quinta-feira, setembro 07, 2006

Augusto Abelaira

Ana Isa fixou-o com a testa enrugada, não lhe largou mais os
olhos, caminhou lentamente, muito morena. - os cabelos negros,
a camisola amarela comprada em Inglaterra, umas calças brancas que
lhe alongavam as pernas. Lentamente, como se dispusesse de todo o
tempo deste mundo e do outro, como se soubesse que Artur não tinha
pressa e que podia continuar a esperá-la mais alguns minutos (ele que
a teria esperado muitos anos!).
- Fósforos? - pergunta prosaica, lançada inesperadamente duma
distância de cinco metros, apanhando Artur desprevenido.
-!Não fumo.
Três, dois, um metro. Ana Isa encostou-se à balaustrada, apoiando-
-se nos cotovelos. O vento levantou-se; um vento de fora, um vento
vindo do mar, ergueu-lhe os cabelos, ela teve de segurá-los com a mão.
- Que vento!
- Que calor não estaria se não fosse o vento!
Tinham falado de fósforos, tinham falado de vento. E agora,
esgotados esses temas, que haviam de fazer? Despedirem-se? Ana Isa
continuava com o cigarro nos lábios, com a ruga na testa, com a mão
nos cabelos, com as calças brancas - brancas, desenhando-lhe as ancas.
Abriu uma bolsinha bordada, tirou uma carteira de fósforos. O pri-
meiro apagou-se. Outro.
- Pedi-lhe fósforos porque não sei acender um fósforo quando
está vento.
- Sim, os fumadores sabem... Fazem uma concha com as mãos.
- Não fuma.
- Posso tentar. - Tentou. O fósforo luziu um instante com uma
chama azul e amarela, perdeu-se num risco de fumo e num cheiro
ácido.
Viraram-se para a praia, ele inclinado sobre a balaustrada, ela
muito direita, de braços cruzados. Uma traineira apitava, os pescadores
corriam no convés, o barulho ferrugento das âncoras que desciam
durou breves instantes. Fazendo com o casaco de lã um abrigo, Artur
aproximou as mãos do rosto de Ana Isa.
- Experimente...
Uma chama azulada e branca, e o cigarro brilhou vermelho.
cinzento depois.
- Porque não há fósforos contra o vento? Os técnicos não se
preocupam com o problema?
O barco apitou de novo, de novo a âncora que descia. Da mesma
que mergulhava mais fundo? Doutra?
- No mar, de noite, quando o vento sopra, como acenderão os
cigarros?
- Fazem uma concha contra o vento.
- Deve ser bom fumar um cigano no meio do mar e de noite
num barco tão pequeno.
- Quem seria o insensato que comparou os barcos a cascas de noz?
- Devem ter a sensação de que aquecem.
Ana Isa puxou longamente o fumo do cigarro - Artur viu-lhe
o peito crescer, - expeliu-o depois pela boca.
- Se eu quiser descrever o mar que hei-de dizer além de que
é azul? - Sacudiu a cinza.
- Às vezes é verde.
- Às vezes é cinzento. - Guardou os fósforos. - Se eu quiser
descrever o mar que hei-de dizer além de que está azulado ou calmo,
de que é imenso?
- Quem lhe pede que descreva o mar?
- Eu própria... Gosto de observar as coisas e descrevê-las.
Conhecem-se melhor.
- Traineiras, barcos a remos... Este mar é modesto. Falta-lhe
um grande transatlântico.
- Para sonhar com viagens?
- Para equilibrar o panorama....

(Continua)

Augusto Abelaira
eva-natal 1962

1 comentário:

Anónimo disse...

Augusto Abelaira nasceu em Cantanhede em Março de 1926. Licenciou-se em Ciências Histórico-Filosóficas. A par do seu trabalho como escritor, tem exercido os cargos de professor, jornalista (no Diário Popular e no Jornal de Letras), director de programas da RTP e director das revistas Vida Mundial e Seara Nova. Em 1963, ganhou o Prémio Ricardo Malheiros da Academia das Ciências como romance As Boas Intenções. Em 1979, ganhou o Prémio Cidade de Lisboa com o romance Sem Tecto entre Ruínas. Em 1997, foi distinguido com o Grande Prémio de Romance e Novela da APE com o romance Outrora, Agora.

Obras: A Cidade das Flores (romance, 1959), Os Desertores (1960), As Boas Intenções (romance, 1963), Enseada Amena (romance, 1966), Bolor (romance, 1968), Quatro Paredes Nuas (contos, 1972), Sem Tecto entre Ruínas (romance, 1979), O Triunfo da Morte (romance, 1981), O Bosque Harmonioso (romance, 1982), O Único Animal que ((romance, 1985), Deste Modo ou Daquele (romance, 1990), Outrora, Agora (romance, 1996).

Bibliografia: Jornal de Letras, Janeiro 1993, p. 550, pp. 14-15. Jornal de Letras, n� 637 Março de 1995, p. 23. Jornal de Letras, n� 663, Março de 1996, p. 39. Jornal de Letras, n� 665, Abril de 1996, p. 6-8. Nelly Novaes Coelho, �Agusto Abelaira�, em Escritores Portugueses, São Paulo, 1973. Maria Lúcia Lepecki, Meridianos do Texto, Lisboa, 1979. Maria Alzira Seixo, �Augusto Abelaira: um tempo de convergência�, em Para um estudo da expressão do tempo no romance português contemporâneo, 2� ed., Lisboa, 1987. Lélia Parreira Duarte, �Criação e ironia em Borges e Abelaira�, em Colóquio, 109, 1989. Fernando Botelho, recensão crítica à obra Deste Modo ou Daquele em Colóquio n� 120 p. 213.
(Projecto Vercial)