quarta-feira, janeiro 02, 2008

Herberto Helder

PARA A MARIA MADALENA

Felizmente sabes que a pureza foi um barco de papel

na antiga lagoa da infância.

És como és e não concedes margem ao sonho.

Não há gaivotas no teu andar

realmente como quem dança mas impudico

nem podes que eu pense a escarpa sobre o mar

na tarde em que seria possível ver

todas as coisas brancas que quisesse.


Há nódoas por toda a parte mas não escondes.

Por isso valem mais teus beijos que não simulam

ser mais do que tu.

Todas as imagens que para ti encontro

são-te iguais - e isso é na verdade

o melhor do meu desejo.


Felizmente não há pétalas nem canções

nem tardes crepusculares

nem encantamentos de pianos

nem voos de aves feridas

nem barcos com uma luz dentro da noite.


E quando há ternuras à tona dos teus silêncios

não as volto como se para mim valesse só

aquilo que o passado se cansou de insónia.

Oh não! aceito essas ternuras como quem viu

a inutilidade de todo o pensamento.


Sabes sorrir. Sabes despentear-te sem me obrigar

a ver ondas ou árvores ao vento

ou cordas despedaçadas de violinos.

Sabes desnudar-te sem que eu pense nuvens

ou ondinas ou deslumbramentos de aurora.


Sabes não saber acordar em mim

um pretexto de mentira.

Felizmente nunca acendeste astros

em minhas pálpebras descidas.


- Mas quando das ruas vejo janelas iluminadas

tão longe, tão longe da ansiedade

és tu que és a jangada do naufrágio.

Herberto Helder
(Funchal, 1930)
(in «Arquipélago», Editorial Eco do Funchal, 1952)

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