segunda-feira, abril 02, 2007

Eugénio Montejo

Nenhum amor cabe num só corpo

Nenhum amor cabe num só corpo
ainda que as veias abarquem o tamanho do mundo;
sempre um desejo fica de fora,
outro soluça e contudo falta.

Sabe-o o mar no seu lamento solitário
e a terra que busca os restos da sua estátua;
não basta um só corpo para albergar as suas noites,
algumas estrelas ficam fora do sangue.

Nenhum amor cabe num só corpo,
ainda que a alma se aparte e ceda espaço
e o tempo nos entregue as horas que retém.
Duas mãos não nos bastam para alcançar a sombra,
dois olhos vêem apenas poucas nuvens
mas não sabem onde vão nem donde vêm,
que país musical as une e as dispersa.
Nenhum amor, nem o mais fugidio, o mais fugaz,
nasce num corpo que está só,
ninguém cabe no tamanho da sua morte.

Eugénio Montejo
Voz Consonante
Traduções de Poesia
António Ramos Rosa
Organização de Ana Paula Coutinho Mendes
quasi


Poeta exposto

Deixaram-me só junto à porta do mundo,
poeta exposto, cantando-me a mim mesmo,
num dia de outono há muito tempo já.
De um golpe seco arrancaram-me ao nada,
truncado de raiz,
com dois olhos abertos e um grito,
o fundo grito de quem sonhou ser pássaro
e não trouxe as asas para o voo.
Fui-me rodeando do mistério terrestre,
onde ainda não sei se vivo ou sonho,
e no fim a morte virá num torvelinho
que me arroje amanhã ante outra porta
Não adivinho a minha origem, o meu futuro,
ainda que pelo sangue seja fiel às palavras
e possa jurar que quanto escrevo
provém como eu próprio de algo muito longe...
Poeta exposto, errando na intempérie,
o meu único pai é o desejo
e a minha mãe a angústia de ser órfão na terra.

Eugénio Montejo
Voz Consonante
Traduções de Poesia
António Ramos Rosa
Organização de Ana Paula Coutinho Mendes
quasi

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