Saudas a tua sombra
na última escadaria da noite
Enches os cântaros matinais
com a água azul das derradeiras estrelas
Preparas assim a coluna vertical do dia
mas tens de entrelaçar os signos do vento
e atravessar as silentes passadeiras da água
em que se balbucia o que não se pode dizer
em que tens de dizer o que na língua oscila
como um talismã incerto que resvala na garganta
És tão anónimo que não sabes que pedra ou ramos hás-de
[oferecer
aos vivos para que não se afundem num pântano
É então que inventas uma constelação em forma de barco
e regressas à rugosa identidade terrestre
António Ramos Rosa
As espirais do silêncio
1 comentário:
ANTĂ“NIO RAMOS ROSA
[Faro, 1924]
AntĂłnio Ramos Rosa frequentou em Faro os estudos secundários, que nĂŁo concluiu por motivos de saĂşde. Trabalhou como empregado de escritĂłrio, desenvolvendo simultaneamente o gosto pela leitura dos principais escritores portugueses e estrangeiros, com especial preferĂŞncia pelos poetas. Em 1945 vai para Lisboa e dois anos depois volta a Faro, tendo integrado as fileiras do M.U.D. Juvenil, onde militou activamente. Regressado a Lisboa, foi professor de PortuguĂŞs, FrancĂŞs e InglĂŞs, ao mesmo tempo que estava empregado numa firma comercial, e começou a fazer traduções para a Europa-AmĂ©rica, trabalho que nunca mais abandonaria e no qual veio a atingir notável qualidade. O continuado interesse pela actividade literária levou-o a relacionar-se com um grupo de escritores que o incentivaram na publicação dos seus poemas e artigos de crĂtica, tendo colaborado em numerosos jornais e revistas. Com alguns desses escritores, fundou em 1951 a revista Ă�rvore, que veio a ser uma das mais marcantes da dĂ©cada, procurando divulgar os textos dos poetas e prosadores portugueses mais significativos no tempo, bem como os grandes nomes da literatura estrangeira. Co-dirigiu tambĂ©m as revistas Cassiopeia e Cadernos do Meio-Dia. A crescente importância que a actividade literária foi tomando na sua vida levou-o a certa altura a abandonar o emprego no escritĂłrio em que trabalhava, para a ela se dedicar exclusivamente, com todas as consequĂŞncias que tal decisĂŁo acarretava. A atitude crĂtica que permanentemente exercitou sobre a sua prĂłpria palavra como sobre a palavra alheia faz de A.R.R. um dos mais esclarecidos crĂticos portugueses contemporâneos, o que se manifesta em inĂşmeros artigos e recensões sobre poetas portugueses e estrangeiros, bem como na publicação de vários ensaios centrados na temática da poesia. A.R.R. tem, no entanto, o cuidado de separar de uma forma muito nĂtida a sua actividade de crĂtico, em que nĂŁo pode deixar de utilizar critĂ©rios e referĂŞncias racionais, da sua actividade criadora: enquanto poeta faz da ignorância e da radical suspensĂŁo de todos os saberes e hábitos adquiridos o Ăşnico mĂ©todo para a eclosĂŁo da sua palavra poĂ©tica. Na verdade, a procura da palavra justa para dizer as "coisas nuas" e a reflexĂŁo sobre a realidade e a possibilidade dessa palavra Ă©, talvez, o Ăşnico tema desta poesia, na qual Ă©, no entanto, possĂvel assinalar diferentes fases: recortando-se duma problemática neo-realista de solidariedade para com o destino dos homens e do mundo, O Grito Claro (1958) e Viagem AtravĂ©s de Uma Nebulosa (1960) utilizam uma linguagem e uma vivĂŞncia ainda devedoras dessa estĂ©tica, combinadas com uma imagĂ©tica herdada do surrealismo. Mas encontramos já de uma forma incipiente nessas primeiras recolhas algumas das constantes da obra do poeta: um enraizamento pelo corpo na Terra, nĂŁo numa Terra utĂłpica e futura, mas na materialidade mais originariamente primitiva da natureza; uma libertação, pela palavra mais solitária, de todas as prisões e constrangimentos que a poderiam cercear; uma permanente atenção Ă materialidade da prĂłpria linguagem poĂ©tica, que a desliga tanto da sua função representativa como da sua função expressiva (pois nĂŁo se trata já de exprimir um real subjectivo, tĂŁo caro aos poetas lĂricos). Esta particular concepção da Poesia irá ser retomada mais tarde quer pelo grupo "Poesia 61", quer pelos poetas experimentalistas. ApĂłs um decisivo encontro com a poesia de Éluard, A.R.R. abandona definitivamente a retĂłrica e a imagĂstica neo-realista e surrealista, para se concentrar numa palavra solar, pura e rigorosa, podemos dizer mesmo elementar, Ă medida que a exigĂŞncia de um retorno Ă origem se tornará numa das suas obsessões. ExigĂŞncia que lhe pedirá atĂ© para substituir Ă sua prĂłpria voz uma verdadeira voz inicial (tĂtulo de uma recolha de 1960), memĂłria da criação mais remota, que se ergue de um territĂłrio onde se indistinguem sujeito e objecto. Como nota Eduardo Lourenço, a poesia de A.R.R. nunca mais abandonará esse porto "anterior a todos os portos". Esta poĂ©tica do puro inĂcio expande-se a todo o espaço e a toda a matĂ©ria, atravĂ©s dum erotismo mediado pelo corpo prĂłprio, pelo corpo da mulher, pelo corpo da terra, pelo corpo da palavra. Da apropriação destes espaços atravĂ©s da palavra poĂ©tica, nunca dada a priori mas conquistada atravĂ©s de um desejo, de um esforço, de uma viagem, nasce uma felicidade exultante e viva que frequentemente nos Ă© transmitida por metáforas de claridade. O contraponto desta plenitude meridional Ă© a dificuldade com que o poeta se debate ao tomar consciĂŞncia da sombra que nasce da raĂz de toda a realidade e da realidade de toda a palavra. A luta entre a luz e as trevas, que Ă© central em Sobre o Rosto da Terra, vai invadindo gradualmente de negatividade a poesia subsequente, atĂ© lhe ameaçar toda a arquitectura em A Pedra Nua (1972), onde a plenitude solar dos primeiros livros Ă© substituĂda pela inquietante suspeição sobre o poder dessa mesma palavra, num territĂłrio cada vez mais calcinado, atĂ© ao limite dum dizer que perde o fio e se transforma num quase ininteligĂvel balbuciar (Declives, 1980). A partir de Volante Verde (1986) assistimos no entanto a uma espĂ©cie de "reconciliação com as palavras" atravĂ©s duma certa forma de integração da ausĂŞncia, já nĂŁo combatida mas incluĂda como forma estruturante da prĂłpria poesia. O poeta encontra entĂŁo um novo fĂ´lego, atravĂ©s da "enigmática profusĂŁo da terra", numa exaltação da natureza que adquire uma feição animista. O universo poĂ©tico de A.R.R., jogando com um nĂşmero relativamente restrito de vocábulos e de temas, dá predominância Ă s palavras substantivas e elementares tais como: pedra, água, árvore, cal, mĂŁo, muro, e mesmo Ă s formas mais Ănfimas e humildes: unha, insecto, pĂł, cabelo, sopro, espuma, baba do caracol. Estes elementos sĂŁo retomados e combinados caleidoscopicamente, em ciclos que continuamente se reiniciam. A exploração ontolĂłgica e poĂ©tica vai-se processando em movimentos cada vez mais lentos e subtis, num itinerário em que a densidade do espaço e a substância dos objectos se vai tornando progressivamente mais permeável e transparente. A desmaterialização das coisas e da lĂngua que as diz liga-se intimamente ao modo como o poeta apreende o ser do universo - misto de presença e de ausĂŞncia, de verdade e nĂŁo-verdade, de sim e de nĂŁo (O NĂŁo e o Sim Ă© aliás tĂtulo de uma recolha de 1990). Criando um campo semântico sobre a finĂssima linha de demarcação entre a afirmação e a negação, o poeta foge da dicotomia, da disjunção, da determinação, num espaço cada vez mais aberto e ilimitado, que se adequa cada vez melhor Ă manifestação "do que nĂŁo tem nome". O poeta, que procura entrar em consonância com esse horizonte do real, torna-se tambĂ©m ele corpo mĂstico e mĂtico do universo, onde se conciliam por fim todos os contrários. Poesia de coordenadas eminentemente espaciais, ela tem evoluĂdo ultimamente no sentido de uma mais acentuada articulação discursiva, a par de uma aguda consciĂŞncia da passagem do Tempo, com as questões que essa consciencialização coloca: "será ainda possĂvel construir sobre a cinza do tempo/ a casa da maturidade com as suas constelações brancas?" A. R. R. recebeu vários prĂ©mios de poesia, o primeiro dos quais pela obra Viagem AtravĂ©s de Uma Nebulosa, partilhado ex-aequo com Henrique Segurado. Em 1980, o PrĂ©mio do Centro PortuguĂŞs da Associação de CrĂticos Literários, pelo livro O IncĂŞndio dos Aspectos; em 1988, o PrĂ©mio Pessoa; em 1989, o PrĂ©mio APE/CTT, pela recolha Acordes, e, em 1990, o Grande PrĂ©mio Internacional de Poesia, no âmbito dos Encontros Internacionais de Poesia de Liège.
in Dicionário Cronológico de Autores Portugueses, Vol. V, Lisboa, 1998
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