terça-feira, setembro 12, 2006

Letra A - António Cândido Franco

XXIX


Nela celebro o êxtase da terra
o luminoso nascimento do mundo
da carne a esplêndida Primavera
quando tudo é vida e desejo fundo

Nela celebro a beleza do dia
um rio de seiva e sangue fecundo
Nela celebro da selva a luxúria
quando tudo é sede e prazer jucundo

Ela é um fruto de carne da terra
um canto azul no princípio de tudo
Eu sou apenas a sombra que cerra
o último crepúsculo quedo e mudo

Sem a chamar aos pés ponho de sua casa
de uma palavra o silêncio em brasa


[1977-1997]

António Cândido Franco
Estâncias Reunidas
1977-2002
edições quasi



ZODÍACO


O céu nocturno está cheio de vida terrestre.
As estrelas são flores.
As constelações animais ao espelho.
A memória de que são feitas as estrelas
é a matéria de outro sangue.
Olho o céu de noite como se visse a terra
de dia.
O céu é um estábulo onde a luz é matéria
sublimada.
Os animais da terra comem flores
os do céu comem estrelas. Em vez de sangue
têm luz.

Vejo-me calado entre os homens celestes
que se movem na abóbada como ideias.
O céu também é um chão.
Um chão feito de memória.
Pisam-se lá em cima astros
como se pisam pedras em baixo.


António Cândido Franco
Poesia Digital
7 poetas dos anos 80
Organização de Amadeu Baptista
e José-Emílio Nelson
Campo das Letras
2002



NEBULOSAS


De dia uma flor evaporada
é no céu de noite uma vela acesa.
Alguém se recosta nos espaldares da terra.
Evaporam-se pedras, abrem-se portas.
Tudo tem um hálito que sobe.
À noite abrimos o peito e saem dele
como de gaveta
finíssimas borboletas. cavalos brancos.
A carne apodrecida pela saudade
leveda auroras.
Devemos ter dentro de nós o altíssimo lugar
das nebulosas.
À noite surpreendidos pela morte
abrimos a boca
e deixamos escapar uma labareda.
Estendem-se na treva as flores evaporadas
manchas estelares que são no céu
a nossa memória.
O corpo coze no espaço interior
das suas paredes metais de terra.
Os ácidos desfazem as pedras.
Saem depois pela boca os astros
as asas aladas das labaredas.
O céu fica então povoado de charcos.
Mais tarde os astros ganham uma malha.
Os lenços brancos da morte quando sobem
cristalizam numa rede fibrosa de corpos
que chamamos nebulosas. Só-pros.
Saem-me pelo nariz fumos misteriosos.
Os astros são a seca memória celeste
da nossa decomposição húmida e terrestre.
A saudade quando se evola
torna-se plasma celular, matéria fibrosa.
A saudade enxuga depois de dissolver em fumo
a humidade putrefacta dos corpos.


António Cândido Franco
Poesia Digital
7 poetas dos anos 80
Organização de Amadeu Baptista
e José-Emílio Nelson
Campo das Letras
2002



VII


Ao céu regresso.
Quero dizerà terra anoitecida
pelo amor.
Extasio-me
com a terrestre vida dos astros.
Passeio
por uma estrada de estrelas.
Isto é
uma estrada de flores sublimadas
pela noite.
Vou visitar um estábulo
em pleno universo.
Zodíaco.
Jardim zoológico astral.
Lá estão as constelações
irradiando o seu frio.
Quero dizer
os animais pela memória
desterrados.
Regresso à noite.
Piso a escuridão.
Olho o céu
como se a terra visse.
As estrelas são flores.
As constelações são animais.
O céu é um jardim
com um estábulo no meio.
Comem flores os animais da terra.
Mastigam estrelas os do céu.
O céu também é um chão
mas um chão feito de memória.
Estão lá os mitos.
Isto é
homens elevados
pela luz e pela palavra.
Pisam-se lá em cima astros
como em baixo
se pisam pedras.
No céu passo por mitos
e por ideias.
Estão lá poemas.
Quero dizer
coisas metaforizadas
por esta outra noite do mundo
íntima e secreta
que são as palavras.


António Cândido Franco
Estâncias Reunidas
1977-2002
edições quasi

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