quinta-feira, novembro 23, 2006
Henrique Dinis da Gama
Foto de Henrique Dinis da Gama
O NEVOEIRO
A névoa é a poeira da civilização que veste as coisas de
conhecimento, de cultura, de significações, impedindo
que elas apareçam nuas, tais como são. E como são,
quando aparecem nuas, como no primeiro dia?
José Gil, Diferença e Negação na Poesia de Fernando Pessoa
A partida tinha sido igual à de todos os dias.
De repente uma nuvem sobre a tempestade.
Poderia passar por fumo mas aparece como um
pó reluzente, iluminando a atmosfera do barco
de modo a não criar sombras. Todos se vêem,
todos se sentem. Cessou o balanço que os con-
sumia. Instalou-se uma calma luminosa.
A nuvem vai passando, de dentro para fora, dos
salva-vidas para as vigias. É morna e confortá-
vel, somatório do calor dos corpos. E não mais
se vêem as margens. Ter-se-á perdido o rumo?
Cai o certificado de navegabilidade, caem os
quadros. Na casa das máquinas a atmosfera é
limpa. O barco repousa; cede à deriva. Passa
à escuta do que o rodeia, cego de nevoeiro.
Cheiros e fumos penetram nas cabinas, en-
ganando distâncias, criando um cenário de
afastamento e contacto. Ninguém se move.
Guiados pela deriva, os passageiros fundem-se
numa só mente, numa só memória. Em silên-
cio e na imobilidade entregam-se ao acaso.
Não temem acidentes. E que eles aconteçam.
Caiu a pálpebra cinzenta do nevoeiro; desfez-
-se a fronteira entre a terra e o mar. Os raios
de sol já não assombram. Filtram-se por uma
cintilação domesticada e íntima, transformam-
-se no relevo sonoro, no ouvido de chumbo
ou prata que se dissolve com o vento. As cores
misturam-se por um pontilhismo difuso. Como
uma pérola que nasce, o nevoeiro rodeia-se de
superfícies concêntricas, apela para as exten-
sões fumadas. Quando se adensa, elimina vec-
tores e referenciais.
Henrique Dinis da Gama
Entre Mar e Margem
Caminho
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