SOBRE A PEDRA DOS DIAS
As formigas não saíram
das suas ruas subterrâneas. Um setembro
muito longe do fulgor do outono. Eu
despovoei-me dos sonhos: as mãos apertavam-
-se ao redor de nenhuma esperança. Traziam
o peso de outras mãos, repetidas, de um passado
tão longínquo.
Um tempo de demasiado torpor,
sem regresso. Havia uma voz branca sobre a
terra sêca, os olhos fatigados suspendiam o
desenho dos objectos o peso sobre as coisas.
“Não o conheço.”
“Aqui é tudo tão triste.”
“Dá-me um cigarro?”
A planície guardava a secreta memĂłria do verde,
dos campos verdes. Agora
os vários caminhos abriam para o iluminado
amarelo.
Os ombros cruzavam-se sob a remota
distância do ar quente, do verão sem fim. Os
corpos quase se tocavam, como todas as coisas sobre a
terra, sobre os campos da terra a arder.
“Lembro-me de ti.”
“Desculpe, mas nunca o conheci.”
“Eu trago ainda o teu retrato no bolso sobre
o meu coração. É uma velha fotografia.
Guardei-a desde esse ano, como quem suspende
entre duas folhas de caderno
ervas e flores.”
“Não me lembro.”
“É natural. Morreste há tantos anos.”
Repete-se o calor sobre as paredes.
O eco de uma casa desabitada: os
cães estão longe, o seu latir rompe o ar quieto.
Estava naquela aldeia de mar. Nos muros
que levam à rua principal. O largo tem uma
igreja, uma praga de orações.
Os passos os ombros os olhos que movem à
minha frente eu hei-de vê-los. As portas batem
sob o vento quente. Ninguém vive na terra
nesta casa que se prende e desprende daqueles que
vivem.
Escureceu. Clareou. “Boa-noite.”
“Bom-dia.” Escureceu de novo. “Bom-dia.” As
mãos vinham repletas de ruídos, silêncio, vozes
perto de ti.
Os passos juntaram-se aos que estavam à
espera. Eram passos presos a outros passos e
cravavam um sulco na terra negra do chão. Canto
entoado, baixo, muito baixinho
leva à viagem que retém o outro corpo. Caíam as
as horas do muito calor; a luz desaparecia pelo
amanhecer, ardia através da noite e dos campos.
Pareciam estar muito longe
os passos.
E faz com que desperte o prometido sonho; a
porta entre-aberta “faz o que quiseres”
ouvi, ouviu.
A esmaecida luz desaparecia nas paredes da casa
entre as sombras do corpo da casa. A terra é
uma vereda de fogo. Os ramos amanhecem sem
o brilho da voz da manhã.
Está sentado numa velha cadeira sob
a lassidão de setembro. Mexe os lábios,
incoerentes palavras.
Seguia pelo mais estreito corredor da vida.
Sombrio. Húmido. De novo sombrio na imensidade
da casa. Seguiu à baleia de deus, triste
quatro ou cinco moedas no bolso.
João Miguel Fernandes Jorge
o barco vazio
colecção forma
Editorial Presença
1ª edição
1994
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