Vem Vento, Varre!
Vem vento varre
Sonhos e mortos.
Vem vento, varre
Medos e culpas.
Quer seja dia
Quer faça treva,
Varre sem pena,
Leva adiante
Paz e sossego,
Leva contigo
Nocturnas preces,
Presságios fúnebres,
Pávidos rostos
Só cobardia.
Que fique apenas
Erecto e duro
O tronco estreme
Da raiz funda.
Leva a doçura,
Se for preciso:
Ao canto fundo
Basta o que basta.
Vem vento, varre!
Adolfo Casais Monteiro
NOITE ABERTA AOS QUATRO VENTOS
LÍRICAS PORTUGUESAS
PORTUGÁLIA EDITORA
IV
Eu falo das casas e dos homens,
dos vivos e dos mortos:
do que passa e não volta nunca mais.
Não me venham dizer que estava matematicamente previsto,
ah, não me venham com teorias!
Eu vejo a desolação e a fome,
as angústias sem nome,
os pavores marcados para sempre nas faces trágicas das vítimas.
E sei que vejo, sei que imagino apenas uma ínfima,
uma insignificante parcela da tragédia.
Eu, se visse, não acreditava.
Se visse, dava em louco ou em profeta,
dava em chefe de bandidos, em salteador de estrada,
- mas não acreditava!
Olho os homens, as casas e os bichos.
Olho num pasmo sem limites,
e fico sem palavras,
na dor de serem homens que fizeram tudo isto:
esta pasta ensanguentada a que reduziram a terra inteira,
esta lama de sangue e alma,
de coisa e ser,
e pergunto numa angústia se ainda haverá alguma esperança,
se o ódio sequer servirá para alguma coisa.
Deixai-me chorar - e chorai!
As lágrimas lavarão ao menos a vergonha de estarmos vivos,
de termos sancionado com o nosso silêncio o crime feito instituição,
e enquanto chorarmos talvez julguemos nosso o drama,
por momentos será nosso um pouco do sofrimento alheio,
por um segundo seremos os mortos e os torturados,
os aleijados para toda a vida, os loucos e os encarcerados,
seremos a terra podre de tanto cadáver,
seremos o sangue das árvores,
o ventre doloroso das casas saqueadas,
- sim, por um momento seremos a dor de tudo isto.
Eu não sei porque me caem as lágrimas,
porque tremo e que arrepio corre dentro de mim,
eu que não tenho parentes nem amigos na guerra,
eu que sou estrangeiro diante de tudo isto,
eu que estou na minha casa sossegada,
eu que não tenho guerra à porta,
- eu porque tremo e soluço?
Quem chora em mim, dizei - quem chora em nós?
Tudo aqui vai como um rio farto de conhecer os seus meandros:
as ruas são ruas com gente e automóveis,
não há sereias a gritar pavores irreprimíveis,
e a miséria é a mesma miséria que já havia.
E se tudo é igual aos dias antigos,
apesar da Europa à nossa volta, exangue e mártir,
eu pergunto se não estaremos a sonhar que somos gente,
sem irmãos nem consciência, aqui enterrados vivos,
sem nada senão lágrimas que vêm tarde, e uma noite à volta,
uma noite em que nunca chega o alvor da madrugada.
Adolfo Casais Monteiro
Europa (1946)
Poesias Completas
Imprensa Nacional - Casa da Moeda
JAZZ
Numa cadência de enigma
entrecortada de espasmos
Saltos berros mil ruídos
o jazz canta a saudade
dum sonho que não se sabe.
Chora o jazz a velha perda
dum paraíso qualquer
deixado em longes de sombra.
E no seu ritmo diverso
langoroso e crepitante
martelado e insistente
triste e cheio de alegria
do que há muito está perdido.
ADOLFO CASAIS MONTEIRO
(in Presença, n.Âş 19)
textos literários
A POESIA DA PRESENÇA
Apresentação crítica, selecção, notas e sugestões
para análise literária
deMaria Teresa Arsénio Nunes
seara nova
MISTÉRIO LONGÍNQUO
Há dentro de mim um vazio que cresce,
como o crepúsculo comendo a pouco e pouco a terra.
Não sei o que se desmorona cada vez mais depressa
dentro de mim.
Não sei que ondas vão e vêm varrendo este mundo que fui,
alargando cada vez mais o espaço interior para outra coisa,
que não é nada aquela plenitude sonhada
dentro de mim.
De repente estou longe de tudo,
esquecido do sabor das coisas mais amadas,
com náuseas do que mais outrora amei
dentro de mim.
Dentro de mim... Este estribilho canta qualquer oculta praia
de oculto mundo. Qualquer sinal há nele, que não sei entender.
Dentro de mim, Senhor, dentro de mim quem terá morrido?
Vem nestas três palavras um dobre a finados
- dentro de mim, dentro de mim -
sobre alguém que ainda não sei que deixei de ser,
sobre aquele que finjo existir, talvez por piedade
- por mim? por quem?
-Mas o outro,
esse que já sou mesmo sem minha licença,
o outro que a vida pôs dentro de mim sem eu ter dado conta,
o outro, Senhor! - que fará ele de tudo o que não sei abandonar
dentro de mim?
Ao outro - quem o fará vencer
dentro de mim?
Adolfo Casais Monteiro
Poesias Completas
Imprensa Nacional - Casa da Moeda
PROFECIA
(Dos 4 Exorcismos contra o nefelibatismo)
Ai de quem sonha o futuro
d'olhos fitos no passado!
Ai de quem vive abraçado
à sua estátua de bronze!
Ai daquele que já sabe
por onde abrir o caminho!
O seu destino tem certo:
que tudo lhe há-de saber
a comida já comida,
que nada pode viver
sem lhe par'cer já vivido!
ADOLFO CASAIS MONTEIRO
(in Presença, n.Âş 36)
textos literários
A POESIA DA PRESENÇA
Apresentação crítica, selecção, notas e sugestões
para análise literária de
Maria Teresa Arsénio Nunes
seara nova
1 comentário:
Nasceu, no Porto, em 4 de julho de 1908 e morreu em SĂŁo Paulo, em 24 de julho de 1972.
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Escritor portuguĂŞs, mas naturalizado brasileiro em 1954. Estudou CiĂŞncias HistĂłrico-FilosĂłficas no Porto, formando-se em 1933. No ano seguinte, assumiu a direcção da revista Presença, apĂłs a demissĂŁo de Branquinho da Fonseca. Professor do ensino liceal, foi demitido por motivos polĂticos e, em 1954, fixou-se no Brasil. Foi professor universitário no Rio de Janeiro e em SĂŁo Paulo, leccionando literatura.
Como poeta, Adolfo Casais Monteiro deu mostras de uma inquietação e angĂşstia extremamente pessoais (que se aproximam por vezes do desespero), em obras como ConfusĂŁo (1929, a sua estreia) e Noite Aberta aos Quatro Ventos (1943). A sua obra poĂ©tica deu alguma continuidade ao primeiro modernismo portuguĂŞs, recusando os moldes da versificação tradicional. Muita da sua poesia reflecte preocupações especĂficas com o momento histĂłrico, nomeadamente durante a II Guerra Mundial, e com as contradições e tensões da vida humana no mundo. Destacou-se, sobretudo como ensaĂsta, de forma mais intensa apĂłs a sua ida para o Brasil, deixando contributos importantes para o estudo de Fernando Pessoa e do grupo da Presença.
Publicou, em poesia, Canto da Nossa Agonia (1942), Versos (1944), Europa (1946), Voo Sem Pássaro Dentro (1954) e Poesias Completas (1969). No campo do ensaio, escreveu De PĂ©s Fincados na Terra (1940), Estudos Sobre a Poesia de Fernando Pessoa (1958), A Poesia da «Presença» (1959), O Romance (1964), A Palavra Essencial (1965), A Poesia Portuguesa Contemporânea (1977), Estrutura e Autenticidade na Teoria e na CrĂtica Literárias (1984) e O Que Foi e O Que NĂŁo Foi o Movimento da «Presença» (1995), entre outras obras.
(Enciclopédia Universal Multimédia)
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