quinta-feira, junho 22, 2006

Marguerite Yourcenar

O HOMEM QUE AMOU AS NEREIDAS

(continuação)

- Surdo não é - repetiu João Demetriadis
pousando à sua frente a chávena meia cheia
de uma espessa borra preta. - A palavra e o
espírito foram-lhe retirados em condições tais
que chego a invejá-lo, eu o homem pensante,
o homem rico, que tantas vezes apenas en-
contra o tédio e o vazio pelo caminho. Este Pa-
negyotis (é como ele se chama) perdeu a fala
aos dezoito anos por ter encontrado as Nerei-
das nuas.
Nos lábios de Panegyotis, que ouvira pro-
nunciar o seu nome, desenhou - se um sorriso
tímido. Parecia não compreender o sentido
das palavras daquele homem importante em
que reconhecia vagamente um protector, mas
o tom, e não as próprias palavras, atingia-o.
Contente por saber que se tratava dele e que
talvez fosse de esperar outra esmola, avançou
imperceptivelmente a mão, com o jeito receo-
so do cão que aflora com a pata o joelho do
dono, para que se não esqueçam de lhe dar
de comer.
- É filho de um dos camponeses mais abas-
tados da minha aldeia - continuou João De-
metriadis - e, coisa rara entre nós, aquilo é
mesmo gente rica. Os pais têm tantas terras
que nem sabem o que hão-de fazer-lhes, uma
bela casa de pedra de cantaria, um pomar
com diversas variedades de fruta, e legumes
na horta, um despertador na cozinha, uma
lâmpada acesa junto à parede dos ícones, en-
fim, nada lhes falta. Podia dizer-se de Pane-
gyotis aquilo que raramente se pode dizer de
um jovem grego: que lhe coziam o pão todos
os dias e para toda a vida. Podia-se também
dizer que tinha o caminho traçado à sua
frente, um caminho grego, poeirento, pedre-
goso e monótono, mas semeado de grilos a
cantar aqui e além e de umas pausas nada de-
sagradáveis à porta das tabernas. Ajudava as
velhotas na vareja da azeitona; vigiava a em-
balagem das caixas de uva e a pesagem dos
fardos de lã; nas discussões com os compra-
dores de tabaco, defendia discretamente o pai,
cuspindo de desdém a toda a proposta que
não ultrapassasse o preço desejado; estava
noivo da filha do veterinário, uma rapariguita
simpática que trabalhava na minha fábrica;
como era muito belo, atribuíam-lhe tantas
amantes quantas as raparigas da região que
amam o amor; pretendeu-se que dormia com
a mulher do padre; a ser verdade, o padre não
lhe queria mal pois gostava pouco de mulhe-
res e não ligava à dele, que, aliás, se oferece
a qualquer um. Imagine a humilde felicidade
de Panegyotis; o amor das damas, a inveja dos
homens e por vezes o seu desejo, um relógio
de prata, uma camisa maravilhosamente
branca, engomada pela mãe, de dois ou de
três em três dias, o pilaf ao meio-dia e o
glauco e perfumado ouzo antes da ceia. Mas
a felicidade é frágil, e quando a não destroem
os homens ou as circunstâncias, ameaçam-na
os fantasmas.
Talvez não saibam que a nossa
ilha está povoada de presenças misteriosas.

(continua)


A Salvação de Wang-Fô
e outros Contos Orientais
Marguerite Yourcenar
Publicações D. Quixote

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