PARA A MARIA MADALENA
Felizmente sabes que a pureza foi um barco de papel
na antiga lagoa da infância.
És como és e não concedes margem ao sonho.
Não há gaivotas no teu andar
realmente como quem dança mas impudico
nem podes que eu pense a escarpa sobre o mar
na tarde em que seria possível ver
todas as coisas brancas que quisesse.
Há nódoas por toda a parte mas não escondes.
Por isso valem mais teus beijos que não simulam
ser mais do que tu.
Todas as imagens que para ti encontro
são-te iguais - e isso é na verdade
o melhor do meu desejo.
Felizmente não há pétalas nem canções
nem tardes crepusculares
nem encantamentos de pianos
nem voos de aves feridas
nem barcos com uma luz dentro da noite.
E quando há ternuras à tona dos teus silêncios
não as volto como se para mim valesse só
aquilo que o passado se cansou de insónia.
Oh não! aceito essas ternuras como quem viu
a inutilidade de todo o pensamento.
Sabes sorrir. Sabes despentear-te sem me obrigar
a ver ondas ou árvores ao vento
ou cordas despedaçadas de violinos.
Sabes desnudar-te sem que eu pense nuvens
ou ondinas ou deslumbramentos de aurora.
Sabes não saber acordar em mim
um pretexto de mentira.
Felizmente nunca acendeste astros
em minhas pálpebras descidas.
- Mas quando das ruas vejo janelas iluminadas
tão longe, tão longe da ansiedade
és tu que és a jangada do naufrágio.
Herberto Helder
(Funchal, 1930)
(in «Arquipélago», Editorial Eco do Funchal, 1952)
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