domingo, dezembro 31, 2006
sexta-feira, dezembro 29, 2006
rosas
Isso é que era uma vida!
Faço o meu ninho na axila
do homem com o elmo de ouro. Se ele anda
eu imóvel ando também. Se ele dobra
o corpo eu em pé faço o mesmo.
Se ele come o p?o com o suor do seu rosto
eu perturbada pelos aromas deito-me-lhe
debaixo do braço viril.
A sua conversa Sim N?o é obviamente sempre
a minha. N?o semeies n?o colhas: Para qu?
se ele me dá de comer e vestir! E
nada mais exige em troca do que a sua dose diária
de rosas sem espinhos lhe teço a coroa
chilreando ? volta da divina cabeça.
Ulla Hahn
A sede entre os limites
Vers?o de Jo?o Barrento
Relógio d´Água
PARA AS ROSAS
Para as rosas, escreveu alguém,
o jardineiro é eterno.
E que melhor maneira de ferir o eterno
que mofar das suas iras?
Eu passo, tu ficas;
mas eu n?o fiz mais que florir e aromar,
servi a donas e a donzelas, fui letra de amor,
ornei a botoeira dos homens, ou expiro no próprio
arbusto, e todas as m?os, e todos os olhos me trataram
e me viram com admiraç?o e afeto.
Tu n?o, ó eterno;
tu zangas-te, tu padeces, tu choras, tu afliges-te!
A tua eternidade n?o vale um só dos meus minutos.
Machado de Assis
Brasil-1839-1908
Cor de Laranja e Ouro
Quarto aberto para o vazio
Cheiro a poeira
Pétalas emurchecidas redesenhando o lençol
que encobre o teu corpo
libertado.
Tu és vertigem e abandono...
A tempestade rebenta.
Inunda-te, cega-me.
Curvo-me sobre o teu rosto
resplandecente
como se tecido no irreal.
Com a alma ferida eu choro.
E as chuvas enfurecem-se,
surpreendendo o lugar cor de laranja e ouro.
Aí permaneço no declive do infinito.
As sombras estremecem.
Eu Vigio...
Mas do fundo do abismo o Oceano levanta-se
Roçando o sol com cortinas de areia
afastando o horizonte
os mitos da morte.
Devo reencontrar o tecido dos sonhos
a chave da aurora
E derramar sobre o teu corpo a ess?ncia das rosas
A Rosa de Vida do país Cor de Laranja e Ouro.
Alice Machado
Horas Azuis
Faço o meu ninho na axila
do homem com o elmo de ouro. Se ele anda
eu imóvel ando também. Se ele dobra
o corpo eu em pé faço o mesmo.
Se ele come o p?o com o suor do seu rosto
eu perturbada pelos aromas deito-me-lhe
debaixo do braço viril.
A sua conversa Sim N?o é obviamente sempre
a minha. N?o semeies n?o colhas: Para qu?
se ele me dá de comer e vestir! E
nada mais exige em troca do que a sua dose diária
de rosas sem espinhos lhe teço a coroa
chilreando ? volta da divina cabeça.
Ulla Hahn
A sede entre os limites
Vers?o de Jo?o Barrento
Relógio d´Água
PARA AS ROSAS
Para as rosas, escreveu alguém,
o jardineiro é eterno.
E que melhor maneira de ferir o eterno
que mofar das suas iras?
Eu passo, tu ficas;
mas eu n?o fiz mais que florir e aromar,
servi a donas e a donzelas, fui letra de amor,
ornei a botoeira dos homens, ou expiro no próprio
arbusto, e todas as m?os, e todos os olhos me trataram
e me viram com admiraç?o e afeto.
Tu n?o, ó eterno;
tu zangas-te, tu padeces, tu choras, tu afliges-te!
A tua eternidade n?o vale um só dos meus minutos.
Machado de Assis
Brasil-1839-1908
Cor de Laranja e Ouro
Quarto aberto para o vazio
Cheiro a poeira
Pétalas emurchecidas redesenhando o lençol
que encobre o teu corpo
libertado.
Tu és vertigem e abandono...
A tempestade rebenta.
Inunda-te, cega-me.
Curvo-me sobre o teu rosto
resplandecente
como se tecido no irreal.
Com a alma ferida eu choro.
E as chuvas enfurecem-se,
surpreendendo o lugar cor de laranja e ouro.
Aí permaneço no declive do infinito.
As sombras estremecem.
Eu Vigio...
Mas do fundo do abismo o Oceano levanta-se
Roçando o sol com cortinas de areia
afastando o horizonte
os mitos da morte.
Devo reencontrar o tecido dos sonhos
a chave da aurora
E derramar sobre o teu corpo a ess?ncia das rosas
A Rosa de Vida do país Cor de Laranja e Ouro.
Alice Machado
Horas Azuis
terça-feira, dezembro 26, 2006
sábado, dezembro 23, 2006
W. H. Auden
CANÇÃO
Dizem que esta cidade tem dez milhões de almas
Umas vivem em palácios, outras em mansardas;contudo não há lugar para nós,
minha querida, não há lugar para nós
Uma vez tivemos uma pátria e julgávamos que era bela.Olha para o mapa e lá a encontrarás;mas não poderemos regressar tão cedo, minha querida, não podere- mos regressar tão cedo.
O cônsul deu um murro na mesa e disse:se não têm passaportes estão oficialmente mortos;mas nós ainda estamos vivos, minha querida, ainda estamos vivos.
Lá em baixo no adro um velho teixo
todas as primaveras floresce de novo:e os velhos passaportes não florescem, minha querida, os velhos passaportes não florescem.
Fui a um comissariado e ofereceram-me uma cadeira
disseram polidamente para voltar no ano seguinte:mas onde iremos agora, minha querida, onde iremos agora?
Fui a um comício público; o orador levantou-se e disse:se os deixarmos cá dentro, roubar-nos-ão o pão de cada dia;
estava a falar de mim e de ti, minha querida, a falar de mim e de ti.
Ouves um ruído como um trovão roncando no céu?
É Hitler sobre a Europa dizendo: «Eles têm de morrer!»
Nós estávamos no Seu pensamento, minha querida, estávamos no
Seu pensamento.
Vi um cão de luxo de jaqueta apertada com um alfinete
vi uma porta aberta e um gato entrando;
mas não eram judeus alemães, minha querida, não ale-
mães.
Desci ao porto e parei no cais
vi os peixes a nadar. Como são livres!
a dez pés de distância, minha querida, só a dez pés distância.
Passeei pelo bosque; há pássaros nas árvores,não têm políticos e cantam livremente.
Não são da raça humana, minha querida, não são da raça humana.
Sonhei que vira um edifício com mil andares
mil janelas e mil portas;nenhuma delas era nossa, minha querida, nenhuma.
Corri à estação para apanhar o expresso,
pedi dois bilhetes para a Felicidade;
mas todas as carruagens estavam cheias, minha querida, todas as carruagens estavam cheias.
Fui parar a uma grande planície, no meio da neve a cair
dez mil soldados marchavam de um lado para o outro
olhando para mim e para ti, minha querida, olhando para mim e
para ti.
W. H. Auden
(1907-1973)Reino Unido
TRAD.:Jorge Emílio
Rosa Do Mundo
2001 POEMAS PARA O FUTURO
Assírio & Alvim
Dizem que esta cidade tem dez milhões de almas
Umas vivem em palácios, outras em mansardas;contudo não há lugar para nós,
minha querida, não há lugar para nós
Uma vez tivemos uma pátria e julgávamos que era bela.Olha para o mapa e lá a encontrarás;mas não poderemos regressar tão cedo, minha querida, não podere- mos regressar tão cedo.
O cônsul deu um murro na mesa e disse:se não têm passaportes estão oficialmente mortos;mas nós ainda estamos vivos, minha querida, ainda estamos vivos.
Lá em baixo no adro um velho teixo
todas as primaveras floresce de novo:e os velhos passaportes não florescem, minha querida, os velhos passaportes não florescem.
Fui a um comissariado e ofereceram-me uma cadeira
disseram polidamente para voltar no ano seguinte:mas onde iremos agora, minha querida, onde iremos agora?
Fui a um comício público; o orador levantou-se e disse:se os deixarmos cá dentro, roubar-nos-ão o pão de cada dia;
estava a falar de mim e de ti, minha querida, a falar de mim e de ti.
Ouves um ruído como um trovão roncando no céu?
É Hitler sobre a Europa dizendo: «Eles têm de morrer!»
Nós estávamos no Seu pensamento, minha querida, estávamos no
Seu pensamento.
Vi um cão de luxo de jaqueta apertada com um alfinete
vi uma porta aberta e um gato entrando;
mas não eram judeus alemães, minha querida, não ale-
mães.
Desci ao porto e parei no cais
vi os peixes a nadar. Como são livres!
a dez pés de distância, minha querida, só a dez pés distância.
Passeei pelo bosque; há pássaros nas árvores,não têm políticos e cantam livremente.
Não são da raça humana, minha querida, não são da raça humana.
Sonhei que vira um edifício com mil andares
mil janelas e mil portas;nenhuma delas era nossa, minha querida, nenhuma.
Corri à estação para apanhar o expresso,
pedi dois bilhetes para a Felicidade;
mas todas as carruagens estavam cheias, minha querida, todas as carruagens estavam cheias.
Fui parar a uma grande planície, no meio da neve a cair
dez mil soldados marchavam de um lado para o outro
olhando para mim e para ti, minha querida, olhando para mim e
para ti.
W. H. Auden
(1907-1973)Reino Unido
TRAD.:Jorge Emílio
Rosa Do Mundo
2001 POEMAS PARA O FUTURO
Assírio & Alvim
Camilo Pessanha
Floriram por engano as rosas bravas
No Inverno: veio o vento desfolhá-las...
Em que cismas, meu bem? Porque me calas
As vozes com que há pouco me enganavas?
Castelos doidos! Tão cedo caístes!...
Onde vamos, alheio o pensamento,
De mãos dadas? Teus olhos, que um momento
Perscrutaram nos meus, como vão tristes!
E sobre nós cai nupcial a neve,
Surda, em triunfo, pétalas, de leve
Juncando o chão, na acrópole de gelos...
Em redor do teu vulto é como um véu!
Quem as esparze --- quanta flor! --- do céu,
Sobre nós dois, sobre os nossos cabelos?
Camilo Pessanha
Fonógrafo
Clepsidra
e outros poemas
Colecção Poesia
Edições Ática
1973
No Inverno: veio o vento desfolhá-las...
Em que cismas, meu bem? Porque me calas
As vozes com que há pouco me enganavas?
Castelos doidos! Tão cedo caístes!...
Onde vamos, alheio o pensamento,
De mãos dadas? Teus olhos, que um momento
Perscrutaram nos meus, como vão tristes!
E sobre nós cai nupcial a neve,
Surda, em triunfo, pétalas, de leve
Juncando o chão, na acrópole de gelos...
Em redor do teu vulto é como um véu!
Quem as esparze --- quanta flor! --- do céu,
Sobre nós dois, sobre os nossos cabelos?
Camilo Pessanha
Fonógrafo
Clepsidra
e outros poemas
Colecção Poesia
Edições Ática
1973
quarta-feira, dezembro 13, 2006
Eugénio Lisboa
O Frisco de vez em quando faz investigações sobre o que coloco no blogue e que me são enviadas como comentários.
Daqui em diante e sempre que possível colocá-las-ei aqui, fora dos comentários para que as pessoa que cá vêm possam dar por elas...
E obrigada, mais uma vez, Frisco.
EUGÉNIO LISBOA
[Lourenço Marques (hoje Maputo)/Moçambique, 1930]
Ensaísta e crítico literário. Nascido em Lourenço Marques, onde viveu até 1976, formou-se (1953) em Engenharia Electrotécnica, pelo Instituto Superior Técnico, de Lisboa. É doutor honoris causa, em Letras, pela Universidade de Nottingham, Reino Unido (1988). Já depois da independência de Moçambique, foi colocado em Paris, na Compagnie Française des Pétroles, como adjunto do director mundial de exploração (1976). O ramo petrolífero foi a sua especialidade profissional durante vinte anos (1958-78). Mas, entre 1974-78, acumulou essa actividade com a docência, que exerceu nas Universidades de Lourenço Marques, Pretória (1974-75) e Estocolmo (1977-78), onde regeu cursos de Literatura Portuguesa. Na Suécia foi também o coordenador do ensino da língua portuguesa. Exerceu, durante dezassete anos consecutivos (1978-95), o cargo de conselheiro cultural junto da Embaixada de Portugal em Londres. Durante esse lapso de tempo propiciou a tradução e edição, no Reino Unido, de alguns clássicos da nossa literatura. Por força da sua formação académica e das obrigações do serviço militar, viveu em Lisboa entre 1947-55. Data desses anos a sua lendária amizade com José Régio, que o convidou a organizar um volume antológico da sua poesia, José Régio: Antologia, Nota Bibliográfica e Estudo (1957). Esse volume, e em particular o Estudo nele inserido, será o primeiro sinal pĂşblico de uma exigente e continuada atenção Ă obra regiana. Depois do regresso a Moçambique, foi uma figura destacada e interveniente da vida cultural laurentina, tendo co-dirigido, com Rui Knopfli, suplementos literários de jornais desafectos ao regime, casos de A Tribuna e A Voz de Moçambique. Participou na recolha do espólio de Reinaldo Ferreira, sendo autor do estudo introdutório à 1ª edição dos Poemas (i.e. o posfácio das edições portuguesas). Para o Rádio Clube de Moçambique elaborou programas de teatro radiofónico, a partir de textos de Racine, Ibsen, Régio e Montherlant. Espírito atento e sulfuroso, autor de um ensaísmo informado que não abdica da clareza e do fair play, Eugénio Lisboa tem sido, ao arrepio de modas e conveniências de vária ordem, um leitor empenhado e provocante de autores pouco amáveis (Henry de Montherlant, Régio, Reinaldo Ferreira, Sena, Rui Knopfli, para citar apenas os casos de dedicação "militante"). Foi também, nos anos 60 e 70, um desassombrado crítico da visão oficiosa das "literaturas africanas de expressão portuguesa". A generalidade dos ensaios que escreveu e publicou em Moçambique foram coligidos nos dois volumes de Crónica dos Anos da Peste (1973 e 1975; tomo àşnico desde 1996). A par da sua actividade ensaística, Eugénio Lisboa é autor de um livro de poesia, A Matéria Intensa (1985). A pretexto desse livro, David Mourão-Ferreira fez notar os "inesperados acentos lĂşdicos" de uma voz "a um tempo áspera e calorosa, austera e fremente". Colaboração de vária índole encontra-se dispersa, desde os anos 50, por jornais e revistas de Moçambique - além dos já citados, Notícias, Diário, Notícias da Beira, Diário de Moçambique, Objectiva, Paralelo 20 - e de Portugal, tais como o Diário Popular, A Capital, JL, O Tempo e o Modo, Colóquio-Letras, Prelo, Nova Renascença, Oceanos, Ler, etc. Dirigiu, para o Círculo de Leitores, a colecção das Obras Escolhidas de José Régio. Escritor e diplomata, membro da Associação Internacional dos Críticos Literários, oficial da Ordem do Infante D. Henrique, tenente da Royal Victorian Order (Grã-Bretanha), presidiu à Comissão Nacional da UNESCO entre 1996 e 1998. Exerce actividade docente na Universidade de Aveiro. Foi o coordenador dos três primeiros volumes do presente Dicionário (1985-94). Usou os pseudónimos Armando Vieira de Sá, John Land e Lapiro da Fonseca.
in Dicionário Cronológico de Autores Portugueses, Vol. V, Lisboa, 1998
Daqui em diante e sempre que possível colocá-las-ei aqui, fora dos comentários para que as pessoa que cá vêm possam dar por elas...
E obrigada, mais uma vez, Frisco.
EUGÉNIO LISBOA
[Lourenço Marques (hoje Maputo)/Moçambique, 1930]
Ensaísta e crítico literário. Nascido em Lourenço Marques, onde viveu até 1976, formou-se (1953) em Engenharia Electrotécnica, pelo Instituto Superior Técnico, de Lisboa. É doutor honoris causa, em Letras, pela Universidade de Nottingham, Reino Unido (1988). Já depois da independência de Moçambique, foi colocado em Paris, na Compagnie Française des Pétroles, como adjunto do director mundial de exploração (1976). O ramo petrolífero foi a sua especialidade profissional durante vinte anos (1958-78). Mas, entre 1974-78, acumulou essa actividade com a docência, que exerceu nas Universidades de Lourenço Marques, Pretória (1974-75) e Estocolmo (1977-78), onde regeu cursos de Literatura Portuguesa. Na Suécia foi também o coordenador do ensino da língua portuguesa. Exerceu, durante dezassete anos consecutivos (1978-95), o cargo de conselheiro cultural junto da Embaixada de Portugal em Londres. Durante esse lapso de tempo propiciou a tradução e edição, no Reino Unido, de alguns clássicos da nossa literatura. Por força da sua formação académica e das obrigações do serviço militar, viveu em Lisboa entre 1947-55. Data desses anos a sua lendária amizade com José Régio, que o convidou a organizar um volume antológico da sua poesia, José Régio: Antologia, Nota Bibliográfica e Estudo (1957). Esse volume, e em particular o Estudo nele inserido, será o primeiro sinal pĂşblico de uma exigente e continuada atenção Ă obra regiana. Depois do regresso a Moçambique, foi uma figura destacada e interveniente da vida cultural laurentina, tendo co-dirigido, com Rui Knopfli, suplementos literários de jornais desafectos ao regime, casos de A Tribuna e A Voz de Moçambique. Participou na recolha do espólio de Reinaldo Ferreira, sendo autor do estudo introdutório à 1ª edição dos Poemas (i.e. o posfácio das edições portuguesas). Para o Rádio Clube de Moçambique elaborou programas de teatro radiofónico, a partir de textos de Racine, Ibsen, Régio e Montherlant. Espírito atento e sulfuroso, autor de um ensaísmo informado que não abdica da clareza e do fair play, Eugénio Lisboa tem sido, ao arrepio de modas e conveniências de vária ordem, um leitor empenhado e provocante de autores pouco amáveis (Henry de Montherlant, Régio, Reinaldo Ferreira, Sena, Rui Knopfli, para citar apenas os casos de dedicação "militante"). Foi também, nos anos 60 e 70, um desassombrado crítico da visão oficiosa das "literaturas africanas de expressão portuguesa". A generalidade dos ensaios que escreveu e publicou em Moçambique foram coligidos nos dois volumes de Crónica dos Anos da Peste (1973 e 1975; tomo àşnico desde 1996). A par da sua actividade ensaística, Eugénio Lisboa é autor de um livro de poesia, A Matéria Intensa (1985). A pretexto desse livro, David Mourão-Ferreira fez notar os "inesperados acentos lĂşdicos" de uma voz "a um tempo áspera e calorosa, austera e fremente". Colaboração de vária índole encontra-se dispersa, desde os anos 50, por jornais e revistas de Moçambique - além dos já citados, Notícias, Diário, Notícias da Beira, Diário de Moçambique, Objectiva, Paralelo 20 - e de Portugal, tais como o Diário Popular, A Capital, JL, O Tempo e o Modo, Colóquio-Letras, Prelo, Nova Renascença, Oceanos, Ler, etc. Dirigiu, para o Círculo de Leitores, a colecção das Obras Escolhidas de José Régio. Escritor e diplomata, membro da Associação Internacional dos Críticos Literários, oficial da Ordem do Infante D. Henrique, tenente da Royal Victorian Order (Grã-Bretanha), presidiu à Comissão Nacional da UNESCO entre 1996 e 1998. Exerce actividade docente na Universidade de Aveiro. Foi o coordenador dos três primeiros volumes do presente Dicionário (1985-94). Usou os pseudónimos Armando Vieira de Sá, John Land e Lapiro da Fonseca.
in Dicionário Cronológico de Autores Portugueses, Vol. V, Lisboa, 1998
terça-feira, dezembro 12, 2006
Eugénio Lisboa
HIPÓTESE - I (O INVERNO NUCLEAR)
Brisas
Brandas, as brisas alisam
aquilo que não é vida:
sossegam, calmas, deslizam,
na fria terra despida.
Solenes brisas avisam
quem já ouvi-las não sabe:
nas brisas que nada pisam
fulgor de vida não cabe.
Eugénio Lisboa
o Ilimitável Oceano
quasi
Brisas
Brandas, as brisas alisam
aquilo que não é vida:
sossegam, calmas, deslizam,
na fria terra despida.
Solenes brisas avisam
quem já ouvi-las não sabe:
nas brisas que nada pisam
fulgor de vida não cabe.
Eugénio Lisboa
o Ilimitável Oceano
quasi
Miguel Correia
Vem ao jardim escuro da montanha
onde ferve a rocha negra o cântico forte
a deusa que distribui em trunfo
salmos imaginação e copas
vem passear por ruínas
a eterna veste sonhada
enquanto insectos na estação quietos
roem o armário da imudável beleza
porque arde o sol no labirinto verde
e o corpo é flor que ganha espinhos
e se despe em tempestade
em incêndio de cidades muradas
campos de batalha e nevoeiro
sacie estradas como pétalas de prata
meu pisado amor todos os dias
vem dormir na areia negra nossa
onde aos saciados ossos
nasce uma onda estival e primitiva
a obra que sendo arte nos vandaliza
e ante nós se abre como imago colorido
Miguel Correia
Lugar Comum
Tríptico
101 noites
onde ferve a rocha negra o cântico forte
a deusa que distribui em trunfo
salmos imaginação e copas
vem passear por ruínas
a eterna veste sonhada
enquanto insectos na estação quietos
roem o armário da imudável beleza
porque arde o sol no labirinto verde
e o corpo é flor que ganha espinhos
e se despe em tempestade
em incêndio de cidades muradas
campos de batalha e nevoeiro
sacie estradas como pétalas de prata
meu pisado amor todos os dias
vem dormir na areia negra nossa
onde aos saciados ossos
nasce uma onda estival e primitiva
a obra que sendo arte nos vandaliza
e ante nós se abre como imago colorido
Miguel Correia
Lugar Comum
Tríptico
101 noites
Nuno Moura
-- e --
aruava rastante a marioneta magra
todo de si era um recanto.
Os dedos botijosos certificavam o vinho verde no bolso
era de emergências
não havia palhinha nem desejoso ulceroso
só um poema de trânsito vindo para diante do amor.
Frágifirme, ia numa guia-de-entrega chegá-lo.
Da estrada, tinha nome de loja de olhos armadurados.
Do número, dois degraus para uma porta azul
de fechar se faz favor
Nuno Moura
Adraar Bous
beauty contest talcum powder
Mariposa Azual
aruava rastante a marioneta magra
todo de si era um recanto.
Os dedos botijosos certificavam o vinho verde no bolso
era de emergências
não havia palhinha nem desejoso ulceroso
só um poema de trânsito vindo para diante do amor.
Frágifirme, ia numa guia-de-entrega chegá-lo.
Da estrada, tinha nome de loja de olhos armadurados.
Do número, dois degraus para uma porta azul
de fechar se faz favor
Nuno Moura
Adraar Bous
beauty contest talcum powder
Mariposa Azual
Francisco José Viegas
Partir
Para onde partes há uma casa solitária
onde é bom viver acompanhado de alguns livros
que, desde a infância, se tornaram indispensáveis.
Nada mais, o resto magoa, há gente que ama e se esquece.
Só paciente, agora partes, esqueces a autobiografia
que escondeste nas gavetas. Perfuma-a a alfazema,
o frio, a neblina, a humidade que cresce
corno urna mágoa ou um afecto. Sê lento,
aguarda, esquece a tua alegria por momentos.
as fotografias, a música. Um dia tudo regressará.
Francisco José Viegas
metade da vida
quasi
Para onde partes há uma casa solitária
onde é bom viver acompanhado de alguns livros
que, desde a infância, se tornaram indispensáveis.
Nada mais, o resto magoa, há gente que ama e se esquece.
Só paciente, agora partes, esqueces a autobiografia
que escondeste nas gavetas. Perfuma-a a alfazema,
o frio, a neblina, a humidade que cresce
corno urna mágoa ou um afecto. Sê lento,
aguarda, esquece a tua alegria por momentos.
as fotografias, a música. Um dia tudo regressará.
Francisco José Viegas
metade da vida
quasi
domingo, dezembro 10, 2006
Dorothy Parker
EU HEI-DE VOLTAR
(I shall come back)
Não é fanfarronice eu voltar cá um dia
da paz do cemitério e do vento ululando:
trémula, a deslizar da Eternidade fria,
humilde sombrazinha atónita, passando.
Não pela meia-noite em sepulcral passeio;
hei-de vir suavemente aonde mais queria,
dum poente de Abril, na surda melodia;
e, dos dois, serei eu quem há-de ter receio.
Como é estranho deixar os sonhos bons da morte
para buscar quem me tratou tão duramente!
Não sentirás a minha mão na tua fronte,
que eu serei um fantasma novo e inexperiente.
Talvez nem dês por mim: mas terás, a teu lado,
um ténue coração de espectro, esfacelado.
DOROTHY PARKER
1893-1967
Oiro de Vário Tempo e Lugar
Versões de
A. HERCULANO DE CARVALHO
Edições ASA
UMA ROSA PERFEITA
( A perfect rose)
Só me deu uma flor desde que me encontrou.
assim pura e tão fiel, orvalhada e cheirosa,
que mensageira terna e feliz ele achou:
uma perfeita rosa.
Da linguagem da flor descobri o segredo:
"trago o seu coração na corola mimosa"!
De há muito o amor tomou para seu amuleto
uma perfeita rosa.
Nunca ainda ninguém pensou em me oferecer
um perfeito automóvel... pois, teimosa,
foi sempre sina minha apenas receber
uma perfeita rosa.
DOROTHY PARKER
1893-1967
Oiro de Vário Tempo e Lugar
Versões de
A. HERCULANO DE CARVALHO
Edições ASA
(I shall come back)
Não é fanfarronice eu voltar cá um dia
da paz do cemitério e do vento ululando:
trémula, a deslizar da Eternidade fria,
humilde sombrazinha atónita, passando.
Não pela meia-noite em sepulcral passeio;
hei-de vir suavemente aonde mais queria,
dum poente de Abril, na surda melodia;
e, dos dois, serei eu quem há-de ter receio.
Como é estranho deixar os sonhos bons da morte
para buscar quem me tratou tão duramente!
Não sentirás a minha mão na tua fronte,
que eu serei um fantasma novo e inexperiente.
Talvez nem dês por mim: mas terás, a teu lado,
um ténue coração de espectro, esfacelado.
DOROTHY PARKER
1893-1967
Oiro de Vário Tempo e Lugar
Versões de
A. HERCULANO DE CARVALHO
Edições ASA
UMA ROSA PERFEITA
( A perfect rose)
Só me deu uma flor desde que me encontrou.
assim pura e tão fiel, orvalhada e cheirosa,
que mensageira terna e feliz ele achou:
uma perfeita rosa.
Da linguagem da flor descobri o segredo:
"trago o seu coração na corola mimosa"!
De há muito o amor tomou para seu amuleto
uma perfeita rosa.
Nunca ainda ninguém pensou em me oferecer
um perfeito automóvel... pois, teimosa,
foi sempre sina minha apenas receber
uma perfeita rosa.
DOROTHY PARKER
1893-1967
Oiro de Vário Tempo e Lugar
Versões de
A. HERCULANO DE CARVALHO
Edições ASA
sábado, dezembro 09, 2006
Letra B - Bruno Wheinhals
ALGUÉM CORRE. UMA PESSOA QUALQUER
corre, foge, tropeça cai
fica no chão. Lábios e língua
movem a última imagem,
alguém, o seu próprio nome.
(Na nuca a mão na mão um revólver na cabeça uma bala.)
Que dia era aquele?
Cheiro a pó?
Bruno Weinhals
Uma Conversa Passa Pelo Papel
tradução colectiva
UM NOME PARA TI
um som que te faz ser quando precisares de ti
Para ti uma grafia uma sílaba mais forte
como rosto cabelo andar as pequenas manias
Com o teu nome existes Foste já
inventado para o macio aconchego
da pele ainda não presente
Bruno Weinhals
Uma Conversa Passa Pelo Papel
tradução colectiva
UMA VOZ COMEÇA E EXPANDE-SE
pelas tuas páginas A sombra que ignoras
vai avançando lenta O que refresca a pele
gostaria também de as folhear (pões a mão no livro)
A sombra alcança-te agora Não te incomoda
Mesmo sem solo teu sabor agrada Ă s palavras
bela e fresca e tão curiosa
Bruno Weinhals
Uma Conversa Passa Pelo Papel
tradução colectiva
TALVEZ SEM MEDO
estás deitada de costas com as mãos para trás
rendida ao poder do sono
É o teu sonho mas como
tantas coisas ele une entre si
o que também não conheces
nem tu nem as coisas
Uma sombra que só eu vejo
atravessa a janela tomba
e continua a voar
Bruno Weinhals
Uma Conversa Passa Pelo Papel
tradução colectiva
PAÍS DO MEIO-DIA
Atravessado pelo zumbido de um único ruído de carros
e pela música infinda de uma estação de rádio
o vazio do meio-dia
A cidade uma configuração constituída
por rede de aço e estruturas de betão
Atrás das gruas brilha
a água da bacia portuária
indolente em todas as cores de óleo usado
As ruas varridas
pelo sol recozidas
O apressado asfalto da cidade
um caminho de fuga
para a paisagem pedregosa
Uma língua quente rasga o corpo em suor
As cores são pó
não pó
são pedras
Bruno Wheinhals
Uma Conversa Passa Pelo Papel
e outros poemas
Tradução colectiva
DÁDIVA MATINAL
Um beijo
e estas palavras
ao teu ouvido
na tua boca
possa este peso imposto
ser-te leve
Bruno Wheinhals
Uma Conversa Passa Pelo Papel
e outros poemas
Tradução colectiva
corre, foge, tropeça cai
fica no chão. Lábios e língua
movem a última imagem,
alguém, o seu próprio nome.
(Na nuca a mão na mão um revólver na cabeça uma bala.)
Que dia era aquele?
Cheiro a pó?
Bruno Weinhals
Uma Conversa Passa Pelo Papel
tradução colectiva
UM NOME PARA TI
um som que te faz ser quando precisares de ti
Para ti uma grafia uma sílaba mais forte
como rosto cabelo andar as pequenas manias
Com o teu nome existes Foste já
inventado para o macio aconchego
da pele ainda não presente
Bruno Weinhals
Uma Conversa Passa Pelo Papel
tradução colectiva
UMA VOZ COMEÇA E EXPANDE-SE
pelas tuas páginas A sombra que ignoras
vai avançando lenta O que refresca a pele
gostaria também de as folhear (pões a mão no livro)
A sombra alcança-te agora Não te incomoda
Mesmo sem solo teu sabor agrada Ă s palavras
bela e fresca e tão curiosa
Bruno Weinhals
Uma Conversa Passa Pelo Papel
tradução colectiva
TALVEZ SEM MEDO
estás deitada de costas com as mãos para trás
rendida ao poder do sono
É o teu sonho mas como
tantas coisas ele une entre si
o que também não conheces
nem tu nem as coisas
Uma sombra que só eu vejo
atravessa a janela tomba
e continua a voar
Bruno Weinhals
Uma Conversa Passa Pelo Papel
tradução colectiva
PAÍS DO MEIO-DIA
Atravessado pelo zumbido de um único ruído de carros
e pela música infinda de uma estação de rádio
o vazio do meio-dia
A cidade uma configuração constituída
por rede de aço e estruturas de betão
Atrás das gruas brilha
a água da bacia portuária
indolente em todas as cores de óleo usado
As ruas varridas
pelo sol recozidas
O apressado asfalto da cidade
um caminho de fuga
para a paisagem pedregosa
Uma língua quente rasga o corpo em suor
As cores são pó
não pó
são pedras
Bruno Wheinhals
Uma Conversa Passa Pelo Papel
e outros poemas
Tradução colectiva
DÁDIVA MATINAL
Um beijo
e estas palavras
ao teu ouvido
na tua boca
possa este peso imposto
ser-te leve
Bruno Wheinhals
Uma Conversa Passa Pelo Papel
e outros poemas
Tradução colectiva
Guilhem de Peitieu
Fiz um poema sobre nada:
Não é de amor nem é de amada,
Não tem saída nem entrada,
Ao encontrá-lo,
Ia dormindo pela estrada
No meu cavalo.
Eu não sei quando fui gerado:
Não sou alegre nem irado,
Não sou falante nem calado,
Nem faço caso,
Aceito tudo o que me é dado
Como um acaso.
Não sei quando é que adormeci,
Quando acordei também não vi,
Meu coração quase parti
Com o meu mal,
Mas eu não ligo nem a ti,
Por São Marcial.
Estou doente e vou morrer,
Não sei de quê, ouvi dizer,
A um médico vou recorrer,
Mas não sei qual,
Será bom se me socorrer
E se não, mau.
Tenho uma amiga, mas quem é
Não sei nem ela sabe e até
Nem quero ver, por minha fé,
Pouco me importa
Se há normando ou francês ao pé
Da minha porta.
Eu não a vi e amo a ninguém
Que não me fez nem mal nem bem
E nem me viu. Isso, porém,
Tanto me faz,
Que eu sei de outra, entre cem,
Que vale mais.
Finda a canção, não sei de quem,
Irei passá-la agora a alguém
Que a passará ainda além
A amigo algum,
Que logo a passará também
A qualquer um.
Guilhem de Peitieu
Canção, séc. XII
sexta-feira, dezembro 08, 2006
João Miguel Fernandes Jorge
SOBRE A PEDRA DOS DIAS
As formigas não saíram
das suas ruas subterrâneas. Um setembro
muito longe do fulgor do outono. Eu
despovoei-me dos sonhos: as mãos apertavam-
-se ao redor de nenhuma esperança. Traziam
o peso de outras mãos, repetidas, de um passado
tão longínquo.
Um tempo de demasiado torpor,
sem regresso. Havia uma voz branca sobre a
terra sêca, os olhos fatigados suspendiam o
desenho dos objectos o peso sobre as coisas.
“Não o conheço.”
“Aqui é tudo tão triste.”
“Dá-me um cigarro?”
A planície guardava a secreta memĂłria do verde,
dos campos verdes. Agora
os vários caminhos abriam para o iluminado
amarelo.
Os ombros cruzavam-se sob a remota
distância do ar quente, do verão sem fim. Os
corpos quase se tocavam, como todas as coisas sobre a
terra, sobre os campos da terra a arder.
“Lembro-me de ti.”
“Desculpe, mas nunca o conheci.”
“Eu trago ainda o teu retrato no bolso sobre
o meu coração. É uma velha fotografia.
Guardei-a desde esse ano, como quem suspende
entre duas folhas de caderno
ervas e flores.”
“Não me lembro.”
“É natural. Morreste há tantos anos.”
Repete-se o calor sobre as paredes.
O eco de uma casa desabitada: os
cães estão longe, o seu latir rompe o ar quieto.
Estava naquela aldeia de mar. Nos muros
que levam à rua principal. O largo tem uma
igreja, uma praga de orações.
Os passos os ombros os olhos que movem à
minha frente eu hei-de vê-los. As portas batem
sob o vento quente. Ninguém vive na terra
nesta casa que se prende e desprende daqueles que
vivem.
Escureceu. Clareou. “Boa-noite.”
“Bom-dia.” Escureceu de novo. “Bom-dia.” As
mãos vinham repletas de ruídos, silêncio, vozes
perto de ti.
Os passos juntaram-se aos que estavam à
espera. Eram passos presos a outros passos e
cravavam um sulco na terra negra do chão. Canto
entoado, baixo, muito baixinho
leva à viagem que retém o outro corpo. Caíam as
as horas do muito calor; a luz desaparecia pelo
amanhecer, ardia através da noite e dos campos.
Pareciam estar muito longe
os passos.
E faz com que desperte o prometido sonho; a
porta entre-aberta “faz o que quiseres”
ouvi, ouviu.
A esmaecida luz desaparecia nas paredes da casa
entre as sombras do corpo da casa. A terra é
uma vereda de fogo. Os ramos amanhecem sem
o brilho da voz da manhã.
Está sentado numa velha cadeira sob
a lassidão de setembro. Mexe os lábios,
incoerentes palavras.
Seguia pelo mais estreito corredor da vida.
Sombrio. Húmido. De novo sombrio na imensidade
da casa. Seguiu à baleia de deus, triste
quatro ou cinco moedas no bolso.
João Miguel Fernandes Jorge
o barco vazio
colecção forma
Editorial Presença
1ª edição
1994
As formigas não saíram
das suas ruas subterrâneas. Um setembro
muito longe do fulgor do outono. Eu
despovoei-me dos sonhos: as mãos apertavam-
-se ao redor de nenhuma esperança. Traziam
o peso de outras mãos, repetidas, de um passado
tão longínquo.
Um tempo de demasiado torpor,
sem regresso. Havia uma voz branca sobre a
terra sêca, os olhos fatigados suspendiam o
desenho dos objectos o peso sobre as coisas.
“Não o conheço.”
“Aqui é tudo tão triste.”
“Dá-me um cigarro?”
A planície guardava a secreta memĂłria do verde,
dos campos verdes. Agora
os vários caminhos abriam para o iluminado
amarelo.
Os ombros cruzavam-se sob a remota
distância do ar quente, do verão sem fim. Os
corpos quase se tocavam, como todas as coisas sobre a
terra, sobre os campos da terra a arder.
“Lembro-me de ti.”
“Desculpe, mas nunca o conheci.”
“Eu trago ainda o teu retrato no bolso sobre
o meu coração. É uma velha fotografia.
Guardei-a desde esse ano, como quem suspende
entre duas folhas de caderno
ervas e flores.”
“Não me lembro.”
“É natural. Morreste há tantos anos.”
Repete-se o calor sobre as paredes.
O eco de uma casa desabitada: os
cães estão longe, o seu latir rompe o ar quieto.
Estava naquela aldeia de mar. Nos muros
que levam à rua principal. O largo tem uma
igreja, uma praga de orações.
Os passos os ombros os olhos que movem à
minha frente eu hei-de vê-los. As portas batem
sob o vento quente. Ninguém vive na terra
nesta casa que se prende e desprende daqueles que
vivem.
Escureceu. Clareou. “Boa-noite.”
“Bom-dia.” Escureceu de novo. “Bom-dia.” As
mãos vinham repletas de ruídos, silêncio, vozes
perto de ti.
Os passos juntaram-se aos que estavam à
espera. Eram passos presos a outros passos e
cravavam um sulco na terra negra do chão. Canto
entoado, baixo, muito baixinho
leva à viagem que retém o outro corpo. Caíam as
as horas do muito calor; a luz desaparecia pelo
amanhecer, ardia através da noite e dos campos.
Pareciam estar muito longe
os passos.
E faz com que desperte o prometido sonho; a
porta entre-aberta “faz o que quiseres”
ouvi, ouviu.
A esmaecida luz desaparecia nas paredes da casa
entre as sombras do corpo da casa. A terra é
uma vereda de fogo. Os ramos amanhecem sem
o brilho da voz da manhã.
Está sentado numa velha cadeira sob
a lassidão de setembro. Mexe os lábios,
incoerentes palavras.
Seguia pelo mais estreito corredor da vida.
Sombrio. Húmido. De novo sombrio na imensidade
da casa. Seguiu à baleia de deus, triste
quatro ou cinco moedas no bolso.
João Miguel Fernandes Jorge
o barco vazio
colecção forma
Editorial Presença
1ª edição
1994
João Camilo
O MENSAGEIRO DO AMOR
No andar de cima, do outro lado das escadas,
havia uma festa. Eu ouvia a música e os risos,
as vozes que se excitavam e enchiam o silêncio da noite
de desejos, de paixões. Depois a porta bateu, passos
nas escadas. Uma rapariga desceu, as palavras
saíam-lhe da boca com uma facilidade
tão cheia do amor da vida. À tarde,
no centro da cidade, uma outra rapariga esperava,
sentada à mesa do café, com a mala ao lado,
o mensageiro do amor. Estava
tão segura de si, tão convencida de que ele
acabaria por chegar. Eu olhei o seu rosto jovem,
os seus cabelos que o vento parecia ter desalinhado.
A sua espera comoveu-me. Depois continuei
o meu caminho. A chuva caía
sobre as ruas da cidade. Límpidas, nítidas,
as fachadas das casas enchiam o fim da tarde
com a sua presença silenciosa. A eternidade
não existe, mas enquanto é tempo de durar, as pedras
e a madeira das portas e janelas duram.
Pouco a pouco o ruído cessou, a casa adormeceu.
Os convidados da festa falaram alto na rua,
depois o ruído dos automóveis levou-os para longe.
Contemplei a parede branca, a capa de um livro,
a caneta em cima da mesa, ao lado do jornal.
E o sono desceu sobre os meus olhos.
João Camilo
A Mala dos Marx Brothers
Caminho
Da Poesia
1988
No andar de cima, do outro lado das escadas,
havia uma festa. Eu ouvia a música e os risos,
as vozes que se excitavam e enchiam o silêncio da noite
de desejos, de paixões. Depois a porta bateu, passos
nas escadas. Uma rapariga desceu, as palavras
saíam-lhe da boca com uma facilidade
tão cheia do amor da vida. À tarde,
no centro da cidade, uma outra rapariga esperava,
sentada à mesa do café, com a mala ao lado,
o mensageiro do amor. Estava
tão segura de si, tão convencida de que ele
acabaria por chegar. Eu olhei o seu rosto jovem,
os seus cabelos que o vento parecia ter desalinhado.
A sua espera comoveu-me. Depois continuei
o meu caminho. A chuva caía
sobre as ruas da cidade. Límpidas, nítidas,
as fachadas das casas enchiam o fim da tarde
com a sua presença silenciosa. A eternidade
não existe, mas enquanto é tempo de durar, as pedras
e a madeira das portas e janelas duram.
Pouco a pouco o ruído cessou, a casa adormeceu.
Os convidados da festa falaram alto na rua,
depois o ruído dos automóveis levou-os para longe.
Contemplei a parede branca, a capa de um livro,
a caneta em cima da mesa, ao lado do jornal.
E o sono desceu sobre os meus olhos.
João Camilo
A Mala dos Marx Brothers
Caminho
Da Poesia
1988
quinta-feira, dezembro 07, 2006
Letra B - Boaventura de Sousa
MINIATURA
Parto da vida íntima,
do último século não distingo um beijo
Convivo com as ocasiões
de mãos erguidas ao céu da fala,
as luzes superiores apagam-se
como um sermão de festa
ao alto dos pinheiros
entre cheiro de churrasco
e louro nos telheiros do verdasco
Contradigo-me
e tenho mãe,
confirmação de quase tudo
Junto ao espelho
a inocência impassível das feridas
desperdiça os filhos -
ao longe
um presépio calmo
cercado de artesanato fiel
laborioso e duplo como a alma.
Boaventura de Sousa
Madison e Outros Lugares
Edições Afrontamento
1989
CARTA DE UM VELHO QUANDO JOVEM
Depois do que te disse
descansei
escrevo-te sem endereço
no reverso do que fiz
não escolho as ruas onde moras
paro no verso
nunca atravesso
fecho-me na caixa do correio
à espera que me escrevas
melhor é acampar
no dedo direito deste magro braço d'água
cingido à complicação elementar
de estar vivo.
Boaventura de Sousa
Madison e Outros Lugares
Edições Afrontamento
1989
PAISAGEM SÚBITA
Abriu-se o retrato,
entram e saem músculos à farta
as presenças agradáveis do vocabulário,
outrora entregues
ao cuidado camponês,
campeiam no renovo
como cabras
com o zelo azedo da obra inacabada
as quatro patas do tempo
trazem-me ao cimo da taça
para transbordar
um gato fácil sobe ao caixilho
e contempla a mobília depois da agitação.
Boaventura de Sousa
Madison e Outros Lugares
Edições Afrontamento
1989
AUTO-RETRATO
Este retrato tem barulho de escada rolante
que se cala em movimento
o chão dos achados
rodeia o mapa de flores pesadas
e os degraus germinam nos pés
à cata de gente média
passageira imóvel dos factos
cresce com o excesso latino
a morte vitalícia de um céu mecânico
a espera é d'aço menino
como um século corporal
vestido de santos e arcanjos
entre os pardais da cama
os troféus escondem os donos
e pensam grosso à sobremesa
sou um homem casado
com dois ou três princípios
que não têm fim.
Boaventura de Sousa
Madison e Outros Lugares
Edições Afrontamento
1989
TEXTO PERDIDO ENTRE O ESCRITÓRIO E O CAFÉ
Não eram preciosas
eram exactas
tinham chegado em procissão
e estavam a entrar no corpo do encontro
não quis cercá-Ias de linhas
era tão cedo quanto tarde,
utilizava o espelho de memória
com a minúscula atenção de última hora
a história de uma perda
de que não me lembro.
Boaventura de Sousa
Madison e Outros Lugares
Edições Afrontamento
1989
Parto da vida íntima,
do último século não distingo um beijo
Convivo com as ocasiões
de mãos erguidas ao céu da fala,
as luzes superiores apagam-se
como um sermão de festa
ao alto dos pinheiros
entre cheiro de churrasco
e louro nos telheiros do verdasco
Contradigo-me
e tenho mãe,
confirmação de quase tudo
Junto ao espelho
a inocência impassível das feridas
desperdiça os filhos -
ao longe
um presépio calmo
cercado de artesanato fiel
laborioso e duplo como a alma.
Boaventura de Sousa
Madison e Outros Lugares
Edições Afrontamento
1989
CARTA DE UM VELHO QUANDO JOVEM
Depois do que te disse
descansei
escrevo-te sem endereço
no reverso do que fiz
não escolho as ruas onde moras
paro no verso
nunca atravesso
fecho-me na caixa do correio
à espera que me escrevas
melhor é acampar
no dedo direito deste magro braço d'água
cingido à complicação elementar
de estar vivo.
Boaventura de Sousa
Madison e Outros Lugares
Edições Afrontamento
1989
PAISAGEM SÚBITA
Abriu-se o retrato,
entram e saem músculos à farta
as presenças agradáveis do vocabulário,
outrora entregues
ao cuidado camponês,
campeiam no renovo
como cabras
com o zelo azedo da obra inacabada
as quatro patas do tempo
trazem-me ao cimo da taça
para transbordar
um gato fácil sobe ao caixilho
e contempla a mobília depois da agitação.
Boaventura de Sousa
Madison e Outros Lugares
Edições Afrontamento
1989
AUTO-RETRATO
Este retrato tem barulho de escada rolante
que se cala em movimento
o chão dos achados
rodeia o mapa de flores pesadas
e os degraus germinam nos pés
à cata de gente média
passageira imóvel dos factos
cresce com o excesso latino
a morte vitalícia de um céu mecânico
a espera é d'aço menino
como um século corporal
vestido de santos e arcanjos
entre os pardais da cama
os troféus escondem os donos
e pensam grosso à sobremesa
sou um homem casado
com dois ou três princípios
que não têm fim.
Boaventura de Sousa
Madison e Outros Lugares
Edições Afrontamento
1989
TEXTO PERDIDO ENTRE O ESCRITÓRIO E O CAFÉ
Não eram preciosas
eram exactas
tinham chegado em procissão
e estavam a entrar no corpo do encontro
não quis cercá-Ias de linhas
era tão cedo quanto tarde,
utilizava o espelho de memória
com a minúscula atenção de última hora
a história de uma perda
de que não me lembro.
Boaventura de Sousa
Madison e Outros Lugares
Edições Afrontamento
1989
segunda-feira, dezembro 04, 2006
Horácio
Horácio
Arte Poética
Roma
(c. 65-8 a. C.)
ARTE POÉTICA
(1-13)
Harmonia e proporção entre as partes da obra poética
Se um pintor à cabeça humana unisse
pescoço de cavalo e de diversas
penas vestisse o corpo organizado
de membros de animais de toda a espécie,
de sorte que mulher de belo aspecto
em torpe e negro peixe rematasse
vós, chamados a ver esta pintura,
o riso sofreríeis? Pois convosco
assentai, ó Pisões, que a um quadro destes
será mui semelhante aquele livro
no qual ideias vãs se representam
(quais os sonhos do enfermo), de tal modo,
que nem pés, nem cabeça a uma só forma
convenha. De fingir ampla licença
ao poeta e pintor sempre foi dada.
Assim é; e entre nós tal liberdade
pedimos mutuamente, e concedemos;
mas não há-de ser tanta, que se ajunte
agreste çom suave, e queira unir-se
ave a serpente, cordeirinho a tigre.
TRAD.: CÂNDIDO LUSITANO
Rosa do Mundo
2001 Poemas Para o Futuro
Arte Poética
Roma
(c. 65-8 a. C.)
ARTE POÉTICA
(1-13)
Harmonia e proporção entre as partes da obra poética
Se um pintor à cabeça humana unisse
pescoço de cavalo e de diversas
penas vestisse o corpo organizado
de membros de animais de toda a espécie,
de sorte que mulher de belo aspecto
em torpe e negro peixe rematasse
vós, chamados a ver esta pintura,
o riso sofreríeis? Pois convosco
assentai, ó Pisões, que a um quadro destes
será mui semelhante aquele livro
no qual ideias vãs se representam
(quais os sonhos do enfermo), de tal modo,
que nem pés, nem cabeça a uma só forma
convenha. De fingir ampla licença
ao poeta e pintor sempre foi dada.
Assim é; e entre nós tal liberdade
pedimos mutuamente, e concedemos;
mas não há-de ser tanta, que se ajunte
agreste çom suave, e queira unir-se
ave a serpente, cordeirinho a tigre.
TRAD.: CÂNDIDO LUSITANO
Rosa do Mundo
2001 Poemas Para o Futuro
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