terça-feira, outubro 03, 2006

Augusto Abelaira

(Continuação)

-De se abrir...
Não em direcção ao largo. O barco a remos deu meia volta e à
proa, subitamente aparecido, talvez porque acabasse de acordar, ladrava
um cachorrinho.
-Falta-lhe uma pata...
E Artur:
-Se soubesses como chorei durante toda a viagem... Voltei-me
várias vezes para trás, mas tinha desaparecido. Agitaste uma vez
a mão e pronto!
E Ana Isa:
-Porque não disseste nada do meu penteado?
-Que penteado?
- Perdi mais de meia hora a arranjá-lo.
-Passaram-se tantos anos!
- Copiei-o da capa de uma revista. Mas fingiste que não deste
por nada... E agora não te lembras!
-Lembro...
- Era importante! passaste o serão a jogar o xadrez com o médico,
nem olhaste para mim um segundo... E no entanto ias-te embora
de madrugada, ias para o Porto, eu ia para Lisboa, nunca mais nos
veríamos.. .
- Vemo-nos neste momento...
-Nem sequer sabias a minha direcção... E eu estava para me
casar...
- Casaste-te?
- Casei-me.
-Tiveste filhos?
Ela tirou outro cigarro. Sem um sorriso, com a mesma ruga na
testa, perguntou:
-Fósforos?
-Não fumo...
- Há pessoas que nâo fumam e têm fósforos...
-E cigarros...
- As pessoas generosas.
- Um cachorrinho e já sem uma perna! É estranho, é criminoso,
é desumano, é bárbaro, é inadmíssivel... - Tirou da boca o cigarro,
como se estivesse aceso, voltou a apertá-lo entre os lábios, voltou
a tlrá-lo. - É desumano, é bárbaro, é criminoso... Sou capaz de nâo
ter pena dum homem aleijado, mas dum câo... E das crianças? Que
coisa estúpida! Que têm os homens a menos para que eu não tenha
pena deles, eles que são merecedores de tanta pena?
-Talvez porque... -Ana Isa, com a palma da mão, fechou-lhe
a boca. E era macia e ele beijou-a.
Ana Isa, retirando a mão (a mão e a palma da mão):
-Porque estamos a fingir que já nos conheíamos?
-Porque estamos a fingir que não nos conheciamos?
Ana Isa agitou o lenço como se estivesse a dizer adeus. Ao homem
do cachimbo? Ao Cachorrinho?
-Como poderemos descrever o brilho do mar? Diremos que cintila?
-Míriades de cintilações... - Riram-se. Ela repetiu:
-Míriades de cintilações...
- ...quais estrelas de intenso fulgor...
quais estrelas de fulgor intenso... -Hesitou.-Fulgor intenso
ou intenso fulgor?
Artur:
-Fingimos que já nos conhecemos porque não temos motivos
para conversar. Se tivermos um passado comum é diferente, recor-
damo-lo... E se não temos um passado comum porque não havemos
de criá-lo?
-Prefiro o presente...
-Por isso mesmo... Não há presente sem passado. É por causa
do presente que...
-Ofereceram uma vez à. minha irmã um isqueiro... -Ana Isa
atirou fora o cigarro. - Ela não fumava, perguntou-me se eu o queria.
Era feio... - Encolheu os ombros. -Já não me lembrava...
O “Maria Brenda” acostou à. traineira, mas do outro lado, nem
Artur, nem Ana Isa podiam vê-lo. Artur procurou imaginar o que
faria o velho nesse momento (acenderia o cachimbo?), o que faria
o cão.
-Minto... disse Ana Isa.-Saiu-Ihe numa rifa...
- Que sorte!
E de repente, ela:
-Você? É poeta, comerciante, engenheiro?..
- Conhecer-me-á melhor se souber?
-Com certeza...
-Ah!... Que Importa? Poeta, comerciante, engenheiro... Alguma
dessas coisas atinge o centro de mim mesmo?.. Serei diferente se for
isto ou aquilo?
- Depende da maneira como for isto ou aquilo.
-Só se nos encontramos amanhâ. De contrário, que importa que
seja médico ou engenheiro?
- Que importa que não importe?
-Que importa que não importe que importa?
A traineira que apitava, os pescadores que corriam no convés. Ana Isa
tirou outro o cigarro.
- Não tenho fósforos - disse Artur.
-Choraste durante a viagem... Por mim?
-Por ti. Dás-me um cigarro? Uma vez ou outra... Ela deu-lhe.
-Não gosto de mergulhar com aqueles óculos... - Um pescador subma-
rino.-Sei que há peixes, que há moreias, que há polvos... Mas se não
os vir tenho medo. Se os vejo... Se não os vir é como se não existissem.
- Não gosto de matar peixes, que prazer terá aquele idiota em
matar peixes? -O pescador submarino, imaginando-se à. caça aos
tubarões. - É criminoso, é bárbaro, é inadmissível...
- Acreditaste qne não dei pelo teu penteado? Dei por ele, mas
fingi que nâo dei. Fingi para que sofresses, porque sabia que havias
de sofrer... E por muitos anos... Dez, não foi?
-Não, não sofri por muitos anos... Sofri nesse dia, nessa noite,
no dia seguinte, sofri ainda uma semana e cheguei até a acreditar
e ia morrer. Morrer de desgosto! Depois acabou-se.
- O quê?
-Casei-me...
-Com o tal?
-Com ele.-Atou o lenço em volta da cintura.-Fica-me bem?
Sentou-e com as pernas para o mar. - Miríades de cintilações,
não é?
-Quais estrelas...
- Quais estrelas! - Pausa. - Pois eu gosto de ver o fundo, de
ver os peixes e as algas. Ensinaram-me que os peixes fogem, que até
tubarões fogem, que nenhum deles ataca o homem. Podiam hoje
demonstrar-me o contrário que eu não acreditava. Vamos nadar?
- Prefiro estar aqui. Prefiro estar aqui a inventar um passado
comum. Mas acertemos as agulhas: onde nos conhecemos?
- Há instantes, aqui.
-Não. Conhecemo-nos há dez anos. Numa praia. Durante uma
semana. Toda a gente dizia que gostávamos um do outro, nós sabíamos
que diziam, mas não dissemos nada...
- Gosto de ver os peixes lá em baixo, não gosto de me enganar.
O barco a remos afastou-se da traineira, do lado de cá. Dois homens
dentro, o cachorrinho. E um cachimbo aceso?
- Às vezes toco nas algas com uma perna. Penso logo num polvo.
- Sou engenheiro, isto diz-lhe alguma coisa?
- Não me diz nada.
- E você?
-Nem sei que posso dizer... Nada também, mas ainda mais nada...
Ah, já sei... Doméstica!-Deu uma gargalhada e repetiu: -Doméstica!
- É como Artur se mantivesse em silêncio. - Doméstica! Este nome
não lhe diz tudo?
-Doméstica domesticada? Selvagem?
-Domesticada.-O vento novamente, os cabelos no ar.-Estou
aqui a passar férias com os meus dois filhos. - As mãos segurando
os cabelos.
-Foste feliz com ele? Vi-o apenas uma vez, dois dias antes de
te conhecer. Não o vi com atenção, não sabia que...
-São horas, o meu filho mais novo já deve ter acordado.
-Casaste de facto?

(Continua)

Augusto Abelaira
eva-natal
1962

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