sábado, maio 19, 2007

António Lobo Antunes

As coisas da vida

Não te preocupes comigo porque eu sabia que as coisas não podiam durar sempre. Não foste feita para viver em duas asso- alhadas com um escritor que não escreve, para tomar banho de água gelada porque a companhia do gás não fia, para aturar as má-criações do senhorio porque me atrasei na renda. Não te preocupes comigo: compreendo que te vás embora, não armo escândalos, não te peço que fiques, Claro que me custa um bocadinho, ao princípio vou sentir a tua falta, nos primeiros tempos, em chegando as sete horas, ao ouvir os passos no pata- mar hei-de correr até à porta - É a Teresa e afinal não é a Teresa, é o vizinho do lado esquerdo com um saco do supermercado em cada mão, o vizinho a escapar ao meu abraço julgando que eu enlouqueci e eu a recuar aflitíssimo - Desculpe senhor Vasconcelos tomei-o por outra pessoa o vizinho a aconselhar-me com maus modos que deixe de beber e a aferrolhar-se em casa com medo que eu apareça para o beijar tratando-o por amor. Mas não te preocupes comigo: daqui a seis meses estou fino, daqui a seis meses já comecei o romance e consegui um empréstimo do editor, daqui a seis meses garanto-te, tenho a certeza que me esqueço de ti. No início estas coisas parecem sempre horríveis e depois à medida que a gente se habitua vamos tendo menos vontade de chorar, vamos recomeçando a interessar-nos por atentados à bomba e divórcios de princesas que são os dois tipos de catástrofes que mais nos apaixonam no jornal, deixamos de aborrecer os ami- gos com telefonemas a desoras e um belo dia (é a vida) damos por nós a assobiar ao espelho durante a barba da manhã, se alguém nos pergunta no café

António Lobo Antunes
Livro de Crónicas
Uma carta de Campo de Ourique
Pág. 229
Publicações D.Quixote 2ª edição 1998

Sem comentários: