ENCONTRO
(Continuação)
Ana Isa esticou a camisola amarela comprada em Inglaterra, Artur
viu-lhe o busto mais nítido.
- Julgavas que tinha esperado por ti todos estes anos? Chorosa;
fechada num quarto escuro, recusando-me a receber gente?
- Julgar talvez não julgasse. Desejava. E então, um dia, encon-
trávamo-nos por acaso e tudo recomeçava. Não, tudo começava.
- Não tens vergonha? - Segurava os cabelos.
-Talvez... Mas qual é o homem que não desejaria que uma
mulher o esperasse muitos anos?
- Não, não me casei, não tenho filhos... Mas não concluas daí
que fiquei à tua espera. Não esperei por ninguém, não esperei por
ninguém...
-As mãos de novo nos cabelos, um sol fresco e macio.
-Para onde é o Norte?
-E eu? Não perguntas? Não perguntas se me casei?
- Está vento... É o vento norte? Mas é bom, não é?
- Casei-me, sim...
- De manhã a água estava fria, mas ontem ainda estava mais
fria. O meu filho queria andar numa “gaivota”. Chama-se Artur.
- Deste-lhe o meu nome?
-Dei. Pegou-lhe nas mãos, beijou-lhas. Ana Isa não reagiu, mas quando
ele tentou beijar-lhe a testa, afastou-se.
A traineira apitou duas vezes, mas primeiro tinham visto o fumo
do apito.
-Porquê?-disse-lhe Artur.
-Porque lhe deste o meu nome?
-Porque havemos de alterar o passado se fomos tão felizes? Se
nos conhecemos melhor, agora, não compreendes que o passado perderá
a beleza? Não sabes que nenhum de nós é o que imaginávamos tantas
vezes, isto é, um futuro feliz?
A traineira dera uma volta, impelida pelo vento, estava de proa,
bem a direito, como se tivesse um mastro em vez de dois.
- Gostava de passar uma noite numa traineira.
- Será fácil?
- Este calor... Se fôssemos nadar?
-Passou o vento. Sem vento o calor...
Artur interrompeu-a:
-Para que tem as mãos nos cabelos? Gosto de ver uma mulher
com os cabelos ao vento...-
Não sei...
- Vestida de branco?
- Ou de camisola amarela e calças brancas.
- Passei a infância no Faial. Vim para o continente há quatro anos.
- Antes, nunca veio?
- Nunca.
- E casou-se lá?
- Sim. Não com quem gostava. Uma vez, numa praia, durante
cinco dias conheci outro. Pouco dissemos, pouco dissemos. Foi-se em-
bora para a Terceira. Na última noite arranjei os cabelos para ele, só
para ele, mas não deu por nada.
- Ou fingiu que não deu?
- Estive um vez para ir aos Açores...
A traineira não completamente de proa. Artur pode contar: dois
mastros. Quase um, mas dois, apesar de tudo.
- Quando foi? No ano passado? De repente uma mulher bonita
perguntou-me se eu tinha fósforos.
- Disse-lhe que tinha uma caixa mas que receava o vento?
- Como adivinhou?
- Não sei... Ou melhor: sucedeu-me também uma história se-
melhante...
- Tenho passado a vida à espera de um acontecimento inesperado.
Não é preciso que seja muito extraordinário, uma coisa simples basta...
De repente uma mulher saída nem sei de onde pergunta-me se tenho
fósforos. Basta isso...
- Na vida nunca sucedem essas coisas.
- Não acaba de suceder?
- Bem sabes que não, que nos conhecemos há muito tempo, que
estamos a brincar.
Ana Isa endireitou-se, pôs um cigarro nos lábios. O vento passara,
acendeu o fósforo fàcilmente, virou-o de cabeça para baixo, abrigou-o
com a própria mão que o segurava.
- Não gosto de fumar.
- Não fumo porque meu pai fumava.
Agora os dois mastros eram bem dois mastros. Dois mastros ligados
por um fio. Dois mastros que paralelamente baloiçavam. A bordo
-não o tinham visto subir- o cachorrinho aleijado.
- Terá sido um desastre?
-Quê?-Não sabia do que ela falava.
- Custa-me ver um animal que sofre.
-Mesmo uma cobra?
-Sim.
- Nunca estive nos Açores, mas numas férias no Algarve, conheci
por cinco dias uma rapariga parecida consigo... Uma história seme-
lhante à sua. Ela arranjou os cabelos, fingi que não dei por nada.
-Fingiu ou não deu?
- Fingi. Se soubesse como chorei durante a viagem! Porque não
juntamos as nossas histórias, porque não fingimos que fomos nós os
dois, se a nossa história é igual?
- Nós não somos os mesmos.
- Que importa que não sejamos?
- Que importa que não importe?
- Que importa que não importe que importa?
-Não gosto de fingir. Esta manhiã nadei mais de meia hora, estive
a espreitar para os peixes lá em baixo.
- Quem seria o desavergonhado que inventou que os barcos pareciam uma casca de noz
nas ondas revoltas?
- É isso, as cintilações do mar...
- ...quais estrelas...
- ...quais estrelas!
- A abóbada celeste.
- Um luar de prata.
- A grande metrópole.
- A cidade tentacular.
- Um nariz aquilino.
- Um queixo proeminente.
- Uns olhos de fogo.
- Um olhar líquido.
- Um olhar aquático.
- Cintura de vespa.
-Veloz como uma gazela.
- Veloz como um bólide.
- Memória de ferro.
- Inimigo figadal.
- Basta, basta!
- Sim, dois mastros cada vez mais afastados
um do outro.
- Recordas-te? Dissemos estas palavras há
dez anos. Com uma diferença. Eu é que dizia
os lugares-comuns que tu disseste, tu é que
dizias os que eu disse.
(Continua)
Augusto Abelaira
eva-natal1962
Sem comentários:
Enviar um comentário