quinta-feira, julho 19, 2007

Al Berto

Última vontade

Não sei como começar a contar-lhe, caro leitor, o desaire que me afligiu há uns meses atrás, em pleno Verão lisboeta - quando andava mergulhado, até à medula, na Vida e Obra do Dr. Begónio Turreiro, romancista.
Precisava, mais do que nunca, de concentração e calma. Assim não acontecetu. Começei a ficar com os nervos num molho de brócolos ao aperceber-me de que fora um erro, um grave erro aceitar escrever a biografia do dito Begónio. Ainda por cima, a pouco e pouco, descobrira que a vida e obra do Begónio eram duma nulidade confrangedora.

Arrependi-me mil vezes de o ter feito, claro. Mas, a verdade é que, na altura, as finanças estavam nas lonas, além de poder assinar a obra com um pseudónimo. Ninguém daria por isso, ou não vivêssemos num país de pseudónimos.

Deixemos isto, que não tem especial interesse para o desenrolar dos acontecimentos, e peço-lhe, caro leitor, que regresse comigo àquela noite do defunto mês de Agosto.

Lisboa dormitava debaixo de um calor húmido, peganhento. Eu estivera a trabalhar na biografia até altas horas, sem grandes resultados. Bebera café e mais café para me manter acordado e minimamente lúcido - embora o sono e o cansaço já me fechassem os olhos. O que me apetecia, a sério, era sair e ir ao Frágil beber uma cerveja. Mantive- me firme, apesar de, uma vez mais, ter chegado à conclusão que a biografia não andava nem desandava. Uma coisa sem jeito nem trambelho. E a cerveja continuava a fazer-me crescer a sede. Mas resisti.

Pelas quatro da manhã atirei com a papelada para um canto e fui deitar-me com a cerveja atravessada no pensamento.

Dormi mal, lembro-me, em sobressalto. Transpirei muito. E no dia seguinte levantei-me com a cabeça a latejar - como convém a um honesto escritor de biografias.

Arrastara-me para fora da cama como quem se levanta da tumba. Olhara as folhas escritas, com asco. Doía-me o ombro direito. Uma dor aguda e intermitente.

Estremunhado, fui abrir a janela e tive, nesse preciso instante, um pensamento singular: "Esta dor no ombro... vai crescer-me, aqui, uma asa."

Abanei violentamente a cabeça e sorri. Dirigi-me para a casa de banho. De repente, sussurrei comigo mesmo: "Estás a passar-te. Uma asa?" Meti-me na banheira. Ali permaneci duas horas em estado de entorpecimento total, enfiado na água até ao queixo.

A dor sumiu-se, e com ela a derradeira esperança de alguma vez me crescer uma asa. Saltei do banho depois da água se ter escoado por completo.

Foi quando tocaram à porta.

Primeiro ouvi a campainha retinir dentro de mim, como um estremecimento de sangue. Pensei que estava doente, mas, logo de seguida, mais três campainhadas fizeram-me vestir o roupão e correr para a porta.


Abri a porta com um esticão.

O carteiro, o Sr. Rebite Neves, estendeu-me umas quantas cartas e uma encomenda. Esboçou um esgar que pretendia ser um sorriso amável, tartamudeou qualquer coisa sobre o calor e o lixo que se acumulara com a greve e desapareceu.

Meti as cartas na algibeira do roupão. Fechei a porta devagarinho. Verifiquei que a encomenda era enviada pela minha irmã.

Quando voltei à casa de banho, para acabar de me barbear e vestir, atirei as cartas e a encomenda para cima da mesa.


Comi qualquer coisita. Não tinha fome. Nunca tenho fome quando acabo de me levantar, e ainda por cima com aquele calor... só me apetecia café e cigarros, muitos cigarros.

Depois, sentei-me perto da janela aberta.

Lisboa recortava-se, como um cenário de filme, contra o verde sujo do rio.

Resolvi, então, abrir a correspondência.

Nenhuma surpresa. Dois convites para exposições, uma de pintura e outra de fotografia. Uma carta do Zé Tolas a dizer que estava na Zambujeira - e eu aqui, com este calor! - a passar uns dias e que o ambiente era bué de fixe e pim e blá-blá e etc. prà carola no Clube da Praia e no Fresco, mais umas quecas...

Abri, com vagar, a encomenda da minha irmã. Era uma caixa de tabaco para cachimbo Flying Man, e uma carta. Pus a carta de lado e andei, excitadíssimo, pela casa toda, abrindo e fechando gavetas, à procura do cachimbo.

Encontrei-o, por fim, debaixo de uns bilhetes postais e mais tranquitana sem nome. Enchi-o e fumei, deliciado. O tabaco picou-me a garganta. Não me importei, era a falta de hábito. Há muito que deixara de fumar cachimbo e passara aos três maços de Suave filtro.

Voltei a sentar-me perto da janela, esfumaçando, e abri o último envelope. Uma carta que eu escrevera à Teresa, e vinha devolvida, não sei bem porquê. A Teresa, que eu soubesse, não tinha mudado de casa e o endereço estava correcto.

Ela tinha-me pedido, pelo telefone, que a ajudasse a organizar a casa. Dissera que não percebia nada de tarefas domésticas, nem sentia qualquer vocação para dona de casa. Resolvi enviar-lhe, na altura, o plano que se segue:

Serviço Doméstico / Horário e Funções

Manhã: Pôr a mesa para o pequeno-almoço e servi-lo. Dar de comer e água às galinhas. Pôr a cozer a carne do Conon. Tirar a roupa da máquina de lavar e pô-la a secar, semrpe do avesso. Arrumar os quartos: limpar o pó, fazer a cama, aspirar, despejar cinzeiros. Limpar a casa de banho. Fazer o almoço e servi-lo.

Atenção: As camisas devem ser postas a secar na marquise, em cabides, sempre do avesso.

Tarde: Lavar a loiça e arrumar a cozinha. Passar a ferro. Varrer o terraço, as escadas e a entrada. Arrumar e aspirar: salas de jantar e estar, hall, e corredores. Limpar o pó: mesas, cadeiras, estantes, armários, parapeitos, chaminés, rodapés, maples, sofás.

Engraxar os sapatos.

Periodicamente: Encerar 1 vez por mês (não esquecer de tirar os tapetes, carpetes e passadeiras). Lavar os vidros de 15 em 15 dias. Regar as flores dos vasos e floreiras das janelas 1 vez por semana. Lavar as jarras de flores às sextas-feiras. Limpar as teias de aranha 1 vez por mês, ou de 15 em 15 dias, em toda a casa, incluindo entrada, marquise e terraço. Lavar a marquise e limpar parapeitos de 15 em 15 dias.

Limpeza geral à cozinha 1 vez por mês.

Observações: Verificar se não fica roupa lá fora, ao anoitecer. Fechar portas e janelas. Apagar as luzes. Deixar a lareira acesa nos meses de Inverno. Quando há visitas, deixar a mesa posta para o jantar ou para o pequeno-almoço.


Ainda hoje acho que a Teresa não gostou do meu plano. Se calhar, foi por isso mesmo que o devolveu. Nunca o saberei, não voltámos a falar do assunto. Mas, pelo que sei, continua a viver numa grande desorganização... é lá com ela! Enquanto relia a carta da Teresa continuara a encher o cachimbo e a fumar. O tabaco ainda me picava na garganta, mas agora com menos intensidade. De qualquer maneira, tinha sido uma óptima ideia a minha irmã ter mandado a caixa de Flying Man. É que, por instantes, vieram- me à cabeça os mais disparatados acontecimentos da minha adolescência.

Entre muitos, recordo aquele em que o cachimbo tinha sido uma mania. Tinha dezasseis anos, queria ser escritor. Achava que o cachimbo me dava um ar sério, circunspecto, altivo. Mas veio o dia em que me fartei daquela gergonça sempre pendurada na boca e desatei a fumar cigarros - o que não me impediu de realizar aquele desejo adolescente e de me encontrar na triste situação em que me encontro: biógrafo de gente sem tempero.

Lembrara-me, também, daquela vez que a Tininha Albuquerque quis beijar-me e eu, num desatino, me esquecera de tirar o cachimbo.

Resultado: uma atrapalhação. Brasas, cabelos de Albuquerque chamuscados, guinchos da Tininha... enfim, o namoro acabado. E ainda bem. Nunca gostei muito da Tininha.


Vi a carta, por abrir, da minha irmã. Senti um prazer especial em não a ler, em não saber ainda o que ela me contava. Recostei-me na cadeira, enchi outra vez o cachimbo e fumei o resto da manhã, com Lisboa nos olhos e a memória agitada por longínquas aventuras adolescentes.

Por volta das duas da tarde recomecei a trabalhar na biografia do Begónio.

Interrompi, a dado momento, o que estava a escrever para consultar o caderno de notas. Abri-o e li: "(...) coitado do Begónio, a úlcera não lhe dá descanso, não o larga - como ele também não larga o boné de basebol vermelho que enterra na cabeça, como um tonto, até ao nariz. Talvez pense que o boné lhe dá um ar suficientemente moderno, ou coisa assim. O Begónio anda a redigir um romance erótico O Pinguim Cor-de-Rosa."

Fechei o caderno, nauseado. Francamente, onde é que eu estava metido? O Pinguim Cor-de-Rosa? Valha-me São Freud...

Tentei serenar o ânimo. Depois, subitamente, ocorreu-me ter anotado umas quantas frases que ouvira a um amigo íntimo do biografado. Pensei que talvez me ajudassem. Procurei-as e logo me arrependi de as ter encontrado: "O Begónio arrasta de proa, abava a palhinha. O maricas afrancesado e..."

Desisti. Larguei a canenta e o caderno de notas, empurrei tudo para longe da minha vista e fui a correr buscar mais café.

Agarrei na carta da minha irmã, mas não a abri. Enchi o cachimbo. Deviam ser quatro, quatro e meia da tarde.

Lisboa turvava-se com a neblina azulada que subia do rio. Fiquei de chávena na mão, um tempo sem fim. E fui pensando coisas horríveis, formas de abate, sobre o estuporado do Begónio. Amaldiçoei-o a meia voz, como se rezasse. Por fim, encolhi os ombros. Fumei, bebi café, enquanto Lisboa se acendia ao lusco-fusco. De repente, pensei que a melhor forma de abater o Begónio era desistir da biografia encomendada. Foi o que fiz.


Mas voltemos ao que interessa. Naquele fatídico dia de Agosto ninguém me visitara, ninguém telefonara. Pelas sete e meia saí para jantar. Mas voltei para casa, logo a seguir, com a firme intenção de fazer a última tentativa para escrever a biografia.

Só consegui fumar e espiar, de vez em quando, a carta por abrir. Quando percebi que tinha fumado o Flying Man todo andei, deseperado, à procura de cigarros. Atirei de vez com a biografia para o cesto dos papéis. Acendi um cigarro. Instalei-me comodamente no sofá, ao fundo da sala. Abri a carta da minha irmã que passo a ler-vos, agora, em voz alta:


Meu querido irmão,

Encontrei esta caixa de Flying Man e pensei que gostarias de a ter. Estava na arrecadação, dentro duma mala com livros. No sótão, onde arrumaste tudo o que era teu antes de partires para Lisboa. Meteste-a na mala, de certeza, quando deixaste de fumar cachimbo, depois daquela cena com a Tininha Albuquerque. Lembras-te?

Por aqui as coisas vão andando mais ou menos. A mãe tem estado benzinho, e as tias estão, é claro, cada vez mais velhas. Parecem ter-se perdido numa idade sem algarismos, só de rugas. Lá continuam a roer as mesmas bolachas e a ir, aos domingos, ao cemitério. Fazem renda e remendam toalhas e lençóis, como sempre fizeram, para matar o tempo.

E agora o pior, querido irmão.

O pai, como sabias, andava muito mal. Não te quis dizer nada, para não te preocupar. Aí, tão longe, de qualquer modo, nada podias remediar.

O pai morreu na madrugada do dia 2 de Julho último. Morreu serenamente, lúcido até ao último segundo.

Como deves saber, exigiu que fosse cremado. Ele já te tinha falado nessa sua última vontade.

Lá andámos aflitas, eu e a mão, para conseguir a autorização. Tudo se resolveu sem grandes sobressaltos. Enfim, as tias é que ficaram muito impressionadas e, também, desgostosas. Para elas foi uma sepultura a menos para visitar.

Uma tarde desta semana abrimos o testamento. Nada de especial, o pai não tinha grande coisa. Estivemos todas reunidas para o acto e elas voltaram a desfazer-se em lágrimas.

Passo por cima dos detalhes e excessivas minúcias do testamento que, quando vieres de férias, tu mesmo verás. No entanto, anexo ao testamento havia uma pequena lista de últimas vontades. Tentámos cumpri-las com rigor. De resto, nada que não se pudesse executar.

Numa delas, o pai queria que fosses tu a guardar as suas cinzas. És o primogénito. notura, pediu que se continuasse a pôr, diariamente, a cadeira de baloiço debaixo da palmeira, perto do terraço, onde ele se sentava ao entardecer. Enfim, assim temos feito todos os dias.

Quanto às suas cinzas - quase me esquecia de te dizer -, como ia mandar-te a caixa de Flying Man aproveitei e misturei-as com o tabaco. Guarda-as preciosamente, o pai era um homem bom.

Beija-te, saudosa, tua irmã

Mila


Al Berto, O Esconderijo do Homem Triste, "VER", Círculo
de Leitores, Lisboa, Primavera 1992, N' 18, pp. 62-63

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