sexta-feira, novembro 03, 2006

Augusto Abelaira

ENCONTRO


(Continuação)

- Esses ou outros.
Ana Isa procurou um cigarro, achou-o
- Ajuda-me? Com vento não me atrevo...
Geralmente não me atrevo a confessar isto,
tenho vergonha. É estúpido como se pode ter
vergonha de uma coisa tão pouco importante.
não é? E no entanto... Ah. agradeça-me, ah,
espante-se! Uma tal confissão! Se soubesse
como me custa! Eapante-se... É preciso que eu
tenha muita confiança em si, é preciso que
eu acredite muito em si para assim lhe entre-
gar nua, absolutamente nua, a minha alma...
Tamanha sinceridade! E se estou a falar sem
olhar para si é porque ainda há um pouco
de vergonha em mim... Mas deixe-me ter a
coragem de lhe dizer tudo, de ser absoluta-
mente sincera. - Olhos nos olhos. - Não sei
acender um fósforo quando está vento!
-- Sofro por não ser mais alto.
- Gostaria que o meu nariz não fosae tão
grande.
- Fui sempre mau aluno em matemática.
- Neste momento há, pelo menos, meio
milhão de mulheres que choram os maridos
mortos... E nós aqui!
-A morte é inevitável...
- A morte é inevitável, é um facto da natu-
reza, veloz como uma gazela,. cidade tenta-

cular... Não! Muitos milhares de mortes podiam ser evitadas. Não
são porque milhões de homens e de mulheres estão como nós aqui ou
ali. Apenas aqui ou ali.
- Apenas.
- Meio milhão. Que faço eu para que o meu marido seja feliz?
Ele é bom, ele gosta de mim, ele procura ajudar-me... Eu sou boa, eu
gosto dele, eu procuro ajudá-lo... Ah. gostaria de o ajudar, de me inte-
ressar pelos problemu que o preocupam. Não posso, às vezes começo,
mas não posso... E eu seria mais feliz, tenho a certeza, se o ajudasse...
Mas penso: dá tanto trabalho ser feliz! Dá muito menos trabalho ser
infeliz!
- Mal desceste as escadas, vi logo que tinhas um penteado novo.
Perdi a partida de xadrez. Pensava em ti e não no jogo.
-Ah, não, não me pode compreender... Nunca foi aos Açores!
Só quem viveu, como eu, nos Açores com aquela humidade, com aquele
isolamento de me saber rodeada por água por todos os lados... -Sor-
riu: - Um mar com cintilações...
- Uma ilha e não uma península, as penínsulas são rodeadas por
todos os lados menos por um...
- Quais estrelas! Adjectivemos: milenárias. Quais estrelas mi-
lenárias !
E ao longe, erguendo-se acima do horizonte, um transatlântico
preto com uma chaminé vermelha.
- Sulcando os sete mares, cortando as ondas alterosas...
- Célere...

FIM


Augusto Abelaira
eva-natal 1962

Sem comentários: