sábado, janeiro 06, 2007

Letra c - Carlos Alberto Machado

Ofereces-me uma pedra negra mágica que trazes do norte
e as minhas palavras e as minhas mãos detêm-se sem saber
por quanto tempo irão ficar na soleira da noite e do dia
tacteamos os corpos em busca de memórias adormecidas
ocultas por sucessivas camadas de palavras por dizer
deslizamos para o chão sem resposta e o fumo sobe
equilibra-se em nuvem sobre as nossas cabeças e evola-se
em direcção a uma lua vermelha momentaneamente apagada
ao som do bob marley fazes as malas e partes e eu fico
a arrumar as minhas mãos e as palavras atrapalhadas
no fumo desorientado pela ausência de um ponto cardeal
junto cuidadosamente os teus cabelos rubros perdidos
entranço uma bola de fogo e guardo-a na memória
acendo uma dúzia de paus de incenso e imagino uma igreja
de adoradores do silêncio que escorre por entre as preces
a tua pedra negra regressa à minha mão fechada
e ilumina como um sol a minha noite em claro
virás por uma palavra?


Carlos Alberto Machado
Talismã
Assírio & Alvim


Um anjo ofereceu-me um mundo de palavras só para mim
deixei que lentamente penetrassem a carne do meu corpo
e o meu coração já desprendido pulsou sangue de esperança

julguei que abraçava de novo na noite a minha alma gémea
mas afinal amputei as asas a um anjo abandonado por deus
um anjo de cabelo negro com uma ferida aberta no ventre

afiei os lápis no gelo cortante do gin e abri-lhe mais a ferida
deixei-o encurralado no quarto de banho cheio de névoa mortal
para a flor do seu corpo se desvanecer sob uma nuvem de sangue

agora já não há golpes nos pulsos que possam redimir o crime
condeno-me a uma morte dilatada com vinho e fumo e velas
fogueiras acesas a noite inteira à espera de uma brisa de asas

em sonhos mergulho inteiro na ferida aberta do seu ventre
e depois embriago-me indiferente aos copos estilhaçados
e aos cigarros esquecidos a abrirem buracos no corpo

defendo-me desenhando desculpas no sangue coagulado na pia
na merda da sanita e nos ranhos matinais de cinza e de ressacas
mas isso não cicatriza a ferida aberta no ventre do meu anjo caído

o pó invade os móveis e as roupas tingidas de preto desbotam
sem saber onde estará o meu anjo se ganhou novas asas brancas
se continua aberta a ferida no seu ventre se há ainda sangue sequer

tenho as facas preparadas para amputar um a um dez dedos dez
ou para vazar os olhos ou para cortar a língua suja e corrompida
pelas palavras que não disse ou disse gritando-as para um poço

se calhar as asas do meu anjo já não vão crescer brancas ou não
melhor seria eu ter nascido já amputado de pés e mãos e língua
esterilizado de todas as palavras e pensamentos perigosos

a faca mais aguçada não será capaz de me abrir uma ferida no ventre
por isso o nosso sangue e tripas e fezes nunca se hão-de misturar
nenhum milagre cicatrizará a sua ferida aberta e a minha por abrir

não era bem isto que eu queria dizer-lhe agora ou antes ou nunca,
como um castigo a ferida no seu ventre continua aberta e a latejar
o sangue seiva a brotar com a esperança de frutos futuros talvez

para mim já não há nem deuses misericordiosos nem ninguém
cubro o corpo de cinza e pedras da praia e uma vela escarlate
acesa até ao fim do mundo.


Carlos Alberto Machado
Ferida
A Realidade Inclinada
Averno


Não preciso que me digam que é impuro o que escrevo
vê-se pelas cicatrizes nos dedos da mão direita (a calosidade
amarelada de nicotina no dedo anelar é trabalhinho escravo)
também a espinha lixada e a falta de dentes o mostram bem
não tenho biografia não a procurem no canto mal cheiroso
no meio da noite (o catecismo não é igual para todos não é?)
a minha biografia se quiserem começa e acaba no registo civil
em mil novecentos e cinquenta e quatro também tive direito
a nascer numa geração rasca a de pais anónimos e mães solteiras
o que escrevo é impuro como os sangues menstruais e o mijo
a destilarem amoníaco a federem como as fábricas da cuf
na outra margem onde se escrevia em peles curtidas pelo silêncio
ou como o sangue coagulado dos mortos na guerra colonial
pestes é que não têm faltado na minha vida
deambulo pelos sonhos onde me perco extenuado e amanheço
quase sucumbindo ao ar excessivo que me invade os pulmões
desremelo os olhos e a esbracejar inauguro o dia saído da noite
onde se pesca palavras e outros excrementos da alma.


Carlos Alberto Machado
A Realidade Inclinada
Averno
2003



Cada ser que me consome é todos os seres
em que fui ou em que julguei ser onde
semeei paisagens em campos abertos
nos corpos náufragos da dor e do medo
a cada um emprestei um nome desocupado
e neles me cansei no cansaço de fingir
hoje arrebata-me esta ideia da morte
com que elidi tantos corpos por marcar
resta-me apenas uma chave para entrar
no labirinto onde possa andar até ao fim
terra das cem promessas guarda-me
bálsamo para os músculos cansados
um pouco da água rara do deserto
para limpar os olhos em sangue da traição.


Carlos Alberto Machado
A Realidade Inclinada
Averno
2003


Trago no bolso
os meus tesouros:
Cabeça de Boi
Cabeça de Vaca
Contra-Mundo
e Papa.
Licenças e
Abafadores.
Pequenos
universos
de vidro
à deriva.

[Mundo de Aventuras]

Carlos Alberto Machado
poetas sem qualidades
Averno
2002



(5)

Por que é que não gostas desta mãe?
Foi também assim que o Capuchinho
Vermelho
perguntou ao Lobo Mau o que perguntou
mas é evidente que teve melhor sorte
a menina da História.
Os Lobos e as Meninas por cá continuam
a jogar jogos de perguntas
a comerem e a serem comidos.
À primeira pergunta não se responde
parece mal.


Carlos Alberto Machado
Os Tronos
Mundo de Aventuras



Hoje evitarei qualquer exortação aos crocodilos
mesmo que se lhes possa meter um pau no cu
digo isto nem sei bem porquê e descalço-me
e não é que queira olhar para os meus pés nus
provavelmente hoje é um daqueles dias inúteis
em que passarei horas e horas quieto e calado
sem ver nada aliás sem querer olhar para nada
por isso talvez não fosse má ideia ter um crocodilo
e passar todo o santo dia a meter-lhe um pau no cu
mesmo que não faça a mínima ideia onde isso fica
se é que o têm e se têm algum prazer nisso ou não
já vai longa a exortação e crocodilos nem cheirá-los.

Carlos Alberto Machado
Talismã
Assírio & Alvim



Eu vi herberto uma actriz a incendiar palavras num palco quarto de hotel
as palavras dadas e as outras caladas num lugar saturado de vapor de água
e aquelas gravadas na calçada perdidas a tentar perceber como se escreve
um nome gritando um nome para a voz encurralada abandonar a cabeça

eu vi a cerzidura de cada palavra a resistir à dor à tristeza ao cansaço
de outras palavras arrancadas da sua pele na passagem dos dias
palavras que se contaminam e se perdem sem ela saber já de quem são
os rostos de mortos e vivos atropelados num caderno imaginário

eu vi um corpo curvado subitamente brilhar num campo de madressilvas
lá longe onde os amantes caminham sem rumo atrás de sombras amarelas
onde os amantes se perdem em dobras de esquinas e espelhos e olhares
os corpos traídos pela inesperada declinação da luz nos seus ombros

eu vi uns cabelos negros tornearem uma lágrima que escurece o dia
escurece a claridade de um gesto que vem de longe e se imobiliza
talvez uma borboleta negra como as que de dia nos dizem da noite
e nos fazem estancar o sangue que corre nas veias ávido de água e luz

eu vi resistir um corpo branco amarelecido por uma luz que não há
rodar na direcção da toscânia à procura da noite que nunca tem fim
porque há uma noite eterna para os que acreditam na noite sem fim
nos fios invisíveis que tecem palavras e pétalas de rosa e desejos

eu vi umas mãos delicadas a tomarem em cuidados uma menina perdida
a da memória emprestada daquele em quem as palavras são salvação
perdidos eu tu e ela em enredadas palavras demasiado frágeis para a verdade
num tempo em que já não florescem infinitos embrulhados em laços azuis

eu vi o horizonte recortado pela deusa magoada pelo amor que já não há
ou nunca houve e o silêncio a encher o quarto e a coarctar o sangue nas veias
subitamente substituido por um liquido verde que renova mitos e mundos
caminhos ladeados por anjos esquálidos e deuses de olhos vazados

eu vi a alegria quando se pensa que a tristeza são uns olhos castanhos
marejados de lágririlas ou apenas a aflorarem o lado mais difícil de dizer
do amor que já não virá das ilhas rodeadas por mar e por ilhas de ilhas
olhos castanhos a desafiarem deuses e os vazios oceânicos das distâncias

eu vi os teus olhos surpresos surpreenderem um homem sentado no sonho
das palavras que se misturam umas com as outras como contas coloridas
com imagens intermináveis semeadas de sonhos com plantas carnívoras
sonhos que invadem as noites e nos empurram para o sol que nos cega

eu vi nos teus olhos a ternura que submete os corações de touros selvagens
a frescura e a luz que inundam as terras devastadas e estéreis dos desamores
e resgatam da sombra das águas extenuadas as algas e os líquenes precisos
à renovação das palavras deslumbradas esmagadas por securas e tédios ~

eu vi a tua água límpida inundar os caminhos secos das nossas memórias
a seiva que limpa as veredas escuras do nosso sangue em vão derramado
o mel que suaviza as nossas gargantas secas e exaustas pelo inenarrável
o sangue rejuvenescido que expulsa das nossas veias o lixo do passado

eu vi a tua boca proferir fórmulas mágicas "Obedece-me, meu coração. Eu
sou o teu senhor. Enquanto estiveres no meu corpo não me serás hostil:"
e eu sentado no chão a mimar o canto mágico furtado ao livro dos mortos
com a esperança de acender na noite palavras e corpos e olhares novos

eu vi os teus olhos cravados no chão à procura de sinais cifrados
de enigmas que iluminem um pensamento novo ainda que breve
uma luz que obscuramente possa desvendar as trevas do mundo
e eu atarefado a desenhar no ar criptogramas para te oferecer

eu vi aproximares-te de mim arrastando uma longa cauda de fogo frio
e as tuas mãos a trespassarem sem dor o meu corpo desabitado e dócil
os meus pensamentos desenhados pela mão esquerda de uma criança
a minha alma que teimosamente busca ainda na lama as pérolas puras

eu vi e não vi tudo o que vi ou imaginei ou não imaginei e vi-te e não te vi
sonhei-te talvez só no meu sonho vagabundo de inventar seres e sonhos
fechado no quarto de hotel palco onde tu és verdade isso é mesmo verdade
tu em estado de graça a incendiar palavras que estalam como sal queimado

eu vi uma actriz a incendiar palavras
em estado geral de graça
a ser feliz
eu vi.


Carlos Alberto Machado
A Realidade Inclinada
Averno
2003

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