quinta-feira, setembro 07, 2006

Letra A - A.M. Pires Cabral

ADOLEZCO, PENO Y MUERO

Adoeço, peno e morro
quando em ti.

Salteaste-me as defesas.
A sentinela abateste no seu posto.
Puseste fogo na tulha e nas adegas,
condenaste-me ao sono.
Derramaste por acinte
o azeite que restava na candeia.

Exiges
a minha face oculta atrás das mãos
perpetuamente.

Como se eu, digamos, fosse um cão
e como se abrir-te as portas da cidade
fosse um festim
de ossos sobre seda, que o cão
devesse agradecer.


A. M. Pires Cabral
como se Bosch tivesse enlouquecido
João Azevedo Editor
Mirandela
2003



PASARÉ LOS FUERTES Y FRONTERAS


Em fortes e fronteiras
me deterei, assim
as horas me corram de feição.

Como um turista
que dá préstimo, atenção venal
a tudo o que vê em terra estranha.

E tu, o cervo irado, passarás,
a galope como um golpe
de vento intemperado,
à minha ilharga
sem me reconhecer.

Extinto o tropel, sedimentada
a poeira dos cascos,
irei beber no primeiro bar da noite.


A. M. Pires Cabral
como se Bosch tivesse enlouquecido
João Azevedo Editor
Mirandela
2003


Y MIEDOS DE LAS NOCHES VELADORES


Nada nem nenhum
guarda garante o sono,
senão o medo que vela
à cabeceira.

Noites preenchidas de demónios
e quimeras.

A candeia quase extinta
à míngua de azeite
é que fabrica as sombras.

Depois, pela manhã,
lambo as feridas,
penteio-me como se
tivesse dormido, como se

não fosse nada.


A. M. Pires Cabral
como se Bosch tivesse enlouquecido
João Azevedo Editor
Mirandela
2003



JORNADA


Madrigais na madrugada
a vós, senhora
dos dentes arreganhados.

Rancores vesperais,
ciúmes,
despeitos de ocasião.

A noite - fragmentada
e por dormir.

Senhora dos mil ossos,
esta a jornada.


António Manuel Pires Cabral
As Escadas não têm Degraus
Livros Cotovia



AS AVES


1 Diversas, pousam-nos, habitam-nos
por dentro, as aves. Por que milagre
ainda quando negras voam branco?
As aves abundam nos antigos caminhos:
umas são comestíveis, outras têm cores.
O bico, um certeiro utensílio.
Aves flutuantes, a quem são vulneráveis
tão íngremes lugares, convosco
transportai nossas dores, aflições.
Oh, rogai por nós, que recorremos a vós.
Dispensai à funda cidade a graça
de vosso olhar oblíquo e concentrado,
olho após olho, com método
revezado. Alcançai dos astros, de

2 quem sois vizinhas e rivais,
cálidas disposições
favoráveis.
Por que voareis, senão por nosso
(que vos adoramos) benefício?
Depositai-nos nas sôfregas gargantas
gases raros, vitais, trazidos no
precário recipiente dos bicos:
tudo o que venha da altitude tem
um nome ao som do qual nos prostraremos.
As aves, as aves!, a asa refeita
e veloz sobre as cabeças, sobre o vale
de lágrimas, seus guinchos povoando
a tensa solidão desta viagem.

3 Lugar às aves: às que voando
perturbam as vísceras do tempo;
às que nem sempre trazem cura,
mas sim no bico perverso
alimentos letais; às que
(advogadas nossas!)
(de tantas cores!) nos devoram
os sentidos.
Lugar às aves: a gratuita
rapacidade, a existência breve,
os membros exíguos,
de improviso.
Lugar às aves, as sobrevoadoras,
mais leves, mais pesadas do que o ar.

A. M. Pires Cabral
Artes Marginais
Guimarães Editores
1998

AMOR

0 Escolhemos um incómodo estatuto,
meu amor: um pássaro incorrecto
(para poder voar) morrermos nele.
Mas gerámos alguns filhos eficazes,
ágeis, duradouros. Contemplando-os,
decorrem-nos tão céleres os dias,
nunca exactamente iguais,
nunca diferentes. É que
existe aquela máxima antiga
solidariamente jurada desde o início
de nossos compromissos:
Sê breve nas horas interiores,
mas por fora sê extenso, derramável
qual um rio. O fundamento do amor.

1 O amor visita o corpo,
o necessita. Lícito divaga
por sombrios lugares,
súbito rumorosos e a arder.
Romã, mentrastos - tantos cheiros
e sabores na docente,
digna espiral.
Tudo aberto em luz na câmara escura:
só porque dois mendigos alcançaram
uma migalha, seu
copo de vinho.
Amando. Ah, que intensos mil-
agres doces nos vêm do corpo.
Que incandescente aptidão.

2 Ora, não digam que não
basta o amor
para resgatar o tempo exausto.
Este acto minucioso,
esta sociedade
por que nos ficamos longamente
gratos e escorrendo.
Nem digam que o amor
é arbitrário:
ele elege e fere
doméstico
quem morre de ferir. Que sorte
(digam antes) esta esgrima, este estar
em tantas posições de gritar.

3 Eis contíguos estes corpos,
derramados. A mecânica exacta,
inflexível. As nuvens
encasteladas, prometendo a chuva.
É um limpo exercício, podem crer.
De que fonte o maná mana,
rescendente? Onde a séde da sede?
No corpo se instalam
gratas ocorrências a não
negligenciar; a nunca
renegar - a menos que os
castos dias se avizinhem (pobres coisas,
lentos animais insusceptíveis:
vede o que o tempo faz de nós!)

4 Tens duas mãos capazes de lutar.
Digo: redondamente.
Digo: pelo tacto. Ah,
que guerra honesta podias conduzir
só pelas mãos
noutras mãos
guerreiras. Digo:
mãos com frutos. Há
guerra e guerra. Para bellum
com porções adequadas
do teu corpo. Si vis pacem,
preenchimento pacífico
do tempo. Digo: a
toda a largura do dia.

5 Agora o resto: imagina
corpo contra corpo,
não apenas as mãos, mas já também
a boca esguia, fugitiva,
regressada à boca.
A boca, a broca: a prudente
(intro) missão. Digo: a in(de)cisão.
A guerra em campo aberto.
Até que o suor. Eis o inimigo
liquidado e dado. Percorrido em guerra.
Digo: inguerra, acto
inverso de matar. Por
que esperas, pára a paz,
para bellum.


A. M. Pires Cabral
Artes Marginais
Guimarães Editores
1998

1 comentário:

Anónimo disse...

A. M. Pires Cabral nasceu em 1941 na freguesia de Chacim, concelho de Macedo de Cavaleiros, Trás-os-Montes. Licenciou-se em Filologia Germânica na Universidade de Coimbra e é actualmente professor do Ensino Secundário. Tornou-se conhecido ao ganhar o Prémio Círculo de Leitores de 1983 com o romance Sancirilo. É um escritor cuja matéria literária se centra essencialmente na ruralidade.

Obras: Algures a Nordeste (poesia, 1974); Solo Arável (poesia, 1976); Trirreme (poesia, 1978); Roleta em Constantim (poesia, 1981); O Saco de Nozes (teatro, 1982); O Diabo Veio ao Enterro (contos, 1985); Memórias de Caça (contos, 1987); O Homem que Vendeu a Cabeça (contos, 1987); Crónica da Casa Ardida (romance, 1992); Raquel e o Guerreiro (romance, 1995); Três Histórias Transmontanas (contos, 1998); Os Arredores do Paraíso (crónicas, 1991); O Diário de C* (Vila Real, 1995); Sancirilo (romance, 1ª ed. em 1983; 2ª edição reescrita, Editorial Notícias, Lisboa, 1996); Vilar Frio (novela, ilustrando o álbum de fotografias Portugal Terra Fria, de Georges Dussaud, edição conjunta de Marval, Paris, e Assírio & Alvim, Lisboa, 1997); Na Província Neva (crónicas de Natal – edição de autor, Vila Real, 1997); Três Histórias Trasmontanas (contos, edição de autor, Vila Real, 1998); Artes Marginais (antologia poética, Guimarães Editores, colecção Poesia e Verdade, Lisboa, 1998); Desta �gua Beberei (poesia, Vila Real, 1999); O Livro dos Lugares e Outros Poemas (poesia, João Azevedo Editor, Mirandela, 2000); Vila Real: Um Olhar Muito de Dentro (com fotografias de Albano da Costa Lobo, Câmara Municipal de Vila Real, 2001); Douro Leituras (antologia, Museu do Douro, Régua, 2002).
----(Projecto Vercial)