sexta-feira, novembro 24, 2006

Letra B - Boris Vian

DELIGNY*

É preciso que se diga, com pesar
As mulheres belas nuas não coincidem jamais
Com as beldades vestidas
Existem naturalmente excepções
A minha mulher, para começar. A sua também
Se tiver escrito estas linhas
Mas eu cá não acredito, mente como eu respiro.

Boris Vian
Cantilenas em geleia
Tradução e Nota Introdutória de
Margarida Vale de Gato
Relógio d´Água

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* Piscina pública flutuante no cais Anatole-France, extinta em 1993.



ESPATIFAM O MUNDO


Espatifam o mundo
Aos bocados
Espatifam o mundo
À martelada
Mas estou-me nas tintas
Estou-me bem nas tintas
Sobra bastante para mim
Sobra bastante
Basta que eu ame
Uma pena azul
Um caminho de areia
Uma ave medrosa
Basta que eu ame
Um pé de erva ralo
Uma gota de orvalho
Um grilo do bosque
Podem dar cabo do mundo
Aos bocados
Sobra bastante para mim
Sobra bastante
Terei sempre um pouco de ar
Um pequeno fio de vida
Alguma luz no olhar
E o vento nas urtigas
E mesmo se, mesmo se
Me meterem na prisão
Sobra bastante para mim
Sobra bastante
Basta que eu ame
Essa pedra corroída
Esses ganchos de ferro
Onde o sangue se demora
Amo, eu amo
A tábua gasta da cama
A enxerga na madeira
A poeira soalheira
Amo o ralo que se abre
Os homens agora entrados
Que avançam, que me levam
Ao reencontro do mundo
Ao reencontro da cor
Amo esses longos montantes
O cutelo triangular
Os senhores que estão de luto
Orgulho-me da minha festa
Amo, eu amo
O cesto cheio de farelo
Para pousar a cabeça
Oh, amo-o a valer
Basta que eu ame
Um pezinho de erva ralo
Uma gotinha de orvalho
Um amor tímido de ave
Espatifam o mundo
Com seus pesados martelos
Sobra bastante para mim
Sobra bastante, meu amor.

Boris Vian
Cantilenas em geleia
Tradução e Nota Introdutória de
Margarida Vale de Gato
Relógio d´Água



DE TANTO SE VEREM


De tanto se verem
Há palavras que vos poriam doentes
Palavras conhecidas mas muito perigosas de manejar
A não ser que sejam rodeadas de música
Também há quem meta açúcar nas amêndoas amargas
Palavras como areia, erva
Como sol, como deitados lado a lado
Como pele dourada, como cabelos louros
Como dentes brilhantes e lábios salgados
E depois outras palavras, ainda mais perigosas
“Ninguém à vista, podemos seguir”
E as mais perigosas de todas:
“É ainda melhor à quinta vez.”
Felizmente, que há carradas de aeronaves
A fabricarem fenomenologia a granel
E a meterem-vos bombas atómicas de atravesso pela
goela...
Peço desculpa... o sopro da inspiração...
Não é todos os dias que a musa nos visita.

Boris Vian
Cantilenas em geleia
Tradução e Nota Introdutória de
Margarida Vale de Gato
Relógio d´Água



ESTIVERA ELA AQUI TÁO PESADA


Estivera ela aqui tão pesada
Com o seu ventre de ferro
E as suas abas de latão
Os seus tubos de água e de febre
Correria sobre os carris
Como a morte na guerra
Como a sombra nos olhos
Nela há tanto trabalho
Tantas e tantas horas de lima
Tanta pena e tantas dores
Tanta cólera e tanto ardor
E há tantos tantos anos
Tantas visões amontoadas
De vontade concentrada
De feridas e de orgulhos
Metal arrancado ao chão
Martirizado pela chama
Dobrado atormentado rebentado
Torcido em forma de sonho
Está o suor das eras
Fechado nesta gaiola
Dez e cem mil anos de espera
E de rudeza vencida
Se sobrasse
Um pássaro
E uma locomotiva
E eu sozinho no deserto
Com o pássaro e a coisa
E me dissessem escolhe
Que faria eu que faria
Ele teria um bico miúdo
Como convém aos conirrostros
Botões brilhantes nos olhos
E pequeno ventre redondo
Eu tê-lo-ia na mão
O coração bater-lhe-ia tão depressa.
A toda a volta o fim do mundo
Em duzentos e doze episódios
Ele teria penas cinzentas
Um pouco de ferrugem na quilha
E suas finas patas secas
Agulhas forradas de pele
Então que é que há-de guardar
Pois tudo tem de perecer
Mas pelos seus leais serviços
Deixamo-lo conservar
Uma única amostra
Pouca-terra ou passaroco
Recomeçar tudo do princípio
Todos os espessos segredos perdidos
Toda a ciência desmoronada
Se eu deixar a máquina
Mas as suas penas são tão finas
E o seu coração bateria tão depressa
Que eu guardaria o pássaro

Boris Vian
canções e poemas



DE BARBATANAS


A Sereia é um animal, regra geral louro,
Que se instala a um canto de um mar movimentado
E se estende sobre um enorme calhau
À espreita dos intrépidos navegantes
Por motivos extra-náuticos
A Sereia grita como um desalmado
Em primeiro lugar, para atrair os homens
Mas na realidade, também para demonstrar
Que não é um peixe verdadeiro.

Apesar desse complexo de inferioridade
Nunca hesita em fazer olhinhos aos grandes capitães
peludos
Mas a Sereia não tem sorte nenhuma
Porque na esteira de Monsieur Dufrenne*
Sabemos que os marinheiros têm (às vezes) maus
costumes.


Boris Vian

* Personalidade parisiense dos anos 30. director do Casino de Paris e do
ace, conselheiro municipal e general. que foi assassinado. provavel-
ente por um jovem prostituto e antigo marinheiro, que conservava o uni-
mie para as suas actividades lucrativas.


La vie, c'est comme une dent
D'abord on y a pas pensé
On s'est contenté de mâcher
Et puis ça se gâte soudain
Ça vous fait mal, et on y tient
Et on la soigne et les soucis
Et pour qu'on soit vraiment guéri
Il faut vous l'arracher, la vie

Boris Vian



Chérie viens près de moi
Ce soir je veux chanter
Une chanson pour toi.

Une chanson sans larmes
Une chanson légère
Une chanson de charme.

Le charme des matins
Emmitouflé de brume
Où valsent les lapins.

Le charme des étangs
Où de gais enfants blonds
Pêchent des caïmans.

Le charme des prairies
Que l'on fauche en été
Pour pouvoir si rouler.

Le charme des cuillères
Qui raclent les assiettes
Et la soupe aux yeux clairs.

Le charme de l'œuf dur
Qui permis à Colomb
Sa plus belle invention.

Le charme des vertus
Qui donnent au péché
Goût de fruit défendu.

J'aurais pu te chanter
Une chanson de chêne
D'orme ou de peuplier.

Une chanson d'érable
Une chanson de teck
Aux rimes plus durables.

Mais sans bruit ni vacarme
J'ai préféré tenter
Cette chanson de charme.

Charme du vieux notaire
Qui dans l'étude austère
Tire l'affaire au clair.

Le charme de la pluie
Roulant ses gouttes d'or
Sur le cuivre du lit.

Le charme de ton cœur
Que je vois près du mien
Quand je pense au bonheur.

Le charme des soleils
Qui tournent tout autour
Des horizons vermeils.

Et le charme des jours
Effacés de nos vies
Par la gomme des nuits.

Boris Vian

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