As coisas da vida
Não te preocupes comigo porque eu sabia que as coisas não podiam durar sempre. Não foste feita para viver em duas asso- alhadas com um escritor que não escreve, para tomar banho de água gelada porque a companhia do gás não fia, para aturar as má-criações do senhorio porque me atrasei na renda. Não te preocupes comigo: compreendo que te vás embora, não armo escândalos, não te peço que fiques, Claro que me custa um bocadinho, ao princípio vou sentir a tua falta, nos primeiros tempos, em chegando as sete horas, ao ouvir os passos no pata- mar hei-de correr até à porta - É a Teresa e afinal não é a Teresa, é o vizinho do lado esquerdo com um saco do supermercado em cada mão, o vizinho a escapar ao meu abraço julgando que eu enlouqueci e eu a recuar aflitíssimo - Desculpe senhor Vasconcelos tomei-o por outra pessoa o vizinho a aconselhar-me com maus modos que deixe de beber e a aferrolhar-se em casa com medo que eu apareça para o beijar tratando-o por amor. Mas não te preocupes comigo: daqui a seis meses estou fino, daqui a seis meses já comecei o romance e consegui um empréstimo do editor, daqui a seis meses garanto-te, tenho a certeza que me esqueço de ti. No início estas coisas parecem sempre horríveis e depois à medida que a gente se habitua vamos tendo menos vontade de chorar, vamos recomeçando a interessar-nos por atentados à bomba e divórcios de princesas que são os dois tipos de catástrofes que mais nos apaixonam no jornal, deixamos de aborrecer os ami- gos com telefonemas a desoras e um belo dia (é a vida) damos por nós a assobiar ao espelho durante a barba da manhã, se alguém nos pergunta no café
António Lobo Antunes
Livro de Crónicas
Uma carta de Campo de Ourique
Pág. 229
Publicações D.Quixote 2ª edição 1998
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