Não sou
menos
que Einstein
nem que
Claudia Schiffer
não sou
mais
que uma osga
ou que uma barata
não sou mais
inteligente
que um mongolóide
tenho um Q. I.
no limite
superior
da média
todos diferentes
todos iguais
incluo também
os animais
o que nos separa
dos animais
é o pecado original
não é o reconhecimento
no espelho
nem o complexo
de Édipo
Adília Lopes
Florbela Espanca espanca
Black Sun
1999
L’AMANT
“Cobridme de flores,
Que muero de amores.”
Soror Maria do Céu,
Enganos do bosque,
desenganos do rio
Cobridme de flores
suplica a Soror Maria do Céu
o amante
e Soror Maria do Céu
acede
de muito boa vontade
porque morro
de amores escreve ela
Adília Lopes
Caras Baratas
Selecção e Postfácio
Elfriede Engelmayer
Relógio d´Água
Tanto
a lamentar
E tanto
que andar
Tanto
que chorar
E tanto
que fazer
O a fazer
desfaz-se
Desfaz-se
a face
Folhas
de alface
Adília Lopes
POEMAS NOVO
Edições & etc
Lisboa
Novembro de 2004
UM FIGO
Deixou cair a fotografia
um desconhecido correu atrás dela
para lha entregar
ela recusou-se a pegar na fotografia
mas a senhora deixou cair isto
eu não posso ter deixado cair isto
porque isto não é meu
não queria que ninguém
e sobretudo um desconhecido
suspeitasse que havia uma relação
entre ela e a fotografia
era como se tivesse deixado cair
um lenço cheio de sangue
porque era ela quem estava na fotografia
e nada nos pertence tanto como o sangue
por isso quando uma pessoa se pica num dedo
leva logo o dedo à boca para chupar o sangue
o desconhecido apercebeu-se disso
é um retrato da senhora
pode ser o retrato de alguém muito parecido comigo
mas não sou eu
o desconhecido por ser muito bondoso
não insistiu
e como sabia que os mendigos
não têm dinheiro para tirar fotografias
deu a fotografia a um mendigo
que lhe chamou um figo
Adília Lopes
Antologia Cosac & Naify
Edições S. Paulo - Brasil
Fariseias
Gostam de ser cumprimentadas
nas praças
e de ter o primeiro lugar
à mesa dos banquetes
são calculistas
formigas carreiristas
cheias de sucesso
e tudo usam e tudo gastam
indistintamente
porque são altas as suas entropias
e depois não sabem dar
os bons-dias às mulheres-a-dias
Adília Lopes
Florbela Espanca espanca
Black Sun
1999
POST SCRIPTUM
Não posso escrever
como escrevia
antigamente
os meus temas
gastaram-se
como o azeite das lâmpadas
(e só as virgens-formigas
desposam o Noivo)
tudo foi escrito por mim
e tudo está por escrever
mas fora dos poemas não há poeta
o autor em carne e osso foi-se
o autógrafo também
das reacções químicas acabadas
ficou o
pó da ampulheta
não vivo para escrever
escrever é aliás viver
como ter um amor ou uma dor de dentes
que nos podem inspirar
ou não
os cadernos pautados do meu diário
afogam-se no rio como os ratos
encantados pelo flautista
a poesia é luz e fumo
com os louros da minha coroa
tempero o guisado
que como sozinha
Fábio fez das cinzas
da sua dama
uma ampulheta
e deste feito um soneto
artefacto feito de dor
como a ampulheta
Adília Lopes
COLÓQUIOLetras
número 125/126 Julho-Dezembro 1992
1 comentário:
Deve ser a pessoa mais original da minha famĂlia...
AdĂlia Lopes e Maria JosĂ© da Silva Viana Fidalgo de Oliveira sĂŁo a mesma pessoa. Nasceu em Lisboa em 20 de Abril de 1960. O estilo da poetisa, aparentemente coloquial e naĂŻf, está repleto de jogos fonĂ©ticos, associações livres, rimas infantis e idiomas estrangeiros. Os temas do quotidiano, principalmente femininos e domĂ©sticos, sĂŁo tratados com humor e auto-ironia, candura e crueza, inteligĂŞncia e intencionalidade.
Há um poema da AdĂlia Lopes que se chama "Autobiografia sumária". SĂŁo sĂł trĂŞs linhas:
Os meus gatos
gostam de brincar
com as minhas baratas
Sempre achei que isto era uma bela metáfora sobre o processo de fazer humor: aquilo que em nĂłs Ă© felino, perspicaz e arguto, põe-se a brincar com o que temos de mais obscuro e repelente. Uma vez perguntei Ă AdĂlia Lopes se era isso que ela tinha querido dizer com o poema. Ela respondeu: "NĂŁo. O que se passa Ă© que eu, Ă s vezes, tenho baratas na cozinha, e os meus gatos gostam muito de brincar com elas."
Toma que Ă© para nĂŁo te armares em esperto.
(da entrevista de Leonor PinhĂŁo a Ricardo AraĂşjo Pereira, publicada na revista os meus livros nÂş 22, de Dezembro 2004)
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