ao Cachorrinho?
-Como poderemos descrever o brilho do mar? Diremos que cintila?
-Míriades de cintilações... - Riram-se. Ela repetiu:
-Míriades de cintilações...
- ...quais estrelas de intenso fulgor...
quais estrelas de fulgor intenso... -Hesitou.-Fulgor intenso
ou intenso fulgor?
Artur:
-Fingimos que já nos conhecemos porque não temos motivos
para conversar. Se tivermos um passado comum é diferente, recor-
damo-lo... E se não temos um passado comum porque não havemos
de criá-lo?
-Prefiro o presente...
-Por isso mesmo... Não há presente sem passado. É por causa
do presente que...
-Ofereceram uma vez à. minha irmã um isqueiro... -Ana Isa
atirou fora o cigarro. - Ela não fumava, perguntou-me se eu o queria.
Era feio... - Encolheu os ombros. -Já não me lembrava...
O “Maria Brenda” acostou à. traineira, mas do outro lado, nem
Artur, nem Ana Isa podiam vê-lo. Artur procurou imaginar o que
faria o velho nesse momento (acenderia o cachimbo?), o que faria
o cão.
-Minto... disse Ana Isa.-Saiu-Ihe numa rifa...
- Que sorte!
E de repente, ela:
-Você? É poeta, comerciante, engenheiro?..
- Conhecer-me-á melhor se souber?
-Com certeza...
-Ah!... Que Importa? Poeta, comerciante, engenheiro... Alguma
dessas coisas atinge o centro de mim mesmo?.. Serei diferente se for
isto ou aquilo?
- Depende da maneira como for isto ou aquilo.
-Só se nos encontramos amanhâ. De contrário, que importa que
seja médico ou engenheiro?
- Que importa que não importe?
-Que importa que não importe que importa?
A traineira que apitava, os pescadores que corriam no convés. Ana Isa
tirou outro o cigarro.
- Não tenho fósforos - disse Artur.
-Choraste durante a viagem... Por mim?
-Por ti. Dás-me um cigarro? Uma vez ou outra... Ela deu-lhe.
-Não gosto de mergulhar com aqueles óculos... - Um pescador subma-
rino.-Sei que há peixes, que há moreias, que há polvos... Mas se não
os vir tenho medo. Se os vejo... Se não os vir é como se não existissem.
- Não gosto de matar peixes, que prazer terá aquele idiota em
matar peixes? -O pescador submarino, imaginando-se à. caça aos
tubarões. - É criminoso, é bárbaro, é inadmissível...
- Acreditaste qne não dei pelo teu penteado? Dei por ele, mas
fingi que nâo dei. Fingi para que sofresses, porque sabia que havias
de sofrer... E por muitos anos... Dez, não foi?
-Não, não sofri por muitos anos... Sofri nesse dia, nessa noite,
no dia seguinte, sofri ainda uma semana e cheguei até a acreditar
e ia morrer. Morrer de desgosto! Depois acabou-se.
- O quê?
-Casei-me...
-Com o tal?
-Com ele.-Atou o lenço em volta da cintura.-Fica-me bem?
Sentou-e com as pernas para o mar. - Miríades de cintilações,
não é?
-Quais estrelas...
- Quais estrelas! - Pausa. - Pois eu gosto de ver o fundo, de
ver os peixes e as algas. Ensinaram-me que os peixes fogem, que até
tubarões fogem, que nenhum deles ataca o homem. Podiam hoje
demonstrar-me o contrário que eu não acreditava. Vamos nadar?
- Prefiro estar aqui. Prefiro estar aqui a inventar um passado
comum. Mas acertemos as agulhas: onde nos conhecemos?
- Há instantes, aqui.
-Não. Conhecemo-nos há dez anos. Numa praia. Durante uma
semana. Toda a gente dizia que gostávamos um do outro, nós sabíamos
que diziam, mas não dissemos nada...
- Gosto de ver os peixes lá em baixo, não gosto de me enganar.
O barco a remos afastou-se da traineira, do lado de cá. Dois homens
dentro, o cachorrinho. E um cachimbo aceso?
- Às vezes toco nas algas com uma perna. Penso logo num polvo.
- Sou engenheiro, isto diz-lhe alguma coisa?
- Não me diz nada.
- E você?
-Nem sei que posso dizer... Nada também, mas ainda mais nada...
Ah, já sei... Doméstica!-Deu uma gargalhada e repetiu: -Doméstica!
- É como Artur se mantivesse em silêncio. - Doméstica! Este nome
não lhe diz tudo?
-Doméstica domesticada? Selvagem?
-Domesticada.-O vento novamente, os cabelos no ar.-Estou
aqui a passar férias com os meus dois filhos. - As mãos segurando
os cabelos.
-Foste feliz com ele? Vi-o apenas uma vez, dois dias antes de
te conhecer. Não o vi com atenção, não sabia que...
-São horas, o meu filho mais novo já deve ter acordado.
-Casaste de facto?

(Continua)

Augusto Abelaira
eva-natal
1962