quinta-feira, agosto 16, 2007

Anónimo

~ Capítulo V ~

Durante o trabalho referido, todas as criaturas
do passado, presente e futuro, bem tomo todas
as obras dessas mesmas criaturas, devem
ocultar-se sob a nuvem do esquecimento.

Mas se chegares a esta nuvem do não-saber, para aí fi-
cares a trabalhar como te digo, que hás-de fazer? Assim
como tal nuvem se encontra em cima, entre ti e o teu Deus,
assim deves colocar em baixo uma nuvem de esquecimen-
to, entre ti e todos os seres criados. Talvez penses que estás
muito longe de Deus, porque a nuvem do desconhecimen-
to se encontra entre ti e o teu Deus; no entanto, bem vistas
as coisas, com certeza te encontras bem mais afastado
d'Ele, quando não há nenhuma nuvem de esquecimento
entre ti e todos os seres criados. Quando digo "todos os
seres criados", refiro-me não só às próprias criaturas, mas
também a todas as suas obras e propriedades. Não excluo
nenhuma criatura, quer seja material ou espiritual, como
também não excluo nenhuma propriedade ou obra das cria-
turas, quer sejam boas ou más. Numa palavra, todas as coi-
sas se devem ocultar sob a nuvem do esquecimento.

De facto, embora às vezes seja muito útil pensar em
determinadas propriedades e certos actos de algumas cria-
turas em especial, todavia isso de pouco ou nada vale para o
trabalho de que falo aqui. Porque trazer na memória ou
no pensamento alguma criatura que Deus tenha feito, ou
ainda qualquer uma das suas acções, constitui uma espécie
de luz espiritual: para ela se abrem os olhos da alma, que
até mesmo a fixam, como fazem os olhos do archeiro em
relação ao alvo para que dispara. E uma coisa te digo: tudo
aquilo em que pensas está por cima de ti, no momento de o
pensares, interpondo-se entre ti e o teu Deus, e assim tu
estás longe d'Ele na mesma proporção em que houver na
tua mente alguma coisa mais para além d'Ele.
Sim!, e se tanto for possível afirmar com reverência,
direi que para o trabalho em questão de pouco ou nada adi-
anta chamar ao pensamento a bondade ou a dignidade de
Deus, Nossa Senhora, os santos, os anjos do Céu, ou ainda
as alegrias celestes; melhor dizendo, não interessa que
prestes especial atenção a tudo isso, como se quisesses nu-
trir e intensificar assim o teu propósito. Creio que, no caso
do nosso trabalho, jamais alcançarias tal efeito. Porque,
embora seja bom pensar na bondade de Deus, e amá-Io e
louuvá-Io por essa mesma bondade, e contudo muito me-
lhor pensar no próprio ser nu de Deus, e amá-Lo e lou-
vá-Lo por Ele mesmo.

A Nuvem do Não-Saber
Anónimo do século XIV
Tradução de Lino Correia Marques de Miranda Moreira
Editora Vozes

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