sexta-feira, agosto 04, 2006

Contos Portugueses

O Achado da Bolsa

Havia um mercador muito rico, e assim como cada dia
se lhe iam acrescentando suas riquezas, assim nele se
lhe ia multiplicando tanta avareza, que em outra cousa
não trazia sentido senão em ajuntar dinheiro. Este
estando em um dia vendendo suas mercadorias, tomou
quatrocentos cruzados em ouro, que havia vendido, e
deitou-os em uma bolsa, e despois de recolher seu fato
se foi para casa entesourar.
Indo pelo caminho fazendo suas contas com a imaginação,
lhe acertou cair a bolsa, e até que chegou a casa não a
achou menos. Esteve para perder o juízo juntamente
com a bolsa. Com grande dor e paixão se foi ao duque,
que era senhor daquela cidade, e lhe pediu que man-
dasse Sua Excelência em seu nome apregoar que quem
achasse uma bolsa com quatrocentos cruzados em ouro,
que os trouxesse diante dele, que lhe daria quarenta
cruzados de achado. Foi dado o pregão pela cidade,
e sendo ouvido de todos, chegou a ouvidos de quem
tinha achado a bolsa, que era uma mulher viúva, muito
pobre e virtuosa. E ouvindo dizer que davam quarenta
cruzados de achado foi mui leda, entendendo que ficar
com a bolsa seria infernar sua alma.
Assim com esta determinação se foi diante do duque e
lhe pôs em sua mão a bolsa que havia achado assim e
da maneira que o mercador a havia perdido. Vendo o
duque a pobreza desta mulher, e que era digna de ser
grandemente favorecida, logo mandou chamar o merca-
dor e lhe disse como a bolsa havia já aparecido, que não
faltava mais que cumprir a sua promessa àquela mulher
honrada que a havia achado. Folgou em extremo o avarento
mercador, porém achegou-lhe à alma o ver que havia
de dar os quarenta cruzados que tinha prometi-
do de achado, e assim imaginou logo naquele instante
um ardil para os não dar, e foi que tomou a bolsa e
vazou o dinheiro em uma mesa que ali estava, e contou-o,
e posto que o achasse certo, contudo isso, virando para a
mulher que o havia achado, lhe disse:
- Mulher de bem, aqui nesta bolsa faltam tinta e
quatro escudos venezianos que estavam de mais
dos quatrocentos cruzados em ouro que aqui estão.
A boa velha afrontada e corrida, lhe disse:
- De maneira, senhor, que credes de mim que vos
havia de furtar o vosso dinheiro! Quem me obrigava,
tendo eu em meu poder essa bolsa, a trazê-la aqui,
senão não querer eu o alheio?
Não deixava o mercador de gritar e de dar vozes
dizendo que lhe fosse buscar os trinta e quatro escudos
venezianos que faltavam, se queria que lhe desse o
achado que tinha prometido.
O duque, conhecendo a malícia do mercador e tudo
aquilo que fazia e dizia era a fim de se escusar de
dar o que prometera, entendendo que quanta era
a bondade da virtuosa mulher tanta era a mal-
dade do avarento mercador, imaginou que a maior
pena que podia dar a um homem tão ruim como
aquele era fazer que com seu engano se ofendesse
a si mesmo, e a esta causa, virando-se para ele, lhe disse:
- Vinde cá; se isto é assim como dizeis, porque
me não declarastes que a bolsa levava mais esses
escudos de ouro? Ora eu tenho entendido que vós sois
tal que quereis fazer o alheio vosso, e que esta bolsa
que essa mulher honrada achou não é vossa, pois nela
faltam esses ducados venezianos que dizeis; antes
essa bolsa que se achou sem dúvida nenhuma é
uma que nesse próprio dia perdeu um meu criado
com esta mesma soma de dinheiro que essa tem,
e pois sendo assim como é, a mim e não a vós pertence.
E dizendo isto virou-se para onde estava a velha,
e lhe disse:
- Boa mulher, pois que achastes esta bolsa com estes
cruzados de ouro, eu vos faço graça dela com o dinheiro
que tem.
Não se atreveu, o inconsiderado avarento a replicar
ao que o duque dizia; antes - arrependido de não haver
cumprido a palavra que prometera - se foi para casa
chorar seu desastre.

(in Contos e Histórias de Proveito e Exemplo, 1575)
Gonçalo Fernandes Trancoso
Contos Portugueses
Zacarias Nascimento
Plátano Editora

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