quarta-feira, setembro 27, 2006

Letra A - António Franco Alexandre

E fez rey alçar em beira-mar duas tendas
e elevasse um estrado aonde se assentou.
e fizeram os ahi vir
o rey assi lhes disse em ar amável: sabeis
que pera diminuir nossos males vos roubámos
a vosso deus
por violência; mas vejo que dobraram i se enlaçam
nossos males
tal uma corda
na garganta; por decesão contra vós tomada;
sabei pois oje vos deixo
libres como dantes; excolhei
o que quiserdes. sabei
que em essa tenda à beiramar se encontra
i em essoutra escolhei.
e todos então correram suas mulheres crianças
mas por astúcia só um a um entraram
e como entravam, um após um
foi degolado lançado no mar
sem que ninguém de seus irmãos soubera.
assim caiu de nós um grande número
em esse dia.


ANTÓNIO FRANCO ALEXANDRE (1944)
Poemas
Poemário 2005
Assírio & Alvim



5


os animais que escrevem, é sempre interessante, fez notar
o sensível destino dos nossos chacinados
companheiros. removemos a terra
de norte a sul, à procura de maravilhosas tocas,
o mar entrava pelo quarto do segundo andar,
dormíamos dentro um do um, acordados
pela manhã tracejada de néon,
no céu e terra do soalho.

cabe-me agora a descrição cuidada
do mundo incomodado em que vivemos: secretários
sentados à secretária, ídolos
das nove às onze,
civildades de médio centro urbano, parque incluído,
a leve bomba que cai na cabeça dos outros,
e o grande buraco nocturno do mar
a sorver loas.

é um país, não há que errar, talhado
para a aventura de queimar
papéis ou gente,
tão desigual aos outros.
os primeiros autocarros passam,
a manhã levanta devagar a cabeça,
os pássaros, não esqueçamos os pássaros,
pousam, de viagem.


António Franco Alexandre
Poemas
Assírio & Alvim
1996



30


Já a luz se apagou do chão do mundo,
deixei de ser mortal a noite inteira;
ofensa grave a minha, que tentei
misturar-me aos duendes na floresta.
De máscara perfeita, e corpo ausente,
a todos enganei, e ninguém nunca
saberia que ainda permaneço
deste lado do tempo onde sou gente.
Não fora o gesto humano de querer-te
como quem, tendo sede, vê na água
o reflexo da mão que a oferece,
seria folha de árvore ou sério gnomo
absorto no silêncio de uma rima
onde a morte cessasse para sempre.


António Franco Alexandre
Duende



flexíveis, vertiginosos, envoltos em fuligem e orações precárias
perfeitamente católicos e inúteis, debruçados
sobre um futuro de paz e fato azul às riscas,
eu e eles misturados pela face estranha da tarde,
cada vez mais velozes, cortantes batendo no
brilhante tejadilho céu alto talvez desnecessário
nuvem aqui nuvem ali nada de muito para o frio dos ossos
eu descrevendo a inteira linha de uma vida somente e eles

brevíssimos, áridos no combate, aparecendo aqui ali
como insólitas faíscas sem razão para estrondo e fim do mundo
apenas patinando como quem nunca teve asas e vai direito
a um pequeno inferno de casas populares e segurança
eu acabado de cantar há vinte anos e desempregado para mobília
com sarau e mudança a meio da semana eles hábeis
como o deus surdomudo e a sua corte atlética
rasgando nuvens gente miudezas várias

eu líquido azinhago autocolante
arrancado com muita pressa de foto a corpo inteiro mesa esfinge
eu e eles caindo mergulhando
na chávena minúscula do dia de amanhã assim seja
eu boi dormido no charco rã cautela descertamente premiada
eu apenas eu vago riacho tartamudo e eles
fáceis e ferozes patinando com destino desmarcado de véspera
no gelo que o largo rio transporta e quebra areia chão e margem


António Franco Alexandre
Poemas
Assírio & Alvim



5


eu a morrer debaixo do sol e eles sentados
apreciando coxas e mármores pendentes
no verão seco ao fim de nenhuma tarde, eu
desalinhavado pelo vento, crescido no meio das chamas,
correndo pelas ruas paralelas e sórdidas da antiguidade
eu também eu de guia e asno e cabriola na duna encardida de sol
e a agreste sabedoria das mãos cortadas rente eu e eles
apreçando o remate

dormindo dormidos nas esteiras, a corda
presa nos dentes, que surpresa quando me tomaste,
pela primeira vez era urna noite de algum vento e das
esguias chaminés subia a chuva corno uma nuvem
caída na memória e para nunca mais
então acaricio-te as orelhas distraidamente como quem
está duvidoso de comprar e sabe que não deve
apressar o remate

eu a morrer corno se fosse coisa nenhuma cheia de pressa
esmorecida pelo sol eu e eles sentados como se fosse
urna pressa vazia de coisas uma opressão às portas
do grande mercado demasiadamente silencioso e atento
acaricio-te as mãos bem cortadas, o reflexo do
melhor mármore antigo,
eu a morrer como se fosse o menor preço e eles
sentados com os olhos na cara a boiar!


António Franco Alexandre
Dos Jogos de Inverno
Poemas
Assírio & Alvim



Nesta última tarde em que respiro
A justa luz que nasce das palavras
E no largo horizonte se dissipa
Quantos segredos únicos, precisos,
E que altiva promessa fica ardendo
Na ausência interminável do teu rosto.
Pois não posso dizer sequer que te amei nunca
Senão em cada gesto e pensamento
E dentro destes vagos vãos poemas;
E já todos me ensinam em linguagem simples
Que somos mera fábula, obscuramente
Inventada na rima de um qualquer
Cantor sem voz batendo no teclado;
Desta falta de tempo, sorte, e jeito,
Se faz noutro futuro o nosso encontro.


António Franco Alexandre
Uma fábula
Assírio & Alvim



3

Gosto de ti como se gosta do sol, e era bom
ficar ao sol todo o dia, mas queima.
Muitos outros se deitam ao sol, toda a espécie de corpos
não tens tamanho para tanta gente.
Um dia vai-se abrir a porta doirada,
vamos caber, um a um.
Vais-me escolher especialmente, como todos os outros.
Podes ter mãos. Podias até, alguma vez, ter lábios,
dizer alguma coisa em língua, numa língua qualquer.
Naturalmente, a imaginação poética é só devaneio,
tilintar de talheres sem nada para comer,
um ar tão leve, para que serve respirar?
Para esquecer, escrevo um longo romance verdadeiro
e pícaro; tudo nele é real!, as pessoas dormem
e acordam e dormem, e fodem nos intervalos;
devoram-se animais; mas o melhor são os diálogos.
Entre existires e não existires antes não existires,
é mais inteiro, deixa menos dúvidas dentro do crânio,
ao lado dos ossos normais. Entre mulher e homem
o melhor é não teres mesmo por onde escolher,
vestir saia-casaco ou fato completo,
usar até, em dias de festa, as tuas peles virtuais.


António Franco Alexandre
relâmpago n.Âş11 10|2002

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