“DE CORRER MUNDO...”
De correr mundo as terras e os humanos
como paisagem que ante os olhos passa,
e às vezes percorrer umas e outros
nos breves intervalos entre duas viagens,
uma incerteza deixa que é diversa
da que se aprende no convívio longo:
quem se demora vê, sob as fachadas
ou as perspectivas de alta torre feitas
um gesto em que se mostra uma outra vida,
ou troca frases que desnudam crua
o que de interno ser sob as fachadas vive;
mas quem só passa e mal aos outros toca
com mais que olhares ou fugidias vozes,
mais adivinha o que não é paisagem
mas dia a dia tão diverso dela
ou pelo menos para além ansioso.
Mas, se num caso a vida se conhece
e noutro caso nos conhece a nós,
por ambos aprendemos que do mundo
se vive o que não passa, ou se não vive
o que passando é só terras e gentes -
-o conhecer, porém, não se conhece nunca.
Apenas resta a escolha: como descobrir
essa experiência inútil. Antes, pois,
correr do mundo as terras e os humanos
que consumir-se alguém ao lado deles sempre.
Jorge de Sena
Visão Perpétua
SB 3/10/1972
1 comentário:
Jorge de Sena
Nascimento: 1919 Lisboa
Morte: 1978
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Escritor portuguĂŞs, natural de Lisboa e naturalizado brasileiro, em 1963. Estudou em Lisboa, no colĂ©gio Vasco da Gama e no liceu LuĂs de Camões, onde, segundo o prĂłprio, «andava já fazendo versos». Em 1937, entrou para a Escola Naval. A 1 de Outubro do mesmo ano, partiu no navio-escola Sagres, em viagem de instrução, que decorreu atĂ© Fevereiro do ano seguinte, apĂłs o que foi demitido da Armada. Entrou entĂŁo para a Faculdade de CiĂŞncias de Lisboa. Num jornal da faculdade, Movimento, publicou o poema Nevoeiro. Estabeleceu contacto com a revista Presença, atravĂ©s de Adolfo Casais Monteiro, a propĂłsito de um poema de Ă�lvaro de Campos. Desse contacto veio a resultar a ligação aos Cadernos de Poesia, onde Sena publicou, em 1940, os sonetos Mastros e Ciclo, e cuja direcção integrou durante algum tempo com Ruy Cinatti, JosĂ© Blanc de Portugal e JosĂ© Augusto França. Formou-se na Faculdade de Engenharia do Porto, trabalhando na Junta AutĂłnoma de Estradas atĂ© 1959, data em que se exilou voluntariamente no Brasil.
A partir daĂ, desenvolveu uma actividade acadĂ©mica intensa nas áreas da literatura e cultura portuguesas. Foi catedrático contratado de Teoria da Literatura na Faculdade de Filosofia, CiĂŞncias e Letras de Assis (Estado de SĂŁo Paulo). Em 1961, transitou para a Universidade de Araraquara, igualmente em SĂŁo Paulo, como catedrático contratado de Literatura Portuguesa. Adoptou a nacionalidade brasileira em 1963. Em 1965 seguiu, tambĂ©m como professor, para a Universidade do Wisconsin (EUA) e, cinco anos mais tarde, para a Universidade da CalifĂłrnia, onde veio a chefiar os departamentos de Espanhol e PortuguĂŞs e o de Literatura Comparada, cargos que manteve atĂ© 1978. Recebeu o PrĂ©mio Internacional de Poesia Etna-Taormina pelo conjunto da sua obra poĂ©tica e foi condecorado com a Ordem do Infante D. Henrique por serviços prestados Ă comunidade portuguesa. Recebeu, postumamente, a GrĂŁ-Cruz da Ordem de Sant'iago. Em 1980, foi inaugurado o Jorge de Sena Center for Portuguese Studies, na Universidade de Santa Barbara.
Para alĂ©m da sua actividade como escritor e professor, Jorge de Sena empenhou-se na divulgação de autores e correntes estrangeiras (sobretudo de origem anglo-saxĂłnica) atravĂ©s de inĂşmeros estudos, conferĂŞncias e traduções. Em 1941, fez uma conferĂŞncia sobre Rimbaud intitulada «O Dogma da Trindade PoĂ©tica» e, no ano seguinte, iniciou a sua actividade crĂtica com um artigo sobre o escritor cabo-verdiano Jorge Barbosa. Em 1944, publicou um texto de apresentação do surrealismo, «Poesia Sobrerrealista», primeira divulgação deste movimento em lĂngua portuguesa, traduzindo ainda textos de AndrĂ© Breton, Paul Éluard, Benjamin PĂ©ret e Georges Hugnet. Outros autores que ajudou a divulgar foram T.S. Eliot, Cavafy, Auden, Hemingway, Bertold Brecht e William Faulkner. Colaborou regularmente, como crĂtico, no semanário Mundo-Literário (1946-48) e numa sĂ©rie de outras publicações ligadas Ă literatura, em Portugal e no estrangeiro.
Como ensaĂsta, sĂŁo fulcrais os seus estudos da vida e obra de Camões e de Fernando Pessoa. Em 1948, proferiu a conferĂŞncia «A Poesia de Camões, Ensaio da Revelação da DialĂ©ctica Camoniana», no Clube Fenianos Portuenses, com que inaugurou a sĂ©rie de trabalhos que viria a realizar sobre o autor, procurando linhas de análise inovadoras em relação ao academismo dos estudos camonianos portugueses. Em Agosto de 1959, participou no IV ColĂłquio Internacional de Estudos Luso-Brasileiros na Universidade da BaĂa, com o estudo «O Poeta Ă© um Fingidor»>. Defendeu, como tese de doutoramento em Letras e de livre-docĂŞncia em Literatura Portuguesa, «Os Sonetos de Camões e o Soneto Quinhentista Peninsular», em 1964. Em 1970 publicou A Estrutura de Os LusĂadas e Outros Estudos Camonianos e de Poesia Peninsular do SĂ©culo XVI. Efectuou uma sĂ©rie de viagens pela Europa, AmĂ©rica e Ă�frica, relacionadas com as comemorações do 4Âş centenário de publicação de Os LusĂadas, e organizou as edições camonianas, promovidas pela Imprensa Nacional, das Rimas e de Os LusĂadas, comentados por Manuel de Faria e Sousa. Em 1973, publicou o poema «Camões dirige-se aos seus contemporâneos»>. A literatura portuguesa da Ă©poca clássica, aliás, mereceu-lhe particular atenção, o que se reflecte na sua prĂłpria obra poĂ©tica, nas suas mĂşltiplas intertextualidades.
Jorge de Sena foi poeta, dramaturgo, ficcionista e historiador da cultura. NĂŁo se filiando em nenhuma escola literária, foi influenciado por várias correntes (nomeadamente pelo surrealismo, sobretudo em aspectos tĂ©cnicos), numa tentativa de superar as tendĂŞncias da Ă©poca que passou por várias formas de experimentalismo. No entanto, a estes aspectos modernos da sua poesia aliou recursos da tradição medieval e renascentista, tornando a sua obra, simultaneamente, clássica e revolucionária. Disso Ă© exemplo a utilização que, por vezes, fez do soneto: a par da forma clássica deste tipo de poema, surge um experimentalismo sintáctico e morfolĂłgico que subverte as fronteiras entre classicismo e modernidade, superando-as. Toda a sua obra, aliás, se orienta por esta tentativa de superação: superação dos antagonismos entre escolas literárias (realismo social, surrealismo, experimentalismo), de certas oposições humanas com raĂzes na cultura ocidental, como as de corpo/alma, ciĂŞncia/poesia, bem/mal, Deus/homem. Esta superação tem raĂzes filosĂłficas na dialĂ©ctica hegeliana e no marxismo, reconhecidas pelo prĂłprio escritor. Para Jorge de Sena, a poesia era, ela mesma, uma forma de testemunhar e transformar o mundo; da relação estabelecida entre o sujeito poĂ©tico e o objecto que ele tomava como matĂ©ria da sua poesia resultava uma outra entidade — o prĂłprio poema, objecto estĂ©tico constituĂdo por meio da linguagem. A poesia era, assim, uma forma de intervenção, embora entendida de forma diversa do neo-realismo. Mesmo em Coroa da Terra, que tem afinidades temáticas com este movimento, encontram-se tĂ©cnicas surrealistas que dele se afastam.
Num lirismo depurado, Jorge de Sena levou muitas vezes a cabo uma crĂtica mordaz e irĂłnica da realidade, aqui e ali de forma provocadora ou dolorosa. É de destacar a sua visĂŁo irĂłnica de certos mitos da tradição cultural portuguesa, satirizando frequentemente aspectos provincianos ou saudosistas do entendimento do paĂs e do seu povo no mundo (veja-se, por exemplo, a peça O Indesejado, sobre D. AntĂłnio, prior do Crato, na sua ligação com o sebastianismo nacional). O autor continua uma linha de lucidez satĂrica que se encontra já em escritores portugueses de Ă©pocas anteriores.
Na poesia, Jorge de Sena estreou-se com Perseguição (1941). Publicou ainda Coroa da Terra (1947), Pedra Filosofal (1950), As Evidências (1955), Fidelidade (1958), Metamorfoses (1963), Arte de Música (1968), Peregrinatio ad Loca Infecta (1969), Exorcismos (1972), Conheço o Sal e Outros Poemas (1974), Poesia I (1977), Poesia II (1978) e Poesia III (1978).
Como dramaturgo, publicou, em 1951, O Indesejado, e a peça em um acto Amparo de MĂŁe. Em 1952 saiu Ulisseia AdĂşltera, em 1969, O Banquete de DionĂsos, e, em 1971, Epimeteu ou o Homem Que Pensava Depois.
A sua obra de ensaio, fundamental nos estudos literários do sĂ©culo XX portuguĂŞs, inclui a recolha Da Poesia Portuguesa (1959), O Poeta Ă© um Fingidor (1961), O Reino da Estupidez (1961), Uma Canção de Camões 81966), Os Sonetos de Camões e o Soneto Quinhentista Peninsular (1969), A Estrutura de Os LusĂadas e Outros Estudos Camonianos e de Poesia Peninsular do SĂ©culo XVI (1970), Maquiavel e Outros Estudos (1973), DialĂ©cticas Aplicadas da Literatura (1978) e Fernando Pessoa & Cia. HeterĂłnima (1982), entre outros.
A obra ficcional de Jorge de Sena foi produzida sobretudo entre 1959 e 1965, embora a sua edição seja por vezes posterior. Escreveu Andanças do DemĂłnio (1960, contos), Novas Andanças do DemĂłnio (1966), Os GrĂŁo-CapitĂŁes (1976), Sinais de Fogo (romance publicado postumamente em 1979) e O FĂsico Prodigioso (1977).
Postumamente, foram publicadas várias antologias e ainda VisĂŁo PerpĂ©tua (1982, poesias inĂ©ditas), GĂ©nesis (1983, que inclui dois contos inĂ©ditos de 1937-38) e Dedicácias (1999, poemas satĂricos e desenhos inĂ©ditos).
Embora dividida por diversos gĂ©neros, a obra de Jorge de Sena constitui uma teia de relações em que se cruzam, em mĂşltiplas abordagens, temas recorrentes, que definem a sua personalidade literária e crĂtica. É um dos grandes vultos da poesia e do ensaĂsmo portuguĂŞs da segunda metade do sĂ©culo XX
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