sábado, novembro 04, 2006

Letra B - Bernardo Pinto de Almeida

Abandono


A quem senão a ti direi
como estou triste? Mas se a tristeza vem
de tu não estares, como ta direi, como hei-
-de juntar o que me está doendo ao ven-
to que não bate mais à tua porta? Eu sei

que a tristeza é só isto, é só isto,
o descoincidir consigo mesmo, eu sei,
descoincidir com os outros, estava previsto
porque dentro de si o mundo não coincide e
não há senão tristeza. Em cada um está Cristo

Sempre abandonado, cada um abandonado
a si mesmo, sem princípio e sem fim,
pois no princípio o amor era dado
promessa de te ter sempre junto a mim
não ausência, nem dor, nem habitado

ser por todo este absurdo. Morrer
um pouco, disse, sem saber o que dizia
pois eram só palavras, como se a prometer
tudo aquilo que havia e não havia.

Não haver palavras és tu a desaparecer.


Bernardo Pinto de Almeida
hotel spleen
Quetzal Editores



Queijo curado


Não: não escrevi hoje nenhum poema
e também se escrevesse nada iria adiantar
nem que falasse dos teus olhos borrados de rimei
depois de teres chorado ou da tua boca esmagada
como uma rosa desfeita pelo vento da tarde. Mas não
ao contrário de outros dias em que a pena
de mim mesmo me compele insidiosamente a avançar
para o transbordo de palavras sobre um pobre papel
confundindo poesia e catarse ou pão com marmelada
felizmente não me visitou a inspiração.

Se pelo contrário lembrar-te fosse deveras urgente
nem soubesse sequer como não pensar em ti
escrever um poema fosse a forma imaginosa
de voltar aí ao momento doce e infernal uma outra vez
apesar do que dói apesar de ser tarde apesar de apesar
as coisas estariam piores sentir-me-ia doente
nem poderia dar por ela quando o cão se aproxi-
ma devagar a encostar o focinho na minha mão ociosa
ou distrair-me com a luz doce no rio quando a noite se fez
sequer chegar a casa a horas decentes para jantar.

Mas não: eu hoje consegui esse feito ainda assim
modesto mas já em si prenunciador de mudança de estação
que consistiu apenas em não chegar a perder-
-me nessa memória amarga do teu corpo perfeito
lamentar aquele beijo que ficou por roubar
ou o momento em que julgo que sob a tua saia a min-
ha mão se deveria ter detido ainda que afastada pela tua
[mão
na esperança de na pele por um momento obter
a forma exacta escultórica e macia de um tal jeito
que agora até de olhos fechados a esculpisse no ar.

Fiquei tranquilamente a ler jornais do dia ou de antes
- alguns já tão antigos que nem me lembro de os ler -
portanto não fui atravessado pelo perpétuo transbordar
de memórias desconexas desse teu rosto amado.
Nem o facto de ele ter passado pela televisão
do meu ecrã mental me deixou perplexo por instantes
que fossem para além do razoável. Também não me per-
di nesse caleidoscópio de trevas que é imaginar-
-te portanto tudo bem: o mal está já quase curado
como um queijo. Falta só comê-lo com pão.


Bernardo Pinto de Almeida
hotel spleen
Quetzal Editores



essays on the elephant


o sedutor seduzido
emprenhou pelo ouvido
preconceitos morais
jamais.

- Olho o teu rosto e ouço torturado
o modo como nele a chuva cai
e lembro: lift is hard
and then you die

Quando a mosca cai no mel
ninguém pergunta
ao mel
como se sente.


Bernardo Pinto de Almeida
e outros poemas
Quetzal Editores



pequeno desenho
estrela
de repente um avião
e uma janela
a abrir-se sobre a rua


Bernardo Pinto de Almeida
e outros poemas
Quetzal Editores



Canone


A arrogância dos poetas nesses dias
passava pelo modo como nos cafés
se dispunham nas mesas: líricos
à esquerda próximos do balcão

épicos à direita alguns com chapéu
dramáticos em pé
na barra
modernos sentados mais ao fundo

despejando sobre brancos papéis de guardanapo
versos livres brancos de poemas em prosa
ou olhando avidamente para Rosa
a empregada mulata de vinte e tantos anos.

Tudo tão admiravelmente posto em ordem
segundo preceitos decerto muito antigos
dava àquela geração de vates surpreendidos
a aparência vaga de um conjunto de amigos.

Mas eis que Baudelaire
Mallarmé Pound Eliot
Wallace Stevens
chegavam a ser termos pronunciados
todos se disputavam
a recitar um verso de O' Hara
um terceto de cummings
uma melopeia à Charles Olson

um simples dito de Tzara.
Eu sentava-me nesse café
numa mesa próxima da porta
e pedia uma bica

folheava o jornal
entre dois goles de meia notícia
evitando sempre olhar para eles
mais que um instante breve

o suficiente para que quase alarmado
me inteirasse do estado
da poesia.
Mas se acaso pela rua distraído

um gato
corria atrás de um outro
ou um cão passava
ou tão-só um par de pernas na calçada

já de jornal na mão
passada apressada
saltava para fora do cân-
one two three four.


Bernardo Pinto de Almeida
hotel spleen
Quetzal Editores



poema do dia de hoje


Estava eu nisto
quando
cheguei à idade adulta
àquela plena consciência
de não andar no mundo pelos outros
mas por mim
pelo despontar da primavera
no azul do céu na manhã fresca
pela contemplação dos roseirais
pelo cheiro da urze
pelo cair do dia nas cidades
o seu comércio lento e evasivo
as suas montras docemente incendiadas
e pelo esperar da noite
quando o teu belo corpo
audaz e ansioso
se abre como a rosa
face ao meu.

Quer mais do que isto
um homem
do que saber-se inteiro
sereno agradecido
diante da sua própria morte?


Bernardo Pinto de Almeida
e outros poemas
Quetzal Editores

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