sábado, julho 12, 2008

Letra E - Edmundo de Bettencourt

ADEUS

- Quando aqui estou, estou no Céu!
Ela dizia.
E eu ficava melancólico a pensar
como seria
aquele céu, tão simples,
aonde não chegava
o meu sonho mais alto de alegria!

Como seria?

Nesse tempo de tão calmo
sem um começo nem um fim,
seus belos olhos tristes,
quando olhavam para mim
fugiam logo.

Que envergonhados e descidos,
eram bem um adeus
lá do remoto paraíso
cuja plena felicidade
miravam, adormecidos...

Como eu seguia ausente
e cada vez mais distante
da vida,
até chegar subtilmente
ao instante
em que já era um véu de morte
a presença daquela despedida!

O ar então,
pelo terraço,
fechava-se doirado, como num salão,
e ela adormecia. . .

Dum recanto do Azul
um raio de luz descia
até à luz do seu sorriso
ainda de donzela.
Atraídas,
chegavam borboletas,
coloridas,
que tombavam tontas e inocentes
por sobre ela.

E numa janela
que ali se desenhava,
que breve se fechava
sem rumor,
vinha por fim roçar a asa
um corvo branco anunciador!

Ela dormia a sono solto,
sob a minha vigília,
que para Ela, a enamorada,
seria
a vigília temerosa do seu Deus.
Dormia,
os olhos bem cerrados
no mais cerrado adeus.

E a sua boca de morta-viva,
saudosa das palavras sonhadoras,
sorria sempre, sorria.

- Quando aqui estou, estou no Céu!

Era agora o sorriso que dizia...

Edmundo de Bettencourt
Poemas de Edmundo de Bettencourt
Assírio & Alvim



POEMA DE AMOR

A noite é cheia de vales e baías.
E do meu peito aberto um rio largo de sangue...
Águas densas, de correntes lentas,
serpentes mortas a arrastarem-se.
Águas?
Águas negras, pastosas, alcatrão rolante.
Mas águas puras, verde-claras, atraindo
a margem donde os crocodilos fogem mastigando.
Águas em transparências lucilantes, para cima,
e as estrelas do mar, um polvo e um mefistófeles
ficam no ar sobre ilhéus e lodosos calhaus
que se descobrem.
Plantas brancas e extáticas.. .
Lágrimas... nuvens... e a cabeça, o perfil,
os olhos, todo o corpo da mulher amada, a prostituta
antes de virgem, que é bela e feia, velha e nova,
e não conhece os filhos!

O fogo envolve essa mulher amada
e é um guindaste erguendo-a e atirando-a,
enquanto dispersas pelo chão brilham mandíbulas
naturalmente à espera...

Edmundo de Bettencourt
Poemas de Edmundo de Bettencourt
Assírio & Alvim


APARIÇÃO

A mulher que por mim passou na rua, há pouco,
foi uma coisa diáfana, gentil,
cedo, a pairar
na sombra dum jardim
com flores, em baixo, ajoelhadas,
ao senti-la na altura,
e mandando-lhe o aroma em lágrimas, desfeito,
para mantê-la em uma nuvem branca...

Mulher, coisa diáfana, vaga e bela, sem desenho,
logo fluido animando o colo duma nuvem,
nuvem, num ápice, trucidada pelo vento!

Edmundo de Bettencourt
Poemas de Edmundo de Bettencourt
Assírio & Alvim


ONDULAÇÃO

O luar ondula
fluindo e refluindo
para não acabar a maré cheia
nesta praia onde
imponderável eu me encontre indo
- o pensamento em rumos ignorados
e ao sabor de presságios...

Em breve, à minha volta no areal,
esperanças, de branco, vaporosas,
chorando alto naufrágios
à vista da magia de seus mundos,
com suas lágrimas,
quais enxadas na terra, poderosas,
cavarão sulcos fundos.

E elas ali se hão-de enterrar
quando o luar fugir. . .
Mas com elas enterrarei os meus insultos
à minha nobre angústia de vibrar,
à minha vã desgraça de sentir!

Edmundo de Bettencourt
Poemas de Edmundo de Bettencourt
Assírio & Alvim


Balada dos lobos e a virgem

O vento parado nas vidraças
e o luar da neve que se queixa à claridade azul do que-
bra-Iuz,
na sala sonâmbula de distância,
vêm devagar abrir as portas aos lobos esfomeados
de goelas abertas... uivando, e engolindo o frio...

Tu não os vês entrar
(arrancaram-te os olhos).
Nem vês o medo, um mefistófeles aéreo,
louco, a fazer-te rir.
E ris de tal maneira
que de repente, és uma flor de fumo,
suspensa,
à claridade azul do quebra-luz,
na sala morta de distância agora,

Eu sou de sombra, os lobos não te vêem,
por isso ficam mudos e extáticos, em volta,
à espera de sumirem-se no chão...

Edmundo de Bettencourt (1899-1973)
Poemas Surdos


OLHOS

Aqueles olhos,
à luz dos céus,
eu os possuo em ânsia que se afina.
E quando não eram meus,
não procurei ser ave de rapina,
ter bico adunco,
garras.
E nem fui D. João em serenatas, ao luar,
roubando a alma às guitarras,
para melhor roubar.

Belos, por si,
Vieram ter comigo
às minhas solidões
- feitos meu livre bem e meu castigo,
na atracção abismal o horror de vertigens.
Ah, fazer com que eu,
artista quiromante em transparências virgens,
realizasse a redoma
donde os revelo ao mundo
quando a avareza me não doma.

(Sozinho em frente do oiro
o avarento só vê oiro...
- brilho que enleia,
acaricia,
cantar jocundo,
o oiro fora do mundo
é apenas oiro...)

Ali o mundo os vê já quando ali são verbo
sem nuvem de superstição em que se esconda:
o verbo criador,
reanimador
da cara da Gioconda.

Olhos,
que eu sonhe mais!
e menos vos descubra
enigmáticos,
alma duma expressão de linhas claras e densas,
marcando o mau entendimento das diferenças,
o limite fatal da compreensão!

Edmundo de Bettencourt
Poemas de Edmundo de Bettencourt
Assírio & Alvim



Noite vazia

Crescimento do silêncio a devorar as nuvens.
Voo incansável e monótono das aves brancas do cérebro.
Florida e ondulada suspensão da mágoa.
As ferocidades são ternuras desmaiando na estepe adi-
vinhada.
O amor abre goelas bocejantes nos côncavos da ausên-
cia do espaço.
E a morte espreitando a lentidão
irradia baçamente a sua despedida.

Noite vazia.

As aves brancas do cérebro
inutilmente abatem as suas asas!

Edmundo de Bettencourt (1899-1973)
Poemas Surdos

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