POETAS SEM AMOR
uma crónica de João Gaspar Simões
Teixeira de Pascoais
uma crónica de João Gaspar Simões
Teixeira de Pascoais
Sendo a poesia portuguesa das poesias amorosas mais originais do
mundo, acontece que alguns dos poetas de maior nomeda do
nosso tempo não só parece não terem amado mas, se porventura
o fizeram, dos seus amores quase não deixaram notícias nos versos que
escreveram.
Aàtemos, por exemplo, Teixeira de Pascoais, cuja biografia é árida
mais que nenhuma outra no capítulo sentimental, ou Fernando Pessoa,
que nos legou, em algumas cartas quase ridículas, um simulacro de na-
moro lisboeta, esvaziado de paixão, ou Afonso Duarte, dos três o único
que pagou portagem à entrada da ilha dos Amores, mas que nem por
isso viveu mais passionalmente que qualquer dos seus pares.
A propósito de Mário de Sá-Carneiro, cuja poesia também des-
denhou a tradição amorosa das letras portuguesas, disse eu um dia que
os poetas nacionais a quem não é dado esquecerem-se de si próprios,
mercê do amor que votam a outrem, se convertem, pela sua maior parte,
em casos monstruosos de subjectivismo lírico. O amor na poesia portu-
guesa, sustentei então, é a maneira mais corrente de o poeta sublimar
o seu ensimesmamento psicológico. “Transforma-se o amador na coisa
amada”, proclamou Camões, e nesta metamorfose se consubstancia, em
verdade, o fenómeno graças ao qual o lírico de língua pátria se mostra
capaz de continuar a cantar-se a si próprio na ilusão de que canta a
mulher a quem julga amar. Talvez que o mistério passional do nosso
Camões não esconda mais que um destino mítico: o próprio destino dos
poetas que em Portugal, julgando amar e morrer de amor por alguém,
apenas se amam e morrem de amor por si próprios. Ainda um dia há-de
descobrir-se, para vergonha e confusão dos seus biógrafos, que afinal o
apaixonado da Infanta Dona Maria nunca amou mulher nenhuma, andou
sempre perdidamente enamorado da sua própria pessoa.
Teria o século XX malogrado para sempre a lenda do erotismo fun-
damental da poesia portuguesa?
Assim parece, em verdade, respigando na obra destes três altos re-
presentantes da lírica nacional o que porventura nela subsiste da tradição
secular. De facto, nem Teixeira de Pascoais, nem Fernando Pessoa, nem
Afonso Duarte cumprem os mandamentos da religião tradicionalmente
venerada nas hostes da poesia portuguesa. Nenhum deles é um típico
poeta do amor. Se em Pascoais e em Afonso Duarte ainda há vislumbres
de uma passionalidade malograda, em Fernando Pessoa pode dizer-se que
nada transpira desse sentimento. E no entanto... Sim, e no entanto, de
todos eles é Fernando Pessoa o menos subjectivo, o menos ensimesmado.
Nem Fernando Pessoa nem Afonso Duarte mergulharam nesse pélago
íntimo onde Mário de Sá-Carneiro, por exemplo, se perdeu. Pelo con-
trário: nos dois a poesia nacional depura-se de muita ganga personalista
em suspensão na maior parte dos versos seus contemporâneos. E se
Teixeira de Pascoais, de entre todos, é o que mais fundo desce na espe-
leologia do ensimesmamento, apesar de tudo não se pode dizer que na
obra do autor do Regresso ao Paraíso a nota dominante seja o subjec-
tivismo. Subjectivista, é certo, ensimesmado, naturalmente, por vezes
animista e primitivo na sua visão do mundo, Pascoais iliba-se do pecado
mortal da poesia portuguesa consagrando a uma concepção filosófica
as disponibilidades subjectivas da sua personalidade. Repartindo-se pelos
heterónimos, outras pessoas em quem se desdobra, logrou o quase
misógino Fernando Pessoa vencer o enquistamento subjectivo que se
manifesta na personalidade dos nossos poetas que não amaram nem
foram amados; congeminando uma concepção do mundo à escala da
saudade portuguesa, na aridez do seu destino de isolado, alargou Teixeira
de Pascoais ao cosmos a complexidade de uma alma, destinada a, devo-
rar-se a si própria; e Afonso Duarte, esse, pĂ´de evadir-se de qualquer
menos nobre estagnação dos seus ideais de poeta amando, amando
deveras, pedras, rios, árvores, nuvens, tudo quanto na natureza e na
vida passivamente se deixa amar. Dos três foi Afonso Duarte o único
que amou - mas não uma mulher, não as mulheres, sim tudo que no
mundo é digno de amor.
As coisas estão a mudar, mas nem por isso a nossa poesia con-
temporânea deu sinal dessa mudança: sem peso na vida social, a mulher
portuguesa amada pelos poetas através dos séculos não foi, na maior
parte dos casos, mais que uma abstracção ou uma quimera. Na nossa
poesia amou-se muito o próprio amor, como diria Afonso Lopes Vieira.
Nem o próprio amor nela se ama todavia desde que o poeta encontra
no seu caminho, muito antes da mulher, qualquer coisa que o absorva
tão completamente que quando aquela porventura aparece já é tarde
para lhe dar a importância que merecia. Fernando Pessoa malbaratou
a sua juventude pelos cafés de Lisboa. As mulheres não acamaradavam
com os poetas no tempo em que os moços do Orpheu congeminavam
as suas truculentas aventuras literárias. E aàestá como Fernando Pessoa
só tarde vem a conhecer a única mulher da sua vida: Ofélia, sua com-
panheira de escritório, a qual não tinha estofo para ser amada por uma
natureza tão rica. E foi assim que os amores do poeta da Mensagem
o deixaram incólume de sofrimento ou de exaltação. Não há vestígios
desse amor na obra do poeta. Restam-nos as cartas que Carlos Queirós
publicou poucos anos depois da morte do autor d'a Ode Marítima,
o menos poético dos documentos humanos. “Reconheço que tudo isto
é cómico, e que a parte mais cómica disto tudo sou eu. Eu próprio
acharia graça, se a não amasse tanto, e se tivesse tempo para pensar
em outra coisa, que não fosse no sofrimento que tem prazer em causar-me
sem que eu, a não ser por amá-la, o tenha merecido; e creio bem que
amá-la não é razão bastante para o merecer.”
(Continua)
João Gaspar Simões
eva
mundo, acontece que alguns dos poetas de maior nomeda do
nosso tempo não só parece não terem amado mas, se porventura
o fizeram, dos seus amores quase não deixaram notícias nos versos que
escreveram.
Aàtemos, por exemplo, Teixeira de Pascoais, cuja biografia é árida
mais que nenhuma outra no capítulo sentimental, ou Fernando Pessoa,
que nos legou, em algumas cartas quase ridículas, um simulacro de na-
moro lisboeta, esvaziado de paixão, ou Afonso Duarte, dos três o único
que pagou portagem à entrada da ilha dos Amores, mas que nem por
isso viveu mais passionalmente que qualquer dos seus pares.
A propósito de Mário de Sá-Carneiro, cuja poesia também des-
denhou a tradição amorosa das letras portuguesas, disse eu um dia que
os poetas nacionais a quem não é dado esquecerem-se de si próprios,
mercê do amor que votam a outrem, se convertem, pela sua maior parte,
em casos monstruosos de subjectivismo lírico. O amor na poesia portu-
guesa, sustentei então, é a maneira mais corrente de o poeta sublimar
o seu ensimesmamento psicológico. “Transforma-se o amador na coisa
amada”, proclamou Camões, e nesta metamorfose se consubstancia, em
verdade, o fenómeno graças ao qual o lírico de língua pátria se mostra
capaz de continuar a cantar-se a si próprio na ilusão de que canta a
mulher a quem julga amar. Talvez que o mistério passional do nosso
Camões não esconda mais que um destino mítico: o próprio destino dos
poetas que em Portugal, julgando amar e morrer de amor por alguém,
apenas se amam e morrem de amor por si próprios. Ainda um dia há-de
descobrir-se, para vergonha e confusão dos seus biógrafos, que afinal o
apaixonado da Infanta Dona Maria nunca amou mulher nenhuma, andou
sempre perdidamente enamorado da sua própria pessoa.
Teria o século XX malogrado para sempre a lenda do erotismo fun-
damental da poesia portuguesa?
Assim parece, em verdade, respigando na obra destes três altos re-
presentantes da lírica nacional o que porventura nela subsiste da tradição
secular. De facto, nem Teixeira de Pascoais, nem Fernando Pessoa, nem
Afonso Duarte cumprem os mandamentos da religião tradicionalmente
venerada nas hostes da poesia portuguesa. Nenhum deles é um típico
poeta do amor. Se em Pascoais e em Afonso Duarte ainda há vislumbres
de uma passionalidade malograda, em Fernando Pessoa pode dizer-se que
nada transpira desse sentimento. E no entanto... Sim, e no entanto, de
todos eles é Fernando Pessoa o menos subjectivo, o menos ensimesmado.
Nem Fernando Pessoa nem Afonso Duarte mergulharam nesse pélago
íntimo onde Mário de Sá-Carneiro, por exemplo, se perdeu. Pelo con-
trário: nos dois a poesia nacional depura-se de muita ganga personalista
em suspensão na maior parte dos versos seus contemporâneos. E se
Teixeira de Pascoais, de entre todos, é o que mais fundo desce na espe-
leologia do ensimesmamento, apesar de tudo não se pode dizer que na
obra do autor do Regresso ao Paraíso a nota dominante seja o subjec-
tivismo. Subjectivista, é certo, ensimesmado, naturalmente, por vezes
animista e primitivo na sua visão do mundo, Pascoais iliba-se do pecado
mortal da poesia portuguesa consagrando a uma concepção filosófica
as disponibilidades subjectivas da sua personalidade. Repartindo-se pelos
heterónimos, outras pessoas em quem se desdobra, logrou o quase
misógino Fernando Pessoa vencer o enquistamento subjectivo que se
manifesta na personalidade dos nossos poetas que não amaram nem
foram amados; congeminando uma concepção do mundo à escala da
saudade portuguesa, na aridez do seu destino de isolado, alargou Teixeira
de Pascoais ao cosmos a complexidade de uma alma, destinada a, devo-
rar-se a si própria; e Afonso Duarte, esse, pĂ´de evadir-se de qualquer
menos nobre estagnação dos seus ideais de poeta amando, amando
deveras, pedras, rios, árvores, nuvens, tudo quanto na natureza e na
vida passivamente se deixa amar. Dos três foi Afonso Duarte o único
que amou - mas não uma mulher, não as mulheres, sim tudo que no
mundo é digno de amor.
As coisas estão a mudar, mas nem por isso a nossa poesia con-
temporânea deu sinal dessa mudança: sem peso na vida social, a mulher
portuguesa amada pelos poetas através dos séculos não foi, na maior
parte dos casos, mais que uma abstracção ou uma quimera. Na nossa
poesia amou-se muito o próprio amor, como diria Afonso Lopes Vieira.
Nem o próprio amor nela se ama todavia desde que o poeta encontra
no seu caminho, muito antes da mulher, qualquer coisa que o absorva
tão completamente que quando aquela porventura aparece já é tarde
para lhe dar a importância que merecia. Fernando Pessoa malbaratou
a sua juventude pelos cafés de Lisboa. As mulheres não acamaradavam
com os poetas no tempo em que os moços do Orpheu congeminavam
as suas truculentas aventuras literárias. E aàestá como Fernando Pessoa
só tarde vem a conhecer a única mulher da sua vida: Ofélia, sua com-
panheira de escritório, a qual não tinha estofo para ser amada por uma
natureza tão rica. E foi assim que os amores do poeta da Mensagem
o deixaram incólume de sofrimento ou de exaltação. Não há vestígios
desse amor na obra do poeta. Restam-nos as cartas que Carlos Queirós
publicou poucos anos depois da morte do autor d'a Ode Marítima,
o menos poético dos documentos humanos. “Reconheço que tudo isto
é cómico, e que a parte mais cómica disto tudo sou eu. Eu próprio
acharia graça, se a não amasse tanto, e se tivesse tempo para pensar
em outra coisa, que não fosse no sofrimento que tem prazer em causar-me
sem que eu, a não ser por amá-la, o tenha merecido; e creio bem que
amá-la não é razão bastante para o merecer.”
(Continua)
João Gaspar Simões
eva
2 comentários:
Foi o primeiro biĂłgrafo do poeta Fernando Pessoa.
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JO�O GASPAR SIMÕES
[Figueira da Foz, 25 de Fevereiro de 1903 - Lisboa, 6 de Janeiro de 1987]
Ficcionista, dramaturgo, crĂtico, ensaĂsta, biĂłgrafo, director literário de revistas e de editoras, JoĂŁo Gaspar Simões foi uma das personalidades literárias mais influentes dos segundo e terceiro quartĂ©is do sĂ©culo XX, mas tambĂ©m uma das mais controversas. Tendo frequentado interrompidamente o curso de Direito da Universidade de Coimbra, que viria a concluir sĂł em 1932, apĂłs ter-se matriculado em 1921, JoĂŁo Gaspar Simões foi, com JosĂ© RĂ©gio e Branquinho da Fonseca, o fundador da influente revista coimbrĂŁ, Presença (1927-1940), que revelou e valorizou os escritores do chamado Primeiro Modernismo (Fernando Pessoa, Mário de Sá-Carneiro, Almada Negreiros, etc.), alĂ©m de promover toda uma plĂŞiade de valores novos, numa campanha que opunha uma "literatura viva" a uma alegadamente desinteressante "literatura livresca". Embora sem os dotes excepcionais de um JosĂ© RĂ©gio (quer de teorização, quer de capacidade de análise), JoĂŁo Gaspar Simões era porĂ©m provido de uma impressionante capacidade de trabalho e de um quase sempre certeiro juĂzo crĂtico que tornou a um tempo temidos, respeitados e, Ă s vezes, detestados os folhetins literários com os quais se revelou um dos crĂticos mais sistemáticos de toda a nossa histĂłria literária (no Diário de Lisboa, no Mundo Literário, no Diário de NotĂcias, na revista Ă�tomo, JoĂŁo Gaspar Simões mostrou-se um dos nossos crĂticos mais assiduamente visĂveis, acompanhando, de perto, quase tudo quanto de importante se publicou entre nĂłs, durante cerca de meio sĂ©culo). Se como dramaturgo, a sua obra Ă© de valor duvidoso, como ficcionista, ElĂłi ou o Romance numa Cabeça (1932), Pântano (1940), Amigos Sinceros (1941) ou A Unha Quebrada (1941) sĂŁo obras que nĂŁo merecem ser esquecidas. Como biĂłgrafo, com todas as reservas que se lhe possam pĂ´r, deixou duas obras de referĂŞncia fundamentais: Eça de QueirĂłs, o Homem e o Artista (1945) e Vida e Obra de Fernando Pessoa (1950).
(Dicionário Cronológico de Autores Portugueses)
Fernando António Nogueira Pessoa (Lisboa, 13 de Junho de 1888 — Lisboa, 30 de Novembro de 1935), mais conhecido como Fernando Pessoa, foi um poeta e escritor português.
É considerado um dos maiores poetas de lĂngua portuguesa tendo seu valor comparado ao de Camões. O crĂtico literário Harold Bloom considerou-o, ao lado de Pablo Neruda, o mais representativo poeta do sĂ©culo XX. Por ter vivido a maior parte de sua juventude na Ă�frica do Sul, o inglĂŞs tambĂ©m possui destaque em sua vida, com Pessoa traduzindo, escrevendo, trabalhando, estudando e atĂ© pensando no idioma. Teve uma vida discreta, em que atuou no jornalismo, na publicidade, no comĂ©rcio e, principalmente, na literatura, onde se desfez em várias outras personalidades conhecidos como heterĂłnimos . A figura enigmática em que se tornou movimenta grande parte dos estudos sobre sua vida e obra, alĂ©m de ser o maior autor da heteronĂmia.
Morre de problemas hepáticos aos 47 anos na mesma cidade onde nascera, tendo sua Ăşltima frase escrita na lĂngua inglesa: "I know not what tomorrow will bring...
(Wikipedia)
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