quarta-feira, fevereiro 20, 2008

Letra D - Daniel Faria

Ele é o cavador e o trabalho e a vinha
É ele que tem os aguaceiros de Outono -

Ele tem a giesta onde faz nascer a neblina
Ele abriga-nos, é ele que tem as nuvens

Ele tem o desenho das copas que dão fruto
Ele nem sequer se assemelha à luz nunca tocada
E estende sobre nós a cura
Os ramos da oliveira como o braço de quem afaga
Ele faz-nos provar o paladar inesgotável da escrita
Ele parte a broa e dá-nos ambas as mãos

É ele que conserva o mecanismo dos pássaros
É ele que move os moleiros quando param os moinhos
É ele que puxa a corda dos bois e a linha
Do céu que assinala os limites dos montes

Ele é que eleva o corpo dos santos, é ele
Que amestra o pólen para o mel, ele decide
A medida da flor na farinha
Ele deixa-nos tocar a orla dos seus mantos

Daniel Faria
Do inesgotável
Dos Líquidos
edições quasi
2ª edição
2003




Procuro o trânsito de um homem que repousa em ti
Como se desvia um homem do seu coração para seguir viagem
Como deixa ficar tudo e acrescenta à sua herança

Procuro conhecer os símbolos, os marcos miliares
Diurnos, como se lêem
Sinais de fumo e o ângulo dos pombos - e todas as coisas
Que nos chegam da distância

Procuro saber como se fecham os pés dentro dos teus
Percursos
Como se põe descalço um homem que necessita
De atravessar-se
E desejo outra vez desdobrada a tua palavra cheia
De estrelas

Para que as recorte, para que as ponha no silêncio
Vivas
Na minha boca e nas minhas mãos
Em chamas

Daniel Faria
Do inesgotável
Dos Líquidos
edições quasi
2ª edição
2003




Sem o agasalho das asas
Agrilhoado no lado de fora do fogo, ao frio,
Desatado pela diária lâmina
Na condição da luz encarcerada no astro
Para ser nas viagens sinal. Um aviso, um dedo no céu

Acordado pela sempre quotidiana órbita do lume
Acocorado sempre na cinza para foco
Sem qualquer intermitência
Gume
Invejando o relâmpago
Rápido

De longe descobre a semelhança
Do amor

Com o pássaro

Que não faz ninho
Que não segue a presa
Que não deixa o corpo por um pouco
Desejar

Qualquer coisa diferente de morrer

Daniel Faria
Das inúmeras águas
Dos Líquidos
edições quasi
2ª edição
2003



Homens que trabalham sob a lâmpada
Da morte
Que escavam nessa luz para ver quem ilumina
A fonte dos seus dias
Homens muito dobrados pelo pensamento
Que vêm devagar como quem corre
As persianas
Par ver no escuro a primeira nascente

Homens que escavam dia após dia o pensamento
Que trabalham na sombra da copa cerebral
Que podam a pedra da loucura quando esmagam as pupilas
Homens todos brancos que abrem a cabeça
À procura dessa pedra definida

Homens de cabeça aberta exposta ao pensamento
Livre. Que vêm devagar abrir
Um lugar onde amanheça.
Homens que se sentam para ver uma manhã
Que escavam um lugar
Para a saída.

Daniel Faria
de Homens Que São Como Lugares Mal Situados




EXPLICAÇÃO DA CURA

O precipício não tem futuro ou desalento
Mas um carreiro que atravessa as giestas e o trevo
Um carreiro que chega ao seu destino
Como a lenha podada ao fogo
A madrugada aos olhos do mocho.
O desamparo não tem as mãos juntas
Mas o peito dividido
A abelha no coração do pólen
Fazendo circular o zumbido.
O coração tem uma roldana a girar
No eixo do desvio
Os olhos de criança diante do que passa.
E a canção é mão que se afadiga
A sarar do degrau e do perigo.

DANIEL FARIA
o futuro em anos-luz
100 anos 100 poetas 100 poemas
selecção e organização valter hugo mãe
quasi




COELETH (Ecl.l2,1-7)

Lembra-te do teu Criador nos dias da mocidade
 tua única herança para os dias da desgraça.
Cava fundo o coração para a lembrança
Antes que digas não tenho mais prazer
Antes que a noite seja noite e não vejas mais o sol nem as estrelas nem os filhos
Antes que voltem as nuvens depois da chuva como a viuvez
Antes do dia em que as mulheres, uma a uma, pararem de moer,
Quando a escuridão cair sobre os que olham pela janela
Quando se fecha a porta da rua e o ruído não diminui
Quando se acorda com o canto do pássaro e as palavras desaparecem
Quando a altura se assemelha aos sustos que se apanham no caminho
Quando a amendoeira está em flor e o gafanhoto se toma pesado
Quando o tempero perde o sabor

Antes que a tua única herança seja, a lembrança
Antes que o fio de prata se rompa e a roldana rebente no poço
Antes de tudo isto
Põe uma escada e sobe ao cimo do que vês

Daniel Faria
Se Fores Pelo Centro De Ti Mesmo
in homens que são como lugares mal situados
Fundação Manuel Leão
2.ª edição
2002




LAMENTAÇÕES (Lm 1)

Que solitária está a cidade
Enviuvou a mais povoada
Das nações.
Está de luto a que foi mãe
E em trabalhos forçados

Passa a noite a dobar a sua noite
À luz do pequeno brilho da lembrança
Não há a consolá-la nenhum dos seus amantes
Cresce o silêncio nos degraus de entrada
E encontra inimigos quando estende a mão

Foi levada para fora das muralhas
Foi levada para terra estéril. Foi humilhada
E posta ao serviço das escravas.
Dorme ao relento e sem repouso
Tomada de aflição.
Perseguida até ao fim
Das suas forças
Mesmo no sono é cercada

Está mais perdida do que numa encruzilhada
E venda os olhos porque qualquer luz
Ou a mínima palavra (ou a noite)
Lhe ferem os olhos rompidos de saudade

E nem os mendigos nas estradas
Têm um coração tão só


Daniel Faria
Se Fores Pelo Centro De Ti Mesmo
in homens que são como lugares mal situados
Fundação Manuel Leão
2.ª edição
2002

1 comentário:

Anónimo disse...

O Fernanda, sabe ou ja percebeu que nao sou de deixar comentarios nos blogs ou afins, mas acompanho sempre, quase todos os dias dou a minha ronda, e este e daqueles que esta sempre na lista.

Beijinhos grandes

Mario