domingo, novembro 26, 2006

Mário Cesariny

Mário Cesariny deixou-nos... mas não totalmente

O POETA CHORAVA...

O poeta chorava
o poeta buscava-se todo
o poeta andava de pensão em pensão
comia mal tinha diarreias extenuantes
mas buscava uma estrela talvez a salvação?
O poeta era sinceríssinlo
honesto
total
raras vezes tomava o eléctrico
em podendo
voltava
não podendo
ver-se-ia
tudo mais ou menos
a cair de vergonha
mais ou menos
como os ladrões

E agora o poeta começou por rir
rir de vós ó manutensores
da afanosa ordem capitalista
comprou jornais foi para casa leu tudo
quando chegou Ă página dos anúncios
o poeta teve um vómito que lhe estragou
as únicas que ainda tinha
e pôs-se a rir do logro é um tanto sinistro
mas é inevitável é um bem é uma dádiva

Tirai-lhe agora os poemas que ele próprio despreza
negai-lhe o amor que ele mesmo abandona
caçai-o entre a multidão
crucificai-o de novo mas com mais requinte.
Subsistirá. É pior do que isso.
Prendei-o. Viverá de tal forma
que as próprias grades farão causa com ele.
E matá-lo não é solução.
O poeta
O Poeta
O POETA DESTROI-VOS

Mário Cesariny
nobilíssima visão
Colecção Poesia e Verdade
Guimarães & C.ª Editores
1976



BARRICADA

Quando já não pudermos mais chorar e as palavras forem peque-
ninos suplícios e olhando para trás virmos apenas homens desmaia-
dos, então alguém saltará para o passeio, com o rosto já belo, já
espontâneo e livre, e uma canção nascida de nós ambos, do mais
fundo de nós, a exaltar-nos!
Tu sabes se te quero e se fomos os dois abandonados, abandona-
dos para uma bandeira, para um riso que sangre, para um salto no
escuro, abandonados pelos lúgubres deuses, pelo filme que corre e
desaparece, pela nota de vinte e um pedais, pela mobília de duas
cadeiras e uma cama feita para morrer de nojo. Minha criança a
quem já só falta cuspir e enviar corpo e bens para a barricada, meu
igual, tu segues-me; tu sabes que o caminho é insuportavelmente
puro e nosso, é um duende gritando no telhado as ervas misteriosas,
é um rapaz crescendo ao longo dos teus braços, é um lugar para sem-
pre solene, para sempre temido! E o Rossio é uma praça para fazer
chorar. Salvé, ó arquitectos! Mas choremos tanto que será um dilú-
vio. Automóveis-dilúvio. Sobretudos-dilúvio. Soldadinhos-dilúvio. E
quando essa água morna inundar tudo, então, ó arquitectos, traba-
lhai de novo, mas com igual requinte e igual vontade: vinde trazer-
nos rosas e arame, homens e arame, rosas e arame.


MÁRIO CESARINY
A ÚNICA REAL TRADIÇÃO VIVA
Antologia da Poesia Surrealista Portuguesa
Perfecto E. Quadrado
Assírio & Alvim

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