domingo, setembro 09, 2007

José Oliveira

PEQUENA SONATA PARA TARKOVSKI
(In Memoriam Andrej Arsenievic Tarkovkij)

Tema

Acordaste com a sombra de um pássaro sobre o coração.
Esse pássaro estava doente mas não deste por isso.
Talvez estivesse cego. Assim o fizeste para a luz.
Para as apagadas linhas dos ícones cobertos pelo nevoeiro.

Primeiro andamento

Andrej um deus constrói-se devagar,
com velas e crianças habitando seu corpo:
ermida de águas incontidas ou vazias, devastado templo,
tua casa.
Interroga o Seu silêncio na ruína das catedrais
na sombra verde de um pássaro
na terra interdita que te recebe agora para a
sublime revelação do absoluto.
Segue esse mapa com as rotas da morte; segue-o
até aos limites da Grande Mãe Rússia esse útero onde nascem
as aves e de onde partem para uma viagem sem regresso.
Ivan, foi há quantos anos? o lago o silêncio a guerra,
quase de certeza.
Ainda conservas o fogo que te ofereci nos anos?
A encenação do delírio essa pequena música tombando
gota a gota sobre a imagem do corpo.
Esse corpo tombando sobre a rua, calcinado. Assim aprende
um homem a arte do incêndio.

Segundo andamento

Era um quarto amplo. No centro uma cama. Sobre ela toda a
memória da terra. Mutilada infância.
Irás nesse quarto amar a mulher que perdeste há longos anos:
a mãe a amante a face de Deus.
Será porventura tarde: estará morta. De frio, de cancro,
de nostalgia. Ainda apareceu um cão, mas nada pôde fazer.

Depois veio a chuva. Invadiu todo o espaço, alagou os lençóis
e os corpos purificados, as sombras desvairadas a piscina
bíblico território tão perto da loucura
ou seja, do fim.

A perfeição uma porta interior que se abre para a terra
para a memória para o desgosto para a luz.
Ou talvez para o exílio. O lento e vibrante exílio dos homens.

Terceiro andamento

Entretanto, discreta, ela veio e rente cortou uma a uma
as raízes, esses rios oblíquos.
Ainda tiveste tempo de enterrar os ícones
de os devolver à «humilde Terra-Mãe».
Mas o sangue, o legítimo sangue russo, esse irá alimentar
os pássaros durante o inverno.

Partiste pelo de fim de Dezembro. Não te consentiram os deuses
maior vida.
Por isso agora sobre a neve duas rosas geladas
um cantochão uma cruz pouco nítida.
Ao fundo sob o nevoeiro a velha casa deserta - a pátria.
Não voltarei a essa casa. Esgotada sombra.

Andrej repara conservo ainda a vela com que atravessei
a piscina. O frio o vento o silêncio.
Leva-me contigo. Leva-me Andrej.

José Oliveira
Melancolismos
Edições Inapa

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