domingo, junho 04, 2006
Um Não Acabar Mais
UM NÃO ACABAR MAIS
Sou quem sou. Um acaso inconcebível
como todos os acasos.
Outros antepassados
poderiam, afinal, ser os meus,
e então de outro ninho
sairia voando,
de debaixo de outro tronco
rastejaria, coberta de escamas.
No guarda-roupa da Natureza
há trajes de sobra:o traje da aranha, da gaivota, do rato do campo.
Cada um assenta de imediato que nem uma luva
e usa-se obedientemente
até se gastar por completo.
Eu tampouco tive alternativa,
mas não me queixo.
Poderia ser alguém muito menos individual.
Alguém do cardume, do formigueiro, do enxame zuninte,
uma partícula da paisagem agitada pelo vento.
Alguém muito menos feliz,
criado para dar a pele,
para a mesa festiva,
ou algo que nadasse sob a lente.
Uma árvore presa à terra,
da qual o fogo se aproximasse.
Um mero cisco esmagado
pela marcha dos acontecimentos inconcebíveis.
Um indivíduo nascido sob a estrela ruim
que para outros seria boa.
E o que seria se despertasse nas pessoas medo?
Ou só aversão?
Ou só piedade?
Se não tivesse nascido
na tribo certa
e todos os caminhos se me fechassem?
Até agora, a sorte
mostrou-se-me favorável.
Poderia não ter-me sido dada
a recordação dos bons instantes.
Poderia ter-me sido negada
a tendência para comparar.
Poderia até ser eu própria
mas sem o dom da admiração,
quer dizer - alguém completamente diferente.
Wislawa Szymborska
Instante
Tradução de Elzbieta Milewska
e
Sérgio Neves
Relógio d’Água
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