terça-feira, junho 20, 2006

Marguerite Yourcenar

O HOMEM QUE AMOU AS NEREIDAS


Estava de pé, descalço na poeira, no calor
e nas exalações do porto, debaixo do exíguo
toldo de um cafezito onde alguns clientes, re-
fastelados nas cadeiras, em vão esperavam
proteger-se do sol. As suas velhas calças ru-
ças mal lhe chegavam aos tornozelos, e aquele
ossinho bicudo, a ponta do calcanhar, as com-
pridas plantas dos pés, calosas e escoriadas,
os dedos ágeis e tácteis pertenciam a essa
raça de pés inteligentes, acostumados a todas
as lides com o ar e o chão, endurecidos nas
asperezas das pedras, que nos países medi-
terrânicos ainda deixam ao homem vestido
um pouco do livre desafogo do homem nu. Pés
ágeis, tão diferentes dos canhestros e pesados
suportes encerrados nos sapatos do Norte... O
azul desbotado da camisa condizia com os
tons daquele céu esbatido pela luz do Verão;
os ombros e as omoplatas rompiam pelos ras-
gões do pano como agrestes rochedos; as ore-
lhas um tanto alongadas enquadravam-lhe
obliquamente o crânio à maneira das asas de
uma ânfora; viam-se ainda incontestáveis ves-
tígios de beleza no seu rosto pálido e ausente,
como antiga estátua quebrada que aflorasse
em solo ingrato. Os olhos de bicho doente dis-
simulavam-se-lhe sem suspeita por detrás de
umas pestanas tão compridas como as que or-
lam as pálpebras das mulas; mantinha a mão
direita constantemente estendida, com o gesto
obstinado e importuno dos ídolos arcaicos que
parecem exigir aos visitantes dos museus a es-
mola da admiração, e da boca escancarada
sobre uns dentes brilhantes soltavam-se vagi-
dos indistintos.
- É surdo-mudo?- Surdo não é.
João Demetriadis, proprietário das impor-
tantes fábricas de sabão da ilha, aproveitou
um momento de desatenção em que o olhar
vago do idiota se perdia para o lado do mar
para deixar cair um dracma na laje polida. O
leve tilintar meio abafado por uma fina ca-
mada de areia não passou despercebido ao
mendigo, que apanhou gulosamente a moe-
dita de níquel para logo a seguir retomar a
sua posição contemplativa e gemebunda,
como uma gaivota na beira do cais.
 
(continua)

 
A Salvação de Wang-Fô
e outros Contos Orientais
Marguerite Yourcenar
Publicações D. Quixote

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