quinta-feira, agosto 31, 2006
Serei
formada na fúria dos ventos marinhos
nos estremeções da terra inquieta
serei grão de areia nos grãos de areia dos oceanos
gelo no granizo extemporâneo sobre as aldeias do interior
talvez vento cantante em redor das cabeças
das crianças assustadas
serei um fio de cabelo que desenha grafismos
sobre os papeis das secretárias
uma folha acabada de cair em pleno verão
serei o indizível presságio no coração
dos loucos de belos olhos garras nas mãos
facas nos dentes de vampiros
m.f.s.
Heitor Ferraz
Tento acompanhar meus passos
olhar para baixo
de cabeça baixa
a crista baixa
e o silêncio que percorre folhagens
secas
quase sempre secas
Se fosse mais velho
falaria em roubo e peculato
e da vontade de entender o que acontece
Mas acompanho
o desespero dos peixes
que deslizam
e se desmontam
sob meus tênis
Algumas manhãs são assim
arrastando pedras no parque
quando não
atrás do meu filho
que corre atrás de uma bola
até o lago espesso
e sem reflexo
sucessivamente.
HEITOR FERRAZ
Inimigo Rumor 13
2Âş semestre 2002
Revista de poesia Brasil e Portugal
Andi Nachon
1
Um movimento, súbito
não resta nada. Ou quatro
quando você abre os olhos e está a meu lado,
trezentas e quarenta e três: entre mão
e jarra, do nariz ao vidro
de sua janela - mais
oitenta? -. E os outros, atravessando luz
consistências do ar, seu peso: apenas
outra série de ações
de nenhuma parte a lugar nenhum
n movimentos ou o único
pacto que você manterá.
5
Alminha, levante-se. Como se pudesse
baixar o volume, sossegasse tumultos
para que não doesse, não se alcançasse esse
umbral onde tudo
faz doer. Alminha: um tempo
para você não ser, perder o pêndulo
firme do jogo, sua cláusula vermelha
“cada um faz
o pouco que pode”. Saiamos daqui
mais claramente, saiamos dessa. Alminha, que coisas
os dias negociam. Digamos querida
não existe clemência
em vozes pequenas, minha vida minha alma
celebremos ameixas
damascos e peras. Dizia, ai minha, um tempo
para você não ser, o minuto em que todos
fazemos
este pouco que resta.
18
Há uma guerra prestes a estourar dizem. Antes
caminhei downtown, sob amoreiras
agora douradas e me detive sobre seu canto
calafrio que conta este
princípio de outono
nos últimos dias de verão. Dizem, lá fora há coisas
por explodir, assuntos
para além das amoreiras e súbitos
declínios do verão, seu estrondo
submerge a copa das árvores e você
em um mesmo final. Vocês dançaram
o segundo andar
dessa cidade de montanhas? Aqui nas outras
montanhas mais ao norte - idênticos picos, a mesma
idade da explosão - dancei hip-hop entre garotos
de quinze anos
que crescem neste povoado
guardado por cães de caça e motorhomes
onde alguém deixa sobre a mesa
um vaso com rosas. Lá fora
há novas explosões, a medida
do canto e sua história - não as amoreiras -
falam de guerras, tão cruentas e eu
penso só o gesto
com que alguém preparou a mesa
o vaso e suas três rosas
- duas amarelas, uma vermelha - tanta delicadeza
em meio a residências transitórias.
26
Beije o futuro, como se beija toda
possibilidade ou a espera
disso que os dias trazem e levam. A cada
trecho percorrido, acaricia esse
amanhã possível para ver a maneira
como a folha de papel cai os sete
andares do edifício sobre o bar king sao. E é s
agora. Traslado
de nada a menos ainda e ao tempo
a consistência firme
dessa folha caindo, seu peso
ante o vazio que qualquer
manhã apresenta. Pouca
coisa além disso, seus olhos
- e os meus -
necessariamente abertos. E só.
ANDI NACHON
Tradução: Paloma Vidal, Rubens Figueirdo e Carlito Azevedo
in Inimigo Rumor 13
2Âş semestre 2002
Revista de poesia Brasil e Portugal
Willem Kloos
Eu lamento as flores em botão quebradas
Que uma manhã mortas no apogeu achou
Lamento os amores que deram em nadas
E o meu coração que ninguém abrigou:
Chegaste, partiste - como eu o sabia.
Tive a ideia exacta, não abri a boca:
À eterna inércia duma dor sombria ,
Regressei, vencida essa fase louca.
Tal uma avezinha no calmo relento
De súbito acorda porque o céu clareou;
E entra em chilreios, julgando “isto é dia”
Mas, inda os olhitos não bem descerrou
Já de novo é escuro, e vem um lamento
passar marulhando entre a ramaria.
WILLEM KLOOS
(1859-1938)
Países Baixos
TRAD.: FERNANDO VENÂNCIO
ROSA DO MUNDO
2001 poemas para o futuro
Assírio & Alvim
3ª edição
2001
Nemes Nagy Ágnes
É preciso aprender. As árvores de Inverno.
Geladas até às raízes.
Impassíveis cortinas.
É preciso aprender este risco,
onde fumado se faz o cristal,
e nada a árvore em nevoeiro, qual
o corpo numa lembrança.
E atrás das árvores o rio,
asas mudas de selvagens patos,
a brancura cega e azul da noite,
com seus objectos encapuzados;
é preciso aprender aqui os
das árvores indizíveis actos.
Nemes Nagy Ágnes
(1922-1991)
Hungria
TRAD.:ERNESTO RODRIGUES
ROSA DO MUNDO
2001 poemas para o futuro
Assírio & Alvim
3ª edição
2001
José Joaquín Passos
Fechando estou meu corpo com as quatro paredes,
nas quatro janelas que teu corpo me abriu.
Estou a ficar só com meus quatro silêncios:
o teu, o meu, o do ar, o de Deus.
Vou descendo tranquilo por minhas quatro escadas,
vou descendo por dentro, muito dentro de eu,
onde estão quatro vezes quatro campos enormes.
Por dentro, muito dentro, - que vastidão eu sou!
E que pequena és tu com teus quatro reais,
com teus quatro vestidos feitos em Nova Iorque.
Vais ficando despida e pobre ante meus olhos;
quatro vezes te quis; quatro vezes já não.
Estou a fechar minha alma, já não espreito a ver-te,
já não te vejo o ar que meu amor te dera;
vou descendo tranquilo com meus quatro carinhos:
o outro, o meu, o do ar, o de Deus.
José Joaquín Passos
Nicarágua
(1914-1947)
TRAD.: JOSÉ BENTO
Rosa do Mundo
2001 POEMAS PARA O FUTURO
Assírio & Alvim
Thomas Bernhard
Num tapete de água
vou bordando os meus dias,
os meus deuses e as minhas doenças.
Num tapete de verdura
vou bordando os meus sofrimentos vermelhos,
as minhas manhãs azuis,
as minhas aldeias amarelas e os meus pães de mel amarelos também.
Num tapete de terra
vou bordando a minha efemeridade.
Nele vou bordando a minha noite
e a minha fome,
a minha tristeza
e o navio de guerra dos meus desesperos,
que vai deslizando p'ra mil outras águas,
para as águas do desassossego,
para as águas da imortalidade.
Thomas Bernhard (1931-1989)
Na Terra e no Inferno
(tradução de José A. Palma Caetano)
Poemário 2003
Assírio & Alvim
Augusto Frederico Schmidt
Quero sentir o grande mar, violento e puro.
Quero sentir o mar nocturno e enorme.
Quero sentir o silêncio, o áspero silêncio do mar!
Quero sentir o mar! Quero viver o mar!
Quero receber em mim o grande e escuro mar!
Não o mar-caminho, mas o mar-destino,
O mar fim de todas as coisas,
O mar, túmulo fechado para o tempo.
Quero o mar! O mar primitivo e antigo,
O mar virgem, despovoado de imagens e de lendas,
O mar sem náufragos e sem história.
Quero o mar, o mar purificado e eterno,
O mar das horas iniciais, o mar primeiro,
Espelho do Espírito de Deus, rude e terrível!
AUGUSTO FREDERICO SCHMIDT (1906-1965)
O Mar na Poesia da América Latina (antologia)
(tradução de José Agostinho Baptista)
Poemário 2003
Assírio & Alvim
Robert Lowell
Minha velha chama, minha mulher!
Lembras-te dos nossos catálogos de pássaros?
Uma manhã, no Verão passado, passei de carro
junto à nossa casa no Maine. Lá continuava
no alto do monte -
Uma espiga vermelha de milho-índio
estava agora presa à porta.
Velha Glória com treze listas
suspensa numa estaca. A ripa
era de um vermelho velho, o vermelho do edifício da escola.
No interior, um novo proprietário,
uma nova mulher, uma nova vassoura!
Loja de antiguidades no litoral atlântico
peltre e espólio
brilharam nas salas.
Uma nova fronteira!
Acabaram-se as corridas a casa do vizinho
para telefonar ao sherife
para chamar o táxi para Bath
e para a loja de bebidas!
Ninguém viu o teu espectral
e imaginário amante
olhando imóvel à janela
e ajustando
o cachecol ao pescoço.
Saudemos as novas gentes,
saudemos a sua bandeira, na sua velha
e restaurada casa no monte!
Tudo foi limpo,
mobilado, adornado e arejado.
Tudo foi mudado para melhor -
quão trémulos e corajosos éramos,
cercados ali os dois pela neve,
agitados como vespas
na nossa tenda de livros!
Pobre fantasma, velho amor, fala
com a tua voz velha,
de perspicácia ardente
que nos mantinha despertos toda a noite.
Na mesma cama e apartados,
ouvimos o limpa-neve,
gemendo monte acima-
uma luz vermelha, outra azul,
enquanto afastava a neve
para a berma da estrada.
Robert Lowell
Aos Mortos da União
e outros poemas
edição bilingue
selecção, tradução e introdução
Mário Avelar
Assírio & Alvim
1993
segunda-feira, agosto 28, 2006
Adélia Prado
Dói-me a cabeça aos trinta e nove anos.
Não é hábito. É rarissimamente que ela dói.
Ninguém tem culpa.
Meu pai, minha mãe descansaram seus fardos,
não existe mais o modo
de eles terem seus olhos sobre mim.
Mãe, ó mãe, ó pai, meu pai. Onde estão escondidos?
É dentro de mim que eles estão.
Não fiz mausoléu pra eles, pus os dois no chão.
Nasceu lá, porque quis, um pé de saudade roxa,
que abunda nos cemitérios.
Quem plantou foi o vento, a água da chuva.
Quem vai matar é o sol.
Passou finados não fui lá, aniversário também não.
Pra quê, se pra chorar qualquer lugar me cabe?
É de tanto lembrá-los que eu não vou.
Óóóó pai
Óóóó mãe
Dentro de mim eles respondem
tenazes e duros,
porque o zelo do espírito é sem meiguices:
Óóóói fia.
Adélia Prado
Bagagem
Livros Cotovia
Adélia Prado
Eu te amo, homem, hoje como
toda vida quis e não sabia,
eu que já amava de extremoso amor
o peixe, a mala velha, o papel de seda e os riscos
de bordado, onde tem
o desenho cómico de um peixe — os
lábios carnudos como os de uma negra.
Divago, quando o que quero é só dizer
te amo. Teço as curvas, as mistas
e as quebradas, industriosa como abelha,
alegrinha como florinha amarela, desejando
as finuras, violoncelo, violino, menestrel
e fazendo o que sei, o ouvido no teu peito
pra escutar o que bate. Eu te amo, homem, amo
o teu coração, o que é, a carne de que é feito,
amo sua matéria, fauna e flora,
seu poder de perecer, as aparas de tuas unhas
perdidas nas casas que habitamos, os fios
de tua barba. Esmero. Pego tua mão, me afasto, viajo
pra ter saudade, me calo, falo em latim pra requintar meu gosto:
“Dize-me, ó amado da minha alma, onde apascentas
o teu gado, onde repousas ao meio-dia, para que eu não
ande vagueando atrás dos rebanhos de teus companheiros”.
Aprendo. Te aprendo, homem. O que a memória ama
fica eterno. Te amo com a memória, imperecível.
Te alinho junto das coisas que falam
uma coisa só: Deus é amor. Você me espicaça como
o desenho do peixe da guarnição de cozinha, você me guarnece,
tira de mim o ar desnudo, me faz bonita
de olhar-me, me dá uma tarefa, me emprega,
me dá um filho, comida, enche minhas mãos.
Eu te amo, homem, exatamente como amo o que
acontece quando escuto oboé. Meu coração vai desdobrando
os panos, se alargando aquecido, dando
a volta ao mundo, estalando os dedos pra pessoa e bicho.
Amo até a barata, quando descubro que assim te amo,
o que não queria dizer amo também, o piolho. Assim,
te amo do modo mais natural, vero-romântico,
homem meu, particular homem universal.
Tudo que não é mulher está em ti, maravilha.
Como grande senhora vou te amar, os alvos linhos,
a luz na cabeceira, o abajur de prata;
como criada ama, vou te amar, o delicioso amor:
com água tépida, toalha seca e sabonete cheiroso,
me abaixo e lavo teus pés, o dorso e a planta deles
eu beijo.
Adélia Prado
Sistema solar
Eight Planets and New Solar System Designations
Credit: International Astronomical Union
Explanation: How many planets are in the Solar System? This popular question now has a new formal answer according the International Astronomical Union (IAU): eight. Last week, the IAU voted on a new definition for planet and Pluto did not make the cut. Rather, Pluto was re-classified as a dwarf planet and is considered as a prototype for a new category of trans-Neptunian objects. The eight planets now recognized by the IAU are: Mercury, Venus, Earth, Mars, Jupiter, Saturn, Uranus, and Neptune. Solar System objects now classified as dwarf planets are: Ceres, Pluto, and the currently unnamed 2003 UB313. Planets, by the new IAU definition, must be in orbit around the sun, be nearly spherical, and must have cleared the neighborhood around their orbits. The demotion of Pluto to dwarf planet status is a source of continuing dissent and controversy in the astronomical community.
domingo, agosto 27, 2006
Isidoro Augusto
ISIDORO
AUGUSTO
ou
a metamorfose do vazio
por
ANTÓNIO RAMOS ROSA
Nestes desenhos foto-gráficos de Isidoro Augusto não há nada de
simbólico, alegórico ou metafórico. É que eles nada representam ou
figuram, pois são um puro acto cujo objecto é a sua própria génese.
Pode dizer-se que este acto é uma afirmação do vazio enquanto
lugar da aparição da forma. Assim, a forma surge do vazio no
limite em que a sua emergência é a própria formação
do vazio. O artista deixa de representar seja o que for para se encontrar
face ao visível na sua pureza integral, sem a alienação de qualquer ponto
de vista. Este espaço visível mostra-nos então
a invisibilidade do ser.
Num certo sentido, tudo o que eu apreendo ou contenho, só o
compreendo se souber que é algo inapreensível e que eu posso deixar
ser. Só assim a infinidade se revela na sua invisibilidade, na plenitude do
vazio. Esta experiência é fundamental porque se trata de uma forma de
conhecimento do absoluto. Será este o sentido destes
desenhos, dos quais não se pode dizer que tenham um tema ou
reproduzam um objecto (real ou
imaginário)? O essencial neles seria o vazio, o espaço de que nasce o
sentido ou o não-sentido - ou o que transcende o sentido.
Na verdade, a imagem nestes desenhos não reenvia a uma realidade
exterior ou interior, não é uma representação de um fragmento do visível
recortado na experiência quotidiana; é antes um modelo de organização
do espaço, conjunto de puros signos sem referência ou qualquer
sugestão figurativa. Assim, neles nada se
significa, nada se revela a não ser o tema estrutural que constitui a figura
ou a imagem do desenho, a qual está para além de qualquer
interpretação. Há, talvez, em cada delicada marca, traço ou mancha, ou
em cada sombra destas manchas, ou ainda nas linhas que se rompem
em minúsculos intervalos, há nestas marcas e nestas falhas,
talvez, uma subtil encarnação do desejo ou o
frémito de um corpo desejante. Todavia, este frémito não se torna tema
ou figura, uma vez que se inscreve na
metamorfose do invisível ou na formulação pictórica de um espaço puro.
De certo modo, o que Isidoro Augusto faz é dissociar as significações
estabelecidas em partículas
in-significantes, mostrando-as e relacionando-as em novas estruturas,
que não requerem o sentido institucionalizado, porque são abertas e
totalmente vazias. Por outros termos, estes desenhos fotográficos de
Isidoro Augusto são menos significativos do que
dessignificantes e é essa abertura
estrutural, a sua delicadíssima complexidade ou a sua
subtil simplicidade, a sua transparência, que os
tornam extremamente sugestivos e
reveladores de um puro espaço em que a visão se alia à
metamorfose do vazio.
sábado, agosto 26, 2006
Fernando Guerreiro
O que se pede da poesia? Que nos entretenha os olhos
com as rendas sulfurosas de um doentio crepúsculo?
Com efeito, no poema, as palavras não nos servem
de cestos em que se recolham - dilatados, quase
a cair das árvores - os frutos. E contudo, continuamos
a confundir os caminhos do poema com os do mundo
quando eles, na natureza, apenas nos apontam
a incerteza do destino. As palavras repetem-se -
frutos atirados sobre a mesa - e a morte,
para quem não acredita no poder da transfiguração
das metáforas, esgota da vida todo o sentido.
Diz-se: os ramos não crescem no quadro,
os pássaros deixam de assolar a paisagem -
e o pensamento, ao reflectir-se, deixa a tela
pejada dos restos em que se perdeu pelo
horizonte. Mas todo o conhecimento
acaba no ponto em que o voo se
confunde com a linha acidentada da planície.
Fernando Guerreiro
Poesia Digital
7 poetas dos anos 80
Organização de Amadeu Baptista
e José-Emílio Nelson
Campo das Letras
2002
Rainer Maria Rilke
Vaza-me os olhos: continuarei a ver-te,
tapa-me os ouvidos: continuarei a ouvir-te,
mesmo sem pés chegarei a ti,
mesmo sem boca poderei invocar-te.
Decepa-me os braços: poderei abraçar-te
com o coração como se fosse a mão.
Arranca-me o coração: palpitarás no meu cérrebro.
E se me incendiares o cérebro,
levar-te-ei ainda no meu sangue.
Rainer Maria Rikle
Rainer Maria Rilke
Na montanha em repouso, quando desfaz o burgo?
E o coração? - Sempre dos deuses foi,
quando é que o violenta o demiurgo?
Seremos nós tão frágeis de ansiedade,
como o destino o diga, - ou nos iluda?
Será a infância, a funda, a promissora idade,
nas raĂzes - mais tarde - apenas muda?
Ah, o fantasma que o transitório habita,
atravessa o coração desprevenido,
como se apenas fumos que deslizam.
Quando o que somos, se nos precipita,
e às forças permanentes é servido,
como aquilo que os deuses utilizam.
Rainer Maria Rilke
Os Sonetos a Orfeu de Rainer Maria Rilke
Tradução de Vasco Graça Moura
quarta-feira, agosto 23, 2006
Jorge Melícias
ter na voz ímanes e facas radiais.
O nome ascende à garganta
como uma dança fechada,
é o lume correndo entre a limalha,
um clarão nas virilhas do relâmpago.
jorge melícias
A Luz nos Pulmões
2000
Jorge Melícias
como uma plaina ao desvario sobre as córneas.
Os ganchos com a sua incisiva
mecânica de clarões.
Vi o cutelo. E a percussão
era uma cegueira decantada.
jorge melícias
a longa blasfémia
objecto cardíaco
terça-feira, agosto 22, 2006
Angel smoke
segunda-feira, agosto 21, 2006
Mark Strand
Segundo Carlos Drummond de Andrade
Arrastas a escravidão até à velhice
e nada que faças te vale de muito.
Dia após dia passas pelos mesmos gestos,
tremes na cama, tens fome, desejas uma mulher.
Heróis representando vidas de sacrifício e obediência
enchem os parques por onde caminhas.
À noite, no nevoeiro, abrem as umbrelas de bronze
ou então refugiam-se nos vestíbulos vazios dos cinemas.
Amas a noite pelo seu poder de destruição,
mas enquanto dormes, os teus problemas irão morrer.
Acordar só prova a existência da Grande Máquina
e a luz árdua cai nos teus ombros.
Caminhas entre os mortos e falas
de tempos por vir a assuntos do espírito.
A literatura fez-te desperdiçar as melhores horas de amor.
Fins-de-semana perdidos, a limpar a casa.
De pronto confessas o teu fracasso e adias
a alegria colectiva para o próximo século. Aceitas
a chuva, a guerra, o desemprego e a distribuição injusta da riqueza
porque não podes, sozinho, rebentar a ilha de Manhattan.
Mark Strand
E.U.A.
(n.1934)
TRAD.: JOSÉ ALBERTO OLIVEIRA
ROSA DO MUNDO
2001 poemas para o futuro
Assírio & Alvim
Ahmad 'Abd al-Mu'ti Hijazi
trago comigo o meu número de telefone
o meu nome e endereço
e assim se de súbito cair morto
podereis identificar-me e meus amigos virão
Fancy, aconteça o que acontecer
não venhas.
ficarei na morgue duas longas noites
frios fios de telefone agitar-se-ão na noite.
a campainha começará.
sem resposta ... uma vez.... duas.
alguém irá ter com a minha mãe
e lhe dirá que eu morri
minha mãe essa triste camponesa
como caminhará só pela cidade
levando o meu endereço!
como passará a noite a meu lado
no átrio completamente mudo
subjugada pela solidão
confortada pelo seu recolhimento em dor
quando pondera só
por sobre as suas penas secretas
em tecer a minha mortalha das suas negras lágrimas
quem dera que a minha mãe tivesse
tatuado o meu braço de rapaz
assim não me perderia
assim não trairia meu pai
assim o meu primeiro rosto
não se perderia sob o meu segundo rosto.
quando vejo homens e mulheres saindo em silêncio
depois de terem passado duas horas diante de mim
durante as quais não trocámos olhares
ou vimos diferentes cenários
quando vi que a vida não tem loucura
e o pássaro da quietude se alvoroça sobre todos
sinto como se estivesse realmente morto
jazendo silenciosamente .
contemplando este mundo agonizante.
Ahmad 'Abd al-Mu'ti Hijazi
Egipto
(n. 1937)
TRAD.: ADALBERTO ALVES
ROSA DO MUNDO
2001 poemas para o futuro
domingo, agosto 20, 2006
Braque
Eau-forte originale en noir
Agua-forte original a preto
Chaggall
quinta-feira, agosto 17, 2006
Sistema Solar
Eduardo Peres
A revolução pode estar próxima.
escolares e enciclopédias
estĂŁo a um passo de se tornarem obsoletos.
O Sistema solar prepara-se para
receber mais trĂŞs inquilinos, aumentando para
se a UniĂŁo AstronĂłmica Internacional
aprovar no próximo dia 24 a nova definição
que gire em torno de uma estrela e nĂŁo seja,
tambĂ©m um formato esfĂ©rico (caracterĂstica
possui uma gravidade suficientemente
ser considerado planeta.
À luz da nova definição, não só Plutão
como também aparecem três novos
o sistema solar ficará dividido em duas
clássicos - Mercúrio, Vénus, Terra, Marte,
constituĂdos por PlutĂŁo, Charon (considerado
alcançar o tĂtulo de planeta gĂ©meo) e o
Por sua vez, Ceres Ă© o asterĂłide que mesmo entalado
também subir à divisão maior.
A decisĂŁo está longe de ser pacĂfica.
O professor Michael Brown do Institute
foi um erro considerar, em 1930, PlutĂŁo
dimensĂŁo. Por sua vez, o director da NASA,
mesmo sendo pequeno continua a ser um cĂŁo.
Diário de NotĂcias, 17-08-2006
Marguerite Yourcenar
de quem se desvia como de uma repelente macaca;
cospe à passagem da mulher do pope, que cho-
rou dois meses até se conformar. As Ninfas en-
tonteceram-no para melhor o enredarem nos
seus jogos, como uma espécie de fauno ino-
cente. Deixou de trabalhar; pouco lhe importam
os dias e os meses; fez-se mendigo, e por isso
come quase sempre até fartar. Erra pelos cam-
pos, evitando o mais possível os caminhos con-
corridos, mete-se pelas matas de pinhais no
meio das colinas desertas e diz-se que uma flor
de jasmim pousada num muro de pedra seca,
um seixo branco aos pés de um cipreste são
mensagens em que ele decifra a hora e o local
do próximo encontro com as fadas. Os campo-
neses pretendem que não há-de envelhecer:
como todos aqueles que a má sorte atingiu, há-
-de extinguir-se sem que se saiba se tem dezoito
anos ou quarenta. Mas tremem-lhe os joelhos,
o espírito deixou-o para não mais voltar, e
nunca mais a palavra tornará a nascer-lhe nos
lábios; já Homero sabia que aqueles que dor-
mem com as deusas de ouro vêem consumir-se-
-lhes a inteligência e a força. Mas eu invejo Pa-
negyotis. Saiu do mundo dos factos para entrar
no das ilusões, e acontece-me pensar que a ilu-
são é talvez a forma que as realidades mais se-
cretas adquirem aos olhos do comum.
- Mas afinal o João não acha - disse a se-
nhora Demetriadis um tanto irritada - que Pa-
negyotis viu realmente as Nereidas?
João Demetriadis não respondeu, tão ab-
sorto estava em soerguer-se na cadeira para
responder ao cumprimento altivo de três es-
trangeiras que ali passavam. Aquelas três jo-
vens americanas, cingidas nos seus vestidos
de linho branco, avançavam com passo leve
no cais inundado de sol, seguidas de um ve-
lho carregador dobrado ao peso das compras
feitas no mercado; e, como três meninas à
saída da escola, andavam de mão dada. Uma
delas ia de cabeça descoberta, com a cabe-
leira ruiva salpicada de raminhos de mirto,
mas a segunda levava um enorme chapéu de
algodão à volta da cabeça, à maneira das
camponesas, e uns óculos de sol com lentes
escuras protegiam-na como uma máscara.
Aquelas três mulheres haviam-se estabelecido
na ilha, onde tinham comprado uma casa,
longe das casas principais: de noite, pescavam
a bordo do seu próprio barco, armadas com
um tridente, e, no Outono, iam à caça das co-
dornizes; não se davam com ninguém e elas
próprias faziam o serviço da casa, receando
introduzirem alguma criada na intimidade da
sua existência; numa palavra, isolavam-se fe-
rozmente para evitar as más-línguas, prefe-
rindo-lhes talvez as calúnias. Em vão tentei
interceptar o olhar que Panegyotis lançou
àquelas três deusas, mas os seus olhos dis-
traídos mantinham-se vagos e apagados: ma-
nifestamente não reconhecia as suas Nereidas
vestidas de mulher. De repente, num movi-
mento ágil e quase animal, inclinou-se para
apanhar outro dracma que caíra de um dos
nossos bolsos, e eu vi, agarrado ao pêlo gros-
seiro do dólman que lhe pendia do ombro e
uma fivela prendia aos suspensórios, o único
objecto capaz de fornecer uma prova impon-
derável à minha convicção: o fio sedoso, o
subtil fio, o fio perdido de um cabelo loiro.
Fim
A Salvação de Wang-Fô
e outros Contos Orientais
Marguerite Yourcenar
Publicações D. Quixote
terça-feira, agosto 15, 2006
Emanuel Félix
Como eu amei as raparigas lá de casa
discretas fabricantes da penumbra
guardavam o meu sono como se guardassem
o meu sonho
repetiam comigo as primeiras palavras
como se repetissem os meus versos
povoavam o silêncio da casa
anulando o chão os pés as portas por onde
saíam
deixando sempre um rastro de hortelã
traziam a manhã
cada manhã
o cheiro do pão fresco da humidade da terra
do leite acabado de ordenhar.
(se voltassem a passar todas juntas agora
veríeis como ficava no ar o odor doce e
[materno
das manadas quando passam)
aproximavam-se as raparigas lá de casa
e eu escutava a inquieta maresia
dos seus corpos
umas vezes duros e frios como seixos
outras vezes tépidos como o interior dos frutos
no outono
penteavam-me
e as suas mãos eram leves e frescas como as folhas
na primavera
não me lembro da cor dos olhos quando olhava
os olhos das raparigas lá de casa
mas sei que era neles que se acendia
o sol ou se agitava a superfície dos lagos
do jardim com lagos a que me levavam de mãos
[dadas
as raparigas lá de casa
que tinham namorados e com eles
traíama nossa indefinível cumplicidade
eu perdoava sempre e ainda agora perdoo
às raparigas lá de casa
porque sabia e sei que apenas o faziam
por ser esse o lado mau de sua inexplicável
[bondade
o vício da virtude da sua imensa ternura
da ternura inefável do meu primeiro amor
do meu amor pelas raparigas lá de casa.
Emanuel Félix
nove rumores do mar
antologia de poesia açoreana contemporânea
organização de eduardo bettencourt pinto
Instituto Camões
Vitorino Nemésio
Não toques, distância, no seu cabelo molhado;
Não lhe mexas. Rosto puro, às aguas posto e preso,
Uma imagem será o seu único peso,
Um pensamento o único beijo que me há dado.
Que o Índico persiga o indício velado;
Decore o Mar Vermelho o forte rosto aceso -
Mas não para morrer: para menos desprezo;
E eu próprio fique em meu amor atenuado.
Oh! platónico amor de ninguém e de alguma,
Espectro que criei e rodeei de lágrimas,
Vénus ainda ao longe no aro da minha espuma!
Imagem, força de vontade, imagem
Viva ou morta, não sei; imagem acre...mas
Verdadeira e suave, isso mais que nenhuma!
Vitorino Nemésio
O Bicho Harmonioso
Heitor Aghá Silva
Não me recordo
Não me recordo se havia alguma flor
no meu jardim.Talvez fosse Verão
mas todas as manhãs,
ao acordar,
inexplicavelmente sentia saudades de mim.
Só sei chorar em português. Se minha mãe
soubesse
Como detesto os meus brinquedos de criança.
Talvez fosse Verão, e houvesse flores.
Eu é que não fui um jardim na minha infância.
Todos os astros se perderam no infinito.
Que saudades eu sinto de não ter sido um outro.
Talvez fosse Verão, sei lá, e houvesse flores.
Só eu não fui ninguém entre o meu ser
e o sonho de outro.
Heitor Aghá Silva
nove rumores do mar
antologia de poesia açoreana contemporânea
domingo, agosto 13, 2006
Remédio
nizar diferentes remédios para a dor de cólica, sendo um
deles o chá da casca de pepino e outro o beber bastante
água morna com um fio de azeite, até promover o vómito.
O remédio porém de que tenho presenciado maravilhas,
que é mais simples que qualquer daqueles e que está ao
alcance de qualquer pessoa, consiste em pisar uma cabeça
de alhos e em aplicar esta massa sobre o umbigo do paciente.
Este remédio tão simples, e que se encontra em toda a parte,
produz muitas vezes uma melhora instantânea.
(D. Eufémia Rosa Martins)
ALMANAQUE
fantástico
cómico
científico
realizado por Manuel João Gomes
Lisboa MCMLXXVII
colecção meia-noite
arcádia
Francisco José Viegas
A quem darei todos os dias da minha vida? A voz que levo
em mim impressa como o rumor dos jardins, os rebanhos
descem pelas encostas, a neve abandona as giestas,
uma banda de província comemora o entardecer. Tu e eu dançaremos
como antigamente o Verão nos chamava, pelas romarias,
e passaremos as noites em viagem. Reinventei o mundo agora,
tu o fizeste assim, uma única vez se diz o nome que nos fez
voar sobre as searas. A quem darei a minha vida?
Aquilo que deixámos um no outro marcado como um fogo,
o sobressalto, as novas palavras. O tempo demora, e volve, devagar,
sobre si mesmo, nos pátios mais antigos. Do primeiro ao último dia,
a quem darei todos os dias da minha vida?
Francisco José Viegas
metade da vida
edições quasi
João Pedro Mésseder
1
À noite, quando o sul e o norte se confundem, em cada cidadea
dormecida, uma sombra agoniza no escuro.
2
Nas madrugadas de chuva, o lamento da noite não comove-
porque é mais densa e bravia a memória do sangue, vertido a
coberto do sono e das pálpebras do mundo.
Nas madrugadas de chuva, cala-se a voz do rio, as miragens
fenecem, e o calor do linho não chega para aplacar o frio e apagar
a imagem dos que no escuro se perderam.
3
Como um navio em águas sombrias os olhos cruzam a noite e uma
janela de luz os retém. Sentado, um homem luta ainda com as
palavras; A noite vai cumprindo o que a mão resiste a escrever:
'rotinas de sangue suor e pranto'.
E ante o comum lugar da fórmula, a última lâmpada apaga-se e
tinge de silêncio o verso que a luz não quis reler.
João Pedro Mésseder
A POESIA É TUDO
Antologia I
sexta-feira, agosto 11, 2006
quinta-feira, agosto 10, 2006
Edward Bond
Em cada cidade há crianças
Em cada cidade há brinquedos
Em cada casa há pequenos prazeres da mesa
O trabalho da casa
Lavar e reparar
A tranquilidade à noite
E alimentar as crianças
Um a dar ao outro tudo o que precisa
Um dia isto muda e nada é dado
Tudo o que é de vestir e comer é comprado como um bilhete para
lugar algum
Para viver o dinheiro é necessário
Mas onde há dinheiro todas as coisas podem ser compradas e
vendidas
Amaldiçoa a fidelidade a verdade e o trabalho
O tecto da viúva e a porta do homem pobre
E morte
Em cada cidade há dinheiro
Em cada cidade existem armas
Em cada moeda existe vida e morte
E quem pode dizer o seu valor?
Edward Bond
coros para depois dos assassinatos
tradução de Luís Mestre
edições quasi
terça-feira, agosto 08, 2006
Alimentação
O teatro de Gil Vicente é um cenário exaustivo da vida
portuguesa de Quinhentos. Mestre Gil observa, critica aber-
tamente, cita os nomes da próprias pessoas que bem pode-
riam encontrar-se entre a assistência. O que se come e o que
se bebe não faltam na crua visão do comediógrafo, aquele
Mestre Gil que “não tinha um ceitil”, embora fizesse os au-
tos de el-rei.
O português de Quinhentos basofia, sonha com as rique-
zas fáceis da Índia, come sardinhas, ou o que calha. Comoa
quele marido de Branca Anes, a “Brava” do Auto da Feira
que a desesperada mulher denuncia assim:
“Porque vai-se às figueiras,
e come verde e maduro;
e quantas uvas penduro
jeita nas gorgomileiras;
parece negro monturo.
Vai-se-me às ameixeiras,
antes que sejam maduras,
ele quebra as cerejeiras,
ele vindima as parreiras,
e não sei que faz das uvas.
Ele não vai à lavrada, ele todo o dia come,
ele toda a noite dorme,
ele não faz nunca nada,
e sempre me diz que há fome”.
Uma Lisboa do desenrasca que vai manter-se como ca-
racterística nacional para todo o sempre. Pretenciosa, cla-
ro, porque na província as coisas são bem mais simples. Gil
Vicente “Vaqueiro”, a saber “se é verdade que pariu vossa
nobreza” (a rainha mãe de D. João III) traz ofertas em
quantidade, mas caracterizadas pela simplicidade da pro-
víncia:
“mil huevos y leche aosadas,
e um ciento de quesadas,
e han traido
quesos, miel, do que han podido”.
É certo que há no teatro Vicentino um rol de acepipes, ma-
çapão, pereiras doçares de “muitas maneiras”, cabrito, pi-
cheis de vinho, mas o marido viajante do Auto da Índia não
deixa à ansiosa mulher mais do que “trigo, azeite, mel e pa-
nos” e a pretenciosa, e pretendida, Inês Pereira refere-se ao
vulgo como comendo pão com cebolas, do que não desde-
nhou, como se viu, Nicolau Clenardo, apesar das suas prerro-
gativas de intelectual credenciado, o que pouco mais signifi-
cava que mestre escola às expensas, sempre curtas, do Estado.
Como ao longo de toda a eternidade, os comerciantes
roubavam o que podiam, tal a Marta Gil da Barca do Pur-
gatório, que se justifica nos momentos definitivos:
“Vendia minha lavrança,
um ovo por dois reais,
um cabrito se se alcança,
té quatro vinténs, não mais:
Tendes vós isto em lembrança?
Um frangão por um vintém.
E uma galinha sessenta;
E acerta-se também
Que às vezes vem alguém,
Que as leva por setenta”.
Como bem se sabe, sempre houve quem comprasse por
setenta o que os outros compravam por sessenta. E a culpa
é deles, certamente. Só que para a regateira Marta Gil, o
sempre presente Diabo dos autos vicentinos ainda tem mais
algo no saco:
“E para que era água no leite
Que deitavas ieramã?”
Géneros não faltavam para quem tivesse a bolsa farta.
No verão, por exemplo, podia-se dar graças a Deus pelo
que se encontrava nos campos:
“Puerros ajos y cebollas,
mastuerzo, habas, hervejas,
gravanizos, granos, lentejas,
verdolagas y vampollas,
mil yerbas, frutas y follas,
untesgina y catasol;
y ansi hombre de pro
lte doy gracias e grollas”.
Tudo muito bem e muito farto, mas a verdade é que:
“quando vieres da arada,
comerás sardinha assada,
porque ella jenta a panela”.
Isto muito embora o criado do grande fidalgo endinhei-
rado se lamente por não encontrar peças de caça no merca-
do para a cozinha de suas senhorias:
“E a mesa do meu senhor
irá sem ave de pena?”
Roby Amorim
Da Mão à Boca
Para uma história da alimentação em Portugal
edições salamandra
Marguerite Yourcenar
Julgou-se descortinar na erva rala leves
vestígios de pés femininos, sítios calcados pelo
peso dos corpos. Imagina-se a cena: as man-
chas de sol na sombra das figueiras, que não
é sombra, mas uma outra forma mais verde e
mais doce da luz; o jovem aldeão posto alerta
por risos e gritos de mulher, qual caçador por
um bater de asas; as divinas raparigas er-
guendo os alvos braços em que a loira penu-
gem intercepta o sol; a sombra de uma folhades
locando-se num ventre nu; um seio claro,
cujo bico se ergue, não violeta mais rosa; os
beijos de Panegyotis devorando aquelas cabe-
leiras que lhe deixam a impressão de masti-
gar o mel; o seu desejo perdendo-se entrea
quelas pernas loiras. Tal como não há amor
sem deslumbramento do coração, tão-pouco
existe verdadeira volúpia sem espanto da be-
leza. O resto será quando muito simples fun-
cionamento maquinal, como a sede e a fome.
As Nereidas abriram ao jovem insensato um
mundo feminino tão diferente das raparigas
da aldeia quanto estas o são das fêmeas do
gado; deram-lhe a embriaguez do desconhe-
cido, a prostração do milagre, as resplenden-
tes malícias da ventura. Pretende-se que
nunca deixou de as encontrar, pelas horas
quentes em que esses belos demónios do
meio-dia vagueiam em busca de amor; dir-se-
-ia ter esquecido o próprio rosto da noiva,
(continua)
A Salvação de Wang-Fô
e outros Contos Orientais
Marguerite Yourcenar
Publicações D. Quixote
domingo, agosto 06, 2006
Ilustrações
Esther
par
Jean Racine (1639-1699)
(La scène est à Suse, résidence d'hiver des anciens rois de Perse.
Le roi Assuérus, apres avoir cherché une épouse parmi ses
captives, a couronné une belle Juive, Esther. Malgré la splendeur de la cour, la reine, tout en cachant son origine au roin na jamais oublié sa patrie, Sion, et sachant qu'un ministre
sanguinaire veut arracher au souverain l'ordre d'exterminer
les Juifs, elle fait devant la cour leur éloge et celui de leur dieu.)
Ces Juifs, dont vous voulez délivrer la nature,
Que vous croyez; seigneur; le rebut des humains,
D'une riche contrée autrefois souverains,
Pendant qu'ils n'adoroient que le Dieu de leurs pères,
Ont vu bénir le cours de leurs destins prospères.
Ce Dieu, maître absolu de la terre et des cieux,
N'est point tel que l'erreur le figure à vos yeux:
L 'Eternel est son nom; le monde est son ouvrage;
Il entend les soupirs de l'humble qu'on outrage,
Juge tous les mortels avec d'égales lois,
Et du haut de son trône interroge les rois.
Des plus fermes États la chute épouvantable,
Quand il veut, n'est qu'un jeu de sa main redoutable.
Les Juifs à d'autres dieux osèrent s'adresser:
Roi, peuples, en un jour tout se vit disperser.
Sous les Assyriens, leur triste servitude
Devint le juste prix de leur ingratitude.
Mais, pour punir enfin nos maîtres à leur tour,
Dieu fit choix de Cyrus, avant qu 'il vit le jour,
L'appela par sou nom, le promit à la terre,
Le fit naître, et soudain l'arma de son tonnerre,
Brisa les fiers remparts et les portes d'airain,
Mit des superbes rois la dépouille en sa main,
De son temple détruit vengea sur eux l'injure:
Babylone paya nos pleurs avec usure.
Cyrus, par lui vainqueur, publia ses bienfaits,
Regarda notre peuple avec des yeux de paix,
Nous rendit et nos lois et nos fêtes divines;
Et le temple déjà sortoit de ses ruines.
Mais, de ce roi si sage héritier insensé,
Son fils interrompit l'ouvrage commencé,
Fut sourd à nos douleurs. Dieu rejeta sa race,
Le retrancha 1ui-même, et vous mit en sa place.
Esther, acte IIIe, scène 4me
Lectures Scientifiques et Littéraires Classes de IVe et Ve
J.J. Teixeira Botelho
Livraria Chardronde
Lelo & Irmão Editores
Porto – 1912
sábado, agosto 05, 2006
Advertising
Advertising
sexta-feira, agosto 04, 2006
Astronomia
Explanation: Get out your red/blue glasses and gaze across Burns Cliff along the inner wall of Endurance crater on Mars! The view from the perspective of Mars rover Opportunity is a color anaglyph - two different images are presented to the left and right eyes by color filters to produce the 3D effect. Scroll the picture to the right to see the full 180 degree panorama. Still returning science data and images, both Spirit and Opportunity rovers completed 2 years of Mars exploration in January. Opportunity spent the month of July on the road to Victoria crater. The stereo pair of images used to create this view are based on image data recorded in November 2004.
"Le Monde existe-t-il vraiment?"
Comme dans Matrix, les fondements tangibles de notre monde disparaissent pour laisser place
à une hallucination collective
Et s i tout n'était qu' i nformation !
Sur les décombres de ce que nous croyions être la réalité, une "nouvelle physique" est en train de naître: celle qui envisage toute chose à partir de la seule notion d'information. Au point de redéfinir temps, espace et matière. A la clé, la découverte d'un nouveau monde: le nôtre. "Bienvenue dans la Matrice." Et si c' était là le vertigineux message que nous adressaient aujourd'hui les spécialistes des lois qui régissent notre monde aux échelles microscopiques ? Loin de décrire le comportement de la matière, la mécanique quantique, affirment-ils, ne nous parle que... "d'information". Résultat: alors que 'on pensait toucher les fondements tangibles de notre monde, ceux-ci disparaissent pour ne laisser qu'une sorte d'hallucination collective, un artefact généré par notre propre questionnement... Comment ne pas songer alors à Matrix, la trilogie réalisée il ya quelques années par les frères Wachowski? Car il est tentant de faire le parallele avec le programme informatique omnipotent qui, dans le film, contrôle l'humanité en lui donnant à croire qu' elle vit dans un monde, certes apaisé, mais virtuel. Dans un article publié l'année derniere, le mathématicien John Barrow, de la très sérieuse université de Cambridge, en Angleterre, n'imagine-t-il pas une civilisation "seulement un peu plus avancée que la nôtre" qui serait "capable de simuler l'apparition des étoiles et la formation des systèmes planétaires, puis, en intégrant les lois de la biochimie, d' observer l' évolution de la vie et de la conscience, puis de regarder les civilisations croître et communiquer entre elles, se disputer sur le fait de savoir s'il existe un Grand programmateur dans le Ciel ayant créé leur Univers", etc. Bref, l'idée que nous ne serions que les créatures virtuelles d'un immense jeu vidéo n'a rien d'absurde.
Science & Vie
N.Âş 1057
Octobre 2005
Bruno Munari
Deformación de una textura sobre cuerpos plásticos. Fotografia de Mimmo Castellano. La proyección de fotografias de texturas, y sobre todo de pequenas texturas colocadas entre dos cristales, es un experimento muy interesante. Doblando una hoja de cartulina, como ha hecho Castellano, y proyectando sobre ella líneas uniformes, se puede ver cómo el espesor de las líneas (o los elementos de una textura) se alteran. Tales ejercicios pueden tener muchas aplicaciones, especialmente en el campo dei diseno gráfico y de la publicidad.
Bruno Munari
Diseño y comunicación visual
Editorial Gustavo Gili, S. A.
Contos Portugueses
Havia um mercador muito rico, e assim como cada dia
se lhe iam acrescentando suas riquezas, assim nele se
lhe ia multiplicando tanta avareza, que em outra cousa
não trazia sentido senão em ajuntar dinheiro. Este
estando em um dia vendendo suas mercadorias, tomou
quatrocentos cruzados em ouro, que havia vendido, e
deitou-os em uma bolsa, e despois de recolher seu fato
se foi para casa entesourar.
Indo pelo caminho fazendo suas contas com a imaginação,
lhe acertou cair a bolsa, e até que chegou a casa não a
achou menos. Esteve para perder o juízo juntamente
com a bolsa. Com grande dor e paixão se foi ao duque,
que era senhor daquela cidade, e lhe pediu que man-
dasse Sua Excelência em seu nome apregoar que quem
achasse uma bolsa com quatrocentos cruzados em ouro,
que os trouxesse diante dele, que lhe daria quarenta
cruzados de achado. Foi dado o pregão pela cidade,
e sendo ouvido de todos, chegou a ouvidos de quem
tinha achado a bolsa, que era uma mulher viúva, muito
pobre e virtuosa. E ouvindo dizer que davam quarenta
cruzados de achado foi mui leda, entendendo que ficar
com a bolsa seria infernar sua alma.
Assim com esta determinação se foi diante do duque e
lhe pôs em sua mão a bolsa que havia achado assim e
da maneira que o mercador a havia perdido. Vendo o
duque a pobreza desta mulher, e que era digna de ser
grandemente favorecida, logo mandou chamar o merca-
dor e lhe disse como a bolsa havia já aparecido, que não
faltava mais que cumprir a sua promessa àquela mulher
honrada que a havia achado. Folgou em extremo o avarento
mercador, porém achegou-lhe à alma o ver que havia
de dar os quarenta cruzados que tinha prometi-
do de achado, e assim imaginou logo naquele instante
um ardil para os não dar, e foi que tomou a bolsa e
vazou o dinheiro em uma mesa que ali estava, e contou-o,
e posto que o achasse certo, contudo isso, virando para a
mulher que o havia achado, lhe disse:
- Mulher de bem, aqui nesta bolsa faltam tinta e
quatro escudos venezianos que estavam de mais
dos quatrocentos cruzados em ouro que aqui estão.
A boa velha afrontada e corrida, lhe disse:
- De maneira, senhor, que credes de mim que vos
havia de furtar o vosso dinheiro! Quem me obrigava,
tendo eu em meu poder essa bolsa, a trazê-la aqui,
senão não querer eu o alheio?
Não deixava o mercador de gritar e de dar vozes
dizendo que lhe fosse buscar os trinta e quatro escudos
venezianos que faltavam, se queria que lhe desse o
achado que tinha prometido.
O duque, conhecendo a malícia do mercador e tudo
aquilo que fazia e dizia era a fim de se escusar de
dar o que prometera, entendendo que quanta era
a bondade da virtuosa mulher tanta era a mal-
dade do avarento mercador, imaginou que a maior
pena que podia dar a um homem tão ruim como
aquele era fazer que com seu engano se ofendesse
a si mesmo, e a esta causa, virando-se para ele, lhe disse:
- Vinde cá; se isto é assim como dizeis, porque
me não declarastes que a bolsa levava mais esses
escudos de ouro? Ora eu tenho entendido que vós sois
tal que quereis fazer o alheio vosso, e que esta bolsa
que essa mulher honrada achou não é vossa, pois nela
faltam esses ducados venezianos que dizeis; antes
essa bolsa que se achou sem dúvida nenhuma é
uma que nesse próprio dia perdeu um meu criado
com esta mesma soma de dinheiro que essa tem,
e pois sendo assim como é, a mim e não a vós pertence.
E dizendo isto virou-se para onde estava a velha,
e lhe disse:
- Boa mulher, pois que achastes esta bolsa com estes
cruzados de ouro, eu vos faço graça dela com o dinheiro
que tem.
Não se atreveu, o inconsiderado avarento a replicar
ao que o duque dizia; antes - arrependido de não haver
cumprido a palavra que prometera - se foi para casa
chorar seu desastre.
(in Contos e Histórias de Proveito e Exemplo, 1575)
Gonçalo Fernandes Trancoso
Contos Portugueses
Zacarias Nascimento
Plátano Editora
quinta-feira, agosto 03, 2006
Inez Wijnhorst
quarta-feira, agosto 02, 2006
Inês Gonçalves
Deitar-se algumas vezes nos sulcos
do sono da noite anterior,
reconhecendo como um felino doméstico
o cheiro das nossas mantas. Não
lavar os dentes e sobretudo esquecer
de baixar as persianas. Coleccionar
pontas sucessivas de cigarros, jornais
de muitos ontens e rimas
de livros lidos só três páginas. Não
endireitar a curva daquele candeeiro,
deixar as gavetas abertas
com colírios, comprimidos e roupas
à vista. Amontoar em cima da cómoda
brincos ímpares, perfumes sem tampa, pequenos espelhos
quebrados, alfinetes, cartas, rascunhos
e chávenas de chá servido há dias, deixar
calar-se o CD com os lieder de Schumann
afastando os sapatos de muitos caminhos
e a roupa de todas as horas.
Inês Gonçalves
OS SOLISTAS, Um Quarto com Cidades ao Fundo
Os Outros
Antologia de Poesia Portuguesa
Anos 80 e depois
Coordenação, prefácio e notas deLeopoldino Serrão
editora ausência
Jorge Guimarães
NESSA MARGEM DO TEMPO
Qual é a proporção entre mim e o céu?
Porque é que o infinito me suspende
da beira do meu túmulo, que o destino já marcou?
Porque é que sou capaz de compreender as estrelas
e ignoro a razão delas
tanto como a minha?
Porque é que sinto em mim o infinito
como se eu próprio fosse feito dele
e a minha vida tomba como folha
caduca e para sempre?
Porque é que a morte é eterna
e o tempo só me sobra para percebê-lo?
Porque é que ele luta contra mim
se sabe bem quem é o vencedor?
Porque é que as estrelas e as formigas morrem
e renascem outros astros, outros homens
e eu me desfaço como pirâmide
reduzida pelo vento a alguma areia?
Quanto dura um cedro do Líbano,
ou uma catedral, uma montanha,
a sístole dum astro, a viagem da térmita
arrastando um bago de trigo?
E o meu coração, que vai espremendo o sangue,
como deve por vezes estar cansado,
e os meus pés que vão somando passos
aquietam-se esquecidos sobre a erva,
e os olhos que me contavam astros
já se contentam com alguma estrela,
e a vida que em mim fremia, descontente,
passa-me à beira, fria, como um rio,
e o regaço das mulheres que me embalava
esconde-me o desejo emparedado
Porque é que as gerações futuras não são praias
aonde o tempo empurre a minha vida,
porque é que a vida é casta de prazer,
adoecida de tempo, embebedada de sonho,
porque é que eu sei as coisas do meu ser
difusa, esparsamente, quando ponho
os meus olhos em mim e me abandono
nessa margem do tempo onde parado
me julgo a imaginar o seu silêncio.
A ideia do silêncio onde me guardo.
2/7/87, Londres
Jorge Guimarães
Odes Nocturnas
Guimarães Editores
1990
terça-feira, agosto 01, 2006
Jorge Reis-Sá
nasce numa cratera de deus
anos antes, um pequeno corpo rochoso beijou
a pele do pátio e um pequeno estrondo, tal suspiro
saiu da sua boca, expirou
a brisa, breve e quente
esvoaça sobre os sulcos da terra
e leva consigo uma espera
hoje essa terra és tu
e um amor disponível é a espera
que espera algures por ti
Jorge Reis-Sá
A Palavra no Cimo das Águas
Campo das Letras
Marguerite Yourcenar
Escapavam-se-lhe da boca sílabas sacudidas
como os últimos gorgolejos de uma fonte em agonia:
- As Nereidas... As damas... Nereidas... Be-
las... Nuas... Um portento... Loiras... Cabelos
todos loiros...Foram as únicas palavras que conseguiram
arrancar-lhe. Nos dias seguintes, por diversas
vezes o ouviram repetir baixinho para con-
sigo: "Cabelos loiros... loiros", como se afa-
gasse seda. Depois, mais nada. Os olhos dei-
xaram de brilhar, mas o olhar tornou-se vago
e fixo e adquiriu estranhas propriedades; con-
templa o sol sem pestanejar; talvez se com-
praza a fitar esse objecto tão esplendorosa-
mente loiro. Encontrava-me na aldeia durante
as primeiras semanas do seu delírio: nem fe-
bre, nem o menor sintoma de insolação ou de
um ataque. Os pais levaram-no a um mosteiro
célebre das redondezas para que fosse exor-
cizado: deixou-se conduzir com a brandura
de um cordeiro doente, mas nem as cerimó-
nias da Igreja, nem as fumigações de incenso,
nem os ritos mágicos das velhas da aldeia
conseguiram expulsar-lhe do sangue as loucas
ninfas da cor do sol. Os primeiros dias do seu
novo estado passaram-se num vaivém cons-
tante: voltava incansavelmente ao local onde
se dera a aparição; existe aàuma fonte onde
os pescadores vão por vezes abastecer-se
de água doce, um valezinho cavo, um campo
de figueiras com um carreiro que desce até ao mar.
(continua)
A Salvação de Wang-Fô
e outros Contos Orientais
Marguerite Yourcenar
Publicações D. Quixote