quinta-feira, março 22, 2007

Os Poetas

Antínoo (trechos)


Era em Adriano fria a chuva fora

Jaz morto o jovem
No raso leito, e sobre o seu desnudo todo,
Aos olhos de Adriano, cuja cor é medo,
A umbrosa luz do eclipse-morte era difusa

Jaz morto o jovem, e o dia semelhava noite lá fora
A chuva cai como um exausto alarme
Da Natureza em acto de matá-lo.
Memória do que el´ foi não dava já deleite,
Deleite no que el´ foi era morto e indistinto.

Oh mãos que já apertaram as de Adriano quentes,
Cuja frieza agora as sente frias!
Oh cabelo antes preso p´lo penteado justo!
Oh olhos algo inquietantemente ousados!
Oh simples macho corpo feminino
qual o aparentar-se um Deus à humanidade!
Oh lábios cujo abrir vermelho titilava
os sítios da luxúria com tanta arte viva!
Oh dedos que hábeis eram no de não ser dito!
Oh língua que na língua o sangue audaz tornava!
Oh regência total do entronizado cio
Na suspensão dispersa da consciência em fúria!
Estas coisas que não mais serão.
A chuva é silenciosa, e o Imperador descai ao pé do leito.
A sua dor é fúria,
Porque levam os deuses a vida que dão
e a beleza destroem que fizeram viva.
Chora e sabe que as épocas futuras o fitam do âmago do vir a ser;
O seu amor está num palco universal;
Mil olhos não nascidos choram-lhe a miséria.

Antínoo é morto, é morto para sempre,
É morto para sempre, e os amor´s todos gemem.
A própria Vénus, que de Adónis foi amante,
Ao vê-lo então revivo, ora morto de novo,
Empresta renovada a sua antiga mágoa
Para que seja unida à dor de Adriano.

Agora Apolo é triste porque o roubador
Do corpo branco seu ´stá para sempre frio.
Não beijos cuidadosos na mamílea ponta
Sobre o pulsar silente lhe restauram
Sua vida que abra os olhos e a presença sinta
Dela por veias ter o reduto do amor.
Nenhum de seu calor, calor alheio exige.
Agora as suas mãos não mais sob a cabeça
Atadas, dando tudo menos mãos,
Ao projectado corpo mãos imploram.

A chuva cai, e el´ jaz
como alguém que de seu amor ´squeceu todos os gestos
E jaz desperto à espera que regressem quentes.
Suas artes e brincos ora são c´o a Morte.
Humano gelo é este sem calor que o mova;
Estas cinzas de um lume não chama há que acenda.

Que ora será, Adriano, a tua vida fria ?
Quão vale ser senhor dos homens e das coisas ?
Sobre o teu império a ausência dele desce como a noite.
Nem há manhã na esp´rança de um deleite novo;
Ora de amor e beijos viúvas são as tuas noites;
Ora os dias privados de a noite esperar;
Ora os teus lábios não têm fito em gozos,
Dados ao nome só que a Morte casa
À solidão e à mágoa e ao temor

Tuas mãos tacteiam vagas alegria em fuga
Ouvir que a chuva cessa ergue-te a cabeça,
E o teu relance pousa no amorável jovem.
Desnudo el´ jaz no memorado leito;
Por sua própria mão el´ descoberto jaz.
Aí saciar cumpria-lhe teu senso frouxo,
Insaciá-lo, mais saciando-o, irritá-lo
Com nova insaciedade até sangrar teu senso.

Suas boca e mãos os jogos de repôr sabiam
Desejos que seguir te doía a exausta espinha.
Às vezes parecia-te vazio tudo
A cada novo arranco de chupado cio.
Então novos caprichos convocava ainda
À de teus nervos, carne, e tombavas, tremias
Nos teus coxins, o imo sentido aquietado.

...

E de pensar, essa luxúria que é
memória de luxúria revive e toma-Lhe os sentidos p´la mão,
desperta a carne ao toque,
E tudo é outra vez o que era dantes.
No leito o corpo morto se soergue e vive
E vem com el´ deitar-se, junto, muito junto,
E uma invisível mão e rastejante e sábia
A cada uma do corpo entrada da luxúria
Vai murmurar carícias que se esvaem, mas
Se demoram que sangre a derradeira fibra.
Oh doces, cruéis da Párthia fugitivas!

Assim um pouco se ergue, olhando o amante
Que ora não pode amar senão o que se ignora.
Vagamente, mal vendo o que comtempla tanto,
Perpassa os frios lábios pelo corpo todo.
E tão de gelo insensos são os seus lábios que, ai!
Mal à morte lhe sabe o frio do cadáver,
E é qual mortos ou vivos que ambos foram
E amar inda é presença e é motor.
Na dos do outro incúria fria os lábios param
O hálito ausente aí recorda-lhe a seus lábios
Que de pra lá dos deuses uma névoa veio
Entre ele e o jovem. Mas as pontas de seus dedos,
Ainda ociosas perscrutando o corpo, aguardam
Uma reacção da carne ao despertante jeito.
Mas não é compreendida essa de amor pergunta:
É morto o deus que era seu culto o ser beijado!

Levanta a mão pra onde o céu estaria
E pede aos deuses mudos que sua dor lhe saibam.
Que a súplica lhe atendam vossas faces calmas,
Oh poder´s outorgantes! Dá em troca o reino
Nos desertos quietos viverá sequioso,
Nos longes trilhos bárbaros mendigo ou escravo,
Mas a seus braços quente o jovem devolvei!
Renunciai ao espaço que entendeis seu túmulo!

Tomai da terra a graça feminina toda
E num lixo de morte o que restar vertei!
Mas, pelo doce Ganímedes, distinguido
Por Jove acima de Hebe para encher-lhe
A taça nos festins e pra instilar
O amor de amigos que enche o vácuo do outro,
O nó de amplexos femininos resolvei
Em poeira, oh pai dos deuses, mas poupai o jovem
E o alvo corpo e o seu cabelo de oiro!
Ganímedes melhor talvez tu pressentiste
Seria acaso, e por inveja essa beleza
Dos braços de Adriano para os teus roubaste.

Era um gato brincando co´a luxúria,
A de Adriano e a sua própria, às vezes um
E às vezes dois, ora se unindo, ora afastado;
A luxúria largando, ora o àpice adiando;
Ora fitando-a não de frente mas de viés
Ladeando o sexo que semi não espera;
Ora suave empolgado, ora agarrando em fúria,
Ora brinca brincando, agora a sério, ora
Ao lado da luxúria olhando-a, agora espiando
O modo de tomá-la no aparar da sua.

Assim as horas se iam das mãos dadas de ambos,
E das confusas pernas momentos resvalam.
Seus braços folhar mortas, ou cintas de ferro;
Agora os lábios taças, agora o que liba;
Olhos fechados por de mais, de mais fitantes;
Ora o vai-vém frenético operando;
Ora suas artes pluma, ora um chicote.

Viveram esse amor como religião
Oferta a deuses que, em pessoa, aos homens descem.
Às vezes adornado, ou feito enfiar
Meias vestes, então numa nudez de estátua
Imitava algum deus que de homem ser parece
Pela do mármore virtude exacta.
Agora Vénus era, alva dos mar´s saindo:
E agora Apolo ele era, jovem e dourado;
E agora Júpiter julgando em troça
A presença a seus pés do escravizado amante;
Agora agido de rito, por alguém seguido,
Em mistérios que são sempre repostos.

Agora é algo que qualquer ser pode.
Oh, crua negação da coisa que é!
Oh de aurea coma sedução fria de lua!
Fria de mais! De mais! E amor como ela frio!
O amor pelas memórias do amor seu vagueia
Como num labirinto, alegre, louco, triste,
E ora clama o seu nome e lhe pede que venha,
E ora sorrindo está à sua imagem-vinda
Que está no coração quais rostos na penumbra,
Meras luzentes sombras das formas que tinham...

...

Erguer-te-ei uma estátua que será
Prova, para o contínuo das futuras eras,
Do meu amor, tua beleza e do sentido
Que à divindade p´la beleza é dado.
Que a Morte com subtis mãos desnudantes tire
A nosso amor as vestes do império e da vida,
Ainda a dele estátua que só tu inspiras,
As futuras iades, quer queiram, quer não,
Hão-de, qual dote por um deus imposto,
Inevitavelmente herdar.

...

Como o amante que agurada, assim ele ia de
Canto a canto do em dúvida confuso de espírito.
Ora sua esperança um grande intento era
De que o anseio fosse, ora ele cego se
Sentia algures no visto indefinido anseio.
Se o amor conhece a morte, que sentir se ignora.
Se a morte frustra amor, que saber não sabemos.
A dúvida esperava, ou duvidava a esp´rança;
Ora o de sonhar senso ao que sonhava anseio
Escarnecia e congelava em vácuo
De novo os deuses sopram a mortiça brasa.

A tua morte deu-me alta luxúria mais
Um carnal cio em raiva por eternidade.
No meu imperial fado a confiança ponho
Que os altos deuses, por quem César fui,
Não riscarão de vida mais real
Meu voto de que vivas para sempre e sejas
Na deles melhor terra uma carnal presença,
Amável mais, mais amorável não, pois lá
Não coisas impossíveis nossos votos jaçam
Nem corações nos ferem com a mudança e tempo.

Amor, amor, Oh, meu amor! Já és um Deus.
Minha esta ideia, que por voto eu tomo,
Voto não é, mas vista que me é permitida
Pelos grãos deuses, que amor amam e dar podem
A corações mortais, sob a forma de anseios,
De anseios que alvos têm indescobertos,
Uma visão reais coisas para além
De nossa vida em vida aprisionada, nosso sentido no sentido preso
Ai, o que anseio que tu sejas, és tu já.
Pois já o Olimpo o território tu pisaste e és perfeito, sendo tu embora
Pois excesso de ti não precisas vestir
Perfeito para ser, a perfeição que és.

...

Amor, meu amor-deus! Que eu beije, em frios teus
Lábios, teus quentes lábios imortais agora,
Saudando-te beato nos portais da Morte.
Pois que pra deuses são portais da Vida.

...

E aqui, memória ou estátua, ficaremos
O mesmo um só, qual de mãos dadas éramos
Nem as mãos se sentiam por sentir sentir.
Ver-me-ão os homens quando o que és entendam.
Podiam ir-se os deuses, no vasto rodar
Das curvas eras. Só por ti apenas,
Que, um deles, no ido bando houveras ido,
Viriam, qual dormissem, para despertar

...

E se a nossa memória a pó se reduzisse,
Uma divina raça do fim das idades
Nossa unidade dual ressuscitava.

Ainda chovia. Em leves passos veio a noite
Fechando as pálpebras cansadas dos sentidos.
A mesma consciência de eu e de alma
Tornou-se, qual paisagem vaga em chuva, vaga.
O Imperador imóvel jaz, e tanto que
Semiesqueceu onde ora jaz, ou de onde vem
A dor que era inda sal nos lábios seus.
Algo distante fora tudo: um manuscrito
Que se enrolou. E o que sentira a fímbria era
Que halo é em torno à lua quando a noite chora.

A cabeça pousava sobre os braços, estes
No baixo leito, alheios a senti-lo, estavam.
Os seus olhos fechados cria abertos, vendo
O nu chão negro, frio, triste, sem sentido.
Doer-lhe o respirar tudo era que sabia.
Do tombante negrume o vento ergueu-se
E tombou; lá no pátio ecoou uma voz;
E o Imperador dormia...
Os deuses vieram....
E algo levaram, qual não senso sabe,
Em braços de poder e de repouso invisos.

Fernando Pessoa
(poesia originalmente escrita em inglês, tradução de Jorge de Sena)



V


Há cidades cor de pérola onde as mulheres
existem velozmente. Onde
às vezes param, e são morosas
por dentro. Há cidades absolutas,
trabalhadas interiormente pelo pensamento
das mulheres.
Lugares límpidos e depois nocturnos,
vistos ao alto como um fogo antigo,
ou como um fogo juvenil.
Vistos fixamente abaixados nas águas
celestes.
Há lugares de um esplendor virgem,
com mulheres puras cujas mãos
estremecem. Mulheres que imaginam
num supremo silêncio, elevando-se
sobre as pancadas da minha arte interior.

Há cidades esquecidas pelas semanas fora.
Emoções onde vivo sem orelhas
nem dedos. Onde consumo
uma amizade bárbara. Um amor
levitante. Zona
que se refere aos meus dons desconhecidos.
Há fervorosas e leves cidades sob os arcos
pensadores. Para que algumas mulheres
sejam cândidas. Para que alguém
bata em mim no alto da noite e me diga
o terror de semanas desaparecidas.
Eu durmo no ar dessas cidades femininas
cujos espinhos e sangues me inspiram
o fundo da vida.
Nelas queimo o mês que me pertence.
o minha loucura, escada
sobre escada.

MuIheres que eu amo com um des-
espero .fulminante, a quem beijo os pés
supostos entre pensamento e movimento.
Cujo nome belo e sufocante digo com terror,
com alegria. Em que toco levemente
Imente a boca brutal.
Há mulheres que colocam cidades doces
e formidáveis no espaço, dentro
de ténues pérolas.
Que racham a luz de alto a baixo
e criam uma insondável ilusão.

Dentro de minha idade, desde
a treva, de crime em crime - espero
a felicidade de loucas delicadas
mulheres.
Uma cidade voltada para dentro
do génio, aberta como uma boca
em cima do som.
Com estrelas secas.
Parada.

Subo as mulheres aos degraus.
Seus pedregulhos perante Deus.
É a vida futura tocando o sangue
de um amargo delírio.
Olho de cima a beleza genial
de sua cabeça
ardente: - E as altas cidades desenvolvem-se
no meu pensamento quente.

Herberto Helder
Lugar
Poesia Toda
Assírio & Alvim
1979


Nós não temos o tempo de dizer
Todo o dizer é um não ter tempo de dizer
Toda a palavra é uma tensão de sílabas
entre o que vai ser dito e o que não chega a ser dito

Assim o poema é a perda de uma possibilidade
mas só nessa perda se respira o que não se pode dizer
O vento que sopra e dissemina as sílabas
é desse vão que nasce e ele ilumina e cai
no limiar do vácuo que à sua frente se move

O sentido é o movimento de um ser quase
uma tensão incessante do tempo contra o tempo
na nunca efectiva possibilidade do possível.

António Ramos Rosa
À Mesa do Vento
Pedra Formosa



TU ESTÁS AQUI

Estás aqui comigo à sombra do sol
escrevo e oiço certos ruídos domésticos
e a luz chega-me humildemente pela janela
e dói-me um braço e sei que sou o pior aspecto do que sou
Estás aqui comigo e sou sumamente quotidiano
e tudo o que faço ou sinto como que me veste de um pijama
que uso para ser também isto este bicho
de hábitos manias segredos defeitos quase todos desfeitos
quando depois lá fora na vida profissional ou social só sou um nome e sabem
o que sei o
que faço ou então sou eu que julgo que o sabem
e sou amável selecciono cuidadosamente os gestos e escolho as palavras
e sei que afinal posso ser isso talvez porque aqui sentado dentro de casa sou
outra coisa
esta coisa que escreve e tem uma nódoa na camisa e só tem de exterior
a manifestação desta dor neste braço que afecta tudo o que faço
bem entendido o que faço com este braço
Estás aqui comigo e à volta são as paredes
e posso passar de sala para sala a pensar noutra coisa
e dizer aqui é a sala de estar aqui é o quarto aqui é a casa de banho
e no fundo escolher cada uma das divisões segundo o que tenho a fazer
Estás aqui comigo e sei que só sou este corpo castigado
passado nas pernas de sala em sala. Sou só estas salas estas paredes
esta profunda vergonha de o ser e não ser apenas a outra coisa
essa coisa que sou na estrada onde não estou à sombra do sol
Estás aqui e sinto-me absolutamente indefeso
diante dos dias. Que ninguém conheça este meu nome
este meu verdadeiro nome depois talvez encoberto noutro
nome embora no mesmo nome este nome
de terra de dor de paredes este nome doméstico
Afinal fui isto nada mais do que isto
as outras coisas que fiz fi-Ias para não ser isto ou dissimular isto
a que somente não chamo merda porque ao nascer me deram outro nome
que não merda
e em princípio o nome de cada coisa serve para distinguir uma coisa das
outras coisas
Estás aqui comigo e tenho pena acredita de ser só isto
pena até mesmo de dizer que sou só isto como se fosse também outra coisa
uma coisa para além disto que não isto
Estás aqui comigo deixa-te estar aqui comigo
é das tuas mãos que saem alguns destes ruídos domésticos
mas até nos teus gestos domésticos tu és mais que os teus gestos domésticos
tu és em cada gesto todos os teus gestos
e neste momento eu sei eu sinto ao certo o que significam certas palavras como
a palavra paz
Deixa-te estar aqui perdoa que o tempo te fique na face na forma de rugas
perdoa pagares tão alto preço por estar aqui
perdoa eu revelar que há muito pagas tão alto preço por estar aqui
prossegue nos gestos não pares procura permanecer sempre presente
deixa docemente desvanecerem-se um por um os dias
e eu saber que aqui estás de maneira a poder dizer
sou isto é certo mas sei que tu estás aqui

Ruy Belo
Toda a Terra
Todos os Poemas
Assírio & Alvim
2000



XIII

e é preciso correr é preciso ligar é preciso sorrir
é preciso suor
é preciso ser livre é preciso ser fácil é preciso a roda
o fogo de artifício
é preciso o demónio ainda corpolento
é preciso a rosa sob o cavalinho
é preciso o revólver de um só tiro na boca
é preciso o amor de repente de graça
é preciso a relva de bichos ignotos
e o lago é preciso digam que é preciso
é preciso comprar movimentar comércio
é preciso ter feira nas vértebras todas
é preciso o fato é preciso a vida
da mulher cadáver até de manhã
é preciso um risco na boca do pobre
para averiguar de como é que eles entram
é preciso a máquina a quatro mil vóltios
é preciso a ponte rolante no espaço
é preciso o porco é preciso a valsa
o estrídulo o roxo o palavrão de costas
é preciso uma vista para ver sem perfume
e outra menos vista para olhar em silêncio
é preciso o lôgro a infância depressa
o pêso de um homem é demais aqui
é preciso a faca é preciso o touro
é preciso o miúdo despenhado no túnel
é preciso fôrças para a hemoptise
é preciso a mosca um por cento doméstica
é preciso o braço coberto de espuma
a luz o grito o grande ôlho gelado


E é preciso gente para a debandada
é preciso o raio a cabeça o trovão
a rua a memória a panóplia das árvores
é preciso a chuva para correres ainda
é preciso ainda que caias de borco
na cama no chôro no rôgo na treva
é precisa atreva para ficar um verme
roendo cidades de trapo sem pernas

Mário Cesariny
discurso sobre a reabilitação do real quotidiano
manual de prestidigitação
assírio e alvim
1981



PRAIA

Os pinheiros gemem quando passa o vento
O sol bate no chão e as pedras ardem.

Longe caminham os deuses fantásticos do mar
Brancos de sal e brilhantes como peixes.

Pássaros selvagens de repente,
Atirados contra a luz como pedradas,
Sobem e morrem no céu verticalmente
E o seu corpo é tomado nos espaços.

As ondas marram quebrando contra a luz
A sua fronte ornada de colunas.

E uma antiquíssima nostalgia de ser mastro
Baloiça nos pinheiros.

Sophia de Mello Breyner Andresen
Antologia
Círculo de Poesia
Moraes Editores
1975



A Defesa do Poeta

Senhores jurados sou um poeta
um multipétalo uivo um defeito
e ando com uma camisa de vento
ao contrário do esqueleto.

Sou um vestíbulo do impossível um lápis
de armazenado espanto e por fim
com a paciência dos versos
espero viver dentro de mim.

Sou em código o azul de todos
( curtido couro de cicatrizes)
uma avaria cantante
na maquineta dos felizes.

Senhores banqueiros sois a cidade
o vosso enfarte serei
não há cidade sem o parque
do sono que vos roubei.

Senhores professores que pusestes
a prémio minha rara edição
de raptar-me em crianças que salvo
do incêndio da vossa lição.

Senhores tiranos que do baralho
de em pó volverdes sois os reis
sou um poeta jogo-me aos dados
ganho as paisagens que não vereis.

Senhores heróis até aos dentes
puro exercício de ninguém
minha cobardia é esperar-vos
umas estrofes mais além.

Senhores três quatro cinco e sete
que medo vos pôs por ordem?
Que favor fechou o leque
da vossa diferença enquanto homem?

Senhores juízes que não molhais
a pena na tinta da natureza
não apedrejeis meu pássaro
sem que ele cante minha defesa.

Sou um instantâneo das coisas
apanhadas em delito de perdão
a raiz quadrada da flor
que espalmais em apertos de mão.

Sou uma impudência a mesa posta
de um verso onde o possa escrever.
Ó subalimentados do sonho!
A poesia é para comer.

Natália Correia
A Defesa do Poeta
Direcção de Edição
Helena Roseta com o apoio de David Ferreira
Cd editado pela Valentim de Carvalho



BALADA APÓCRIFA

Olhai os lírios do campo
meninas de saia rodada
íris de teias de aranha
desvendam o mar nas searas

Olhai os lírios de pedra
em copos de limonada
Os soldados em manobras
enterram a sombra caiada

Bebei os lírios de água
(com grandes bicos de aves)
Sofreram sempre derrota
deixaram mãos enforcadas
sem lençóis com clarins
grades de pernas doadas

Olhai os lírios do tempo
meninas virgens por dentro
Os soldados em manobras
têm noite por espingarda
Colhei os lírios do corpo
meninas de saia travada

Luiza Neto Jorge
Quarta Dimensão
poesia
organização e prefácio de
Fernando Cabral Martins
Assírio & Alvim
2ª edição
2001

RECÔNDITAS PALAVRAS

Inquietam-me as dedadas
de deus rente à raiz da carne, ao indeciso
equilíbrio da alma
na balança, à cicatriz
azul do céu sobre o destino.

O mar pneumático, ao sabor
do qual contra os sentidos se nos fazem
e desfazem as ávidas lembranças,
assalta-me os sentidos, tenebrosas

crateras escavadas
no espírito e através
das quais, incandescentes, as imagens
do mundo sobre ele próprio se derramam

como uma lava espessa, esses sentidos
que, como aéreos
estigmas, nos imprimem
na carne a cicatriz do céu, a indecisa
maneira de as imagens

do mundo se guindarem
mais alto do que a alma ou o alento
de quem dentro de nós
aviva a sua chama. O que nos sai
do coração vem a ferver.

A carne, ao rés
da qual o céu se encurva, báscula
que deus deixou nos arredores
dum qualquer lugarejo

a encher-se de ferrugem, cicatriz
pesada, combustível, com raiz
nas mais profundas trevas, a carne âncora
submersa no destino, ergue-se a pique

de novo onde as lembranças
se fazem e desfazem
com todo o azul do céu
lá dentro a procurar rompê-Ia.

Sentados no convés, como se fosse
já noite e nos soubesse
o pão ao ranço da memória, contemplamos
os rudes marinheiros.

Depois que pela encosta procurámos
em vão uma escada de que o último
degrau fosse já dentro da memória,
suspenso na memória,

desfaz-se-nos dos ossos
a carne, com o seu quê de lírico e festivo,
em áreas portuárias onde o mar
nos sai do coração para galgar o molhe,

e, agora que começam
os anos a pesar
mais para trás que para a frente, acodem-nos
recônditas palavras aos ouvidos:

«Fecharam-se-te os olhos e eu fiquei de fora»,

«Nas tuas mãos começa o precipício».

Luís Miguel Nava
Vulcão I
Poesia Completa
1979-1994
Prefácio de
Fernando Pinto do Amaral
Organização e Posfácio de
Gastão Cruz
Publicações D. Quixote
2002


A mulher muitas vezes avança

A mulher muitas vezes caminha pela borda
Do vestido. Pudesse tocar
A fímbria ou a franja de toda a casa
Ela a sararia. Ela sairia
Com o cabelo solto

Muitas vezes a mulher prende o cabelo com as mãos
Cose muitas vezes com a lâmpada por dentro - a agulha
A cerzir o brilho. A mulher remenda
A lâmpada apagada. Por dentro
O coração ponteia alguma luz

A vida roda, o vestido rompe-se

A mulher é um barco quando se afunda
A hélice gira - gera como planta
Em redor da luz. A mulher
Anda em redor como corola
Sem pólen

A azenha anda à volta na memória e a água corre-lhe
Dos olhos. Põe o coração para a frente como os fuzilados
Enxuga os olhos como se espalhasse. A mulher
Varre infinitamente mais do que o que vemos ou somos capazes de
[imaginar
E há imagens na terra
Que nunca lhe lembram o céu

Daniel Faria
Do que sangro
Dos Líquidos
edições quasi
2ª edição
2003

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