Poetas sem amor
uma crónica de João Gaspar Simões
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Pascoais, tal como Pessoa, nĂŁo sĂł se isolou da mulher, mas quase se
converteu em criatura ostensivamente estranha aos aliciamentos do amor.
Por mais humanas que sejam as obras destes dois grandes poetas -uma
coisa lhes falta: o sentimento da fatalidade, irmão gémeo do amor. É em
Afonso Duarte, afinal, que o vamos encontrar, e já depois de velho. Assim
o proclamam as estrofes do Canto de Morte e Amor, o poema que lhe
inspirou a mulher a quem amou pode dizer-se mais na morte que na vida.
Conquanto, em verdade o cantor de Ossadas, malogrado muito cedo
na sua vida fĂsica, tenha perdido, por assim dizer, a virilidade que transpĂ´s
Ăntegra para a poesia, o certo Ă© que nunca se deixou vencer e o seu com-
portamento de homem manteve-se o activo destino de quem sabe ter vindo
a este mundo para amar. Amar a quem? Pouco importa: o imperativo estava
na sua alma. Se um amor ancilar lhe trouxe ao caminho uma pobre rapariga
a quem ele concedia um afecto parecido com o que dedicava Ă s rolas e Ă s
rosas de toucar, a morte dessa mulher inspirou-lhe das mais pungentes rimas
de toda a sua poesia. Intocado na sua alma jazia o sentimento que ele
julgava contentar-se com as alegrias de uma devoção quase pagã a tudo
quanto no mundo é vivo e pleno. Um dia, porém, a morte bateu à porta
dessa criatura simples e dedicada. E um amor por assim dizer pĂłstumo, um
amor que a prĂłpria morte converteria em canto alto e profundo se lhe
revelou de sĂşbito. E foi assim que este poeta tĂŁo predestinadamente sĂł
como os seus Ă©mulos Pascoais e Pessoa pĂ´de dar Ă poesia portuguesa, quando
já soara há muito a hora da paixão, um dos seus mais belos poemas de morte e amor.
Como abre e fecha uma flor/No seu diálogo mudo,/Era tudo a nossador/E o nosso amor por tudo./Dois corpos numa só vida/E nem por mortepartida/No seu diálogo mudo.
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João Gaspar Simões
eva
Natal
1961
1 comentário:
Afonso Duarte
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Muitos sĂŁo os poetas que, em Portugal, viveram e deixaram o seu canto espalhado no caminho sem que outros aĂ apareçam para o erguer por outras pontes de eternidade. Por isso, Afonso Duarte (1884-1958) nĂŁo foge Ă regra ou nĂŁo escapa a essa espĂ©cie de 'maldição' bem nossa que teima em cair sobre alguns poetas de primeira grandeza e nĂŁo vencem ou nĂŁo colhem a atenção dos crĂticos e dos leitores: os primeiros, andam mais interessados (e preocupados) com os poetas de vários quadrantes, mas que sĂŁo notĂcia em suplementos culturais de outras paragens (e eles sempre desejam nĂŁo perder o comboio da actualidade literária, ou isso assim julgam); os segundos, porque, mesmo interessados em conhecer os seus poetas, nĂŁo podem muitas vezes descobri-los no silĂŞncio e ausĂŞncia das livrarias.
Sabemos como o Poeta da Ereira passou discreto na vida ('Eu posso lá morrer, terra florida'), apesar do modo supliciado como a enfrentou, na solidão desesperada da sua terra ou dos poucos amigos que se sentaram à mesma mesa, na doença que cedo o atacou ou no jeito firme de mesmo assim nunca desistir, depois que fora compulsivamente afastado do ensino, sob a ditadura salazarista, em 1932, na altura em que era professor da Escola Normal Primária de Coimbra.
Claro, eram outros os tempos, eram outras as musas que andavam no caminho do autor de Cancioneiro das Pedras (1912). Mas nem por isso deixou de teimar e resistir na sua afirmação e condição de Poeta, mesmo na paraplegia que gravemente o afligiu e nĂŁo mais o abandonaria atĂ© Ă morte. E da (sua) morte nos falaria depois Carlos de Oliveira, seu garantido e dedicado companheiro desde os tempos de Coimbra: 'O enterro vai por uma ruela barrancosa, cheia de estrume, entre currais e sebes. (...) Os muros do cemitĂ©rio, dessa brancura morta que sĂł a cal tem, alvejam lá no fundo. Assim caminha Afonso Duarte,vagarosamente, acompanhado por crianças, camponeses, alguns amigos, sol e flores, para os seus sete palmos de terra'. Era um dia de Março, e parece que nĂŁo chovia, quando Afonso Duarte ficou enterrado há quarenta anos no cemitĂ©rio da sua Ereira/Guernesey dorida, escutando as palavras em jeito de despedida de Miguel Torga: 'Resta-nos a recordação do que foste e o respeito pelos versos que escreveste. E dela e deles tiraremos o lenitivo possĂvel. Mas tĂnhamo-nos acostumado Ă eternidade da tua presença'.
Há muito tempo que nos comovemos com a suavidade da sua poesia descarnada de sentimentalismo, presa ao húmus da vida, visão humanizada de ser um elo profundo entre os longes crepusculares da Vida e da Morte, ainda e sempre na relembrada sombra de Cesário:
LusĂadas do povo, ando a escrevĂŞ-los,
Vereis entĂŁo como era outra sua sorte,
Já fiados que tenho os meus novelos,
Se a dobadoira nĂŁo fiar a morte...
Mas, na expressão formal de ser 'antigo' e 'moderno', a par de uma magia secreta das palavras ou das lápides com que soube enfeitar o seu próprio estro, a poética de Afonso Duarte desdobra-se sempre entre o Amor, a Vida e a Morte, numa transmutação de valores presos ao sentir de um 'cancioneiro popular' bem enraizado na nossa tradição oral, escapando aos 'esoterismos' em moda no tempo dos seus primeiros livros. Porque nos acordes melodiosos dessa Guernesey dorida, a sua Ereira florida, terra de camponeses e pescadores a que sempre regressava em horas de desencanto ('Se não estou em Coimbra, estou na Ereira', costumava ele dizer), ligado visceralmente à terra em que nascera e crescera entre frutos e flores, à sombra da grande casa rural herdada de seu Pai, sempre se exprime em plenitude essa visão mágica de que fala Carlos de Oliveira, na conformada presença da morte que está próxima e ainda no desalento final de nada ter para dar:
Já não tenho que dar
Senão velhice e doença:
Sou como um cĂŁo lavrado
Ou única presença
No meu telhado, o vento.
Sou o ser que nĂŁo morre
SĂł porque existe a Morte.
...................................
(Serafim Ferreira)
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