quinta-feira, fevereiro 03, 2011

António Ramos Rosa

A partir de uma folha reconstruí a árvore
e tudo me foi dado porque ofereci
ao abandonado deus da inércia mineral
e de privilégio em privilégio reconheci o nada
do meu tronco original e a sua redonda substância
Baixei as pálpebras como quem entra num túmulo
e penetrei na nuvem obscura de uma secreta pupila
onde quem morre nasce e os deuses assomam
os colos degolados Entrei na selva de uma gruta
e vi as chamas e as sombras na dança dos desejos
Colhi então uma pequena folha azul no chão vermelho
e coloquei-a no ombro de uma mulher maravilhosa
E de carícia em carícia formou-se uma folhagem
e o tronco tenso da árvore no próprio corpo dela
e no meu corpo unânime solidamente vivo



António Ramos Rosa

quinta-feira, novembro 25, 2010

Alberto Pimenta

o pintor

pega numa folha branca
desenha os cabelos co
mo folhas de erva-viva
apanhados no alto dei
xando livre pela nuca
o ritmo vertebrado. de
senha os olhos assisti
do pela cor de avelãs
e as mãos sentindo o p
eso de borboletas quan
do pousam. no peito, afa
stados entre si um paI
mo, dois rebentos amen
doados de cor avermelh
ada encimando sargaço
pisado e misturado com
leite. vai descendo dan
do ao todo a cor do su
co do anacardo translu
cidamente quase e apra
zível à vista abundant
e de pilosos e serrilh
ados resguardos até à
amêndoa de dentro dest
ilando goma em quantid
ade como as tenras foI
has dos chícharos. pos
ta sobre duas colunas
que descem com bastan
te pressa cortando o
ar ou movendo-se nele
roliças e estreitando
ainda como o tronco da
palmeira mas ao invés.

Alberto Pimenta
Obra Quase Incompleta
Fenda

segunda-feira, abril 05, 2010

EDUARDO BETTENCOURT PINTO

Naqueles dias

Lembras-te?
A camisa velha, a sua cor incendiada, os pés
enfiados nas sandálias cambadas,
o cabelo palhoso e áspero
do sabão azul e branco;
assim eras,
a cavalo do sol,
o coração aos gritos.

Quem sabia de ti?
Que angústia ou riso surpreendia a pedra
dessas águas, que deserto?

Estavas preso à imagem, o rio grande
da luz.
Às colunas desses dias
claros, aos seus enlevos,
folhas secas do mundo.
O gesto, brando, expectante;
num momento podias levantar voo
da alegria ou do canto
dum pássaro.
As tuas mãos murmuravam como o orvalho,
acariciavam as ervas no branco
do júbilo;
deslumbrado escutavas a chuva,
as bananeiras molhadas.

Nesse tempo de glória e ranho,
não conhecias ainda o peso do silêncio
ardendo em palavras feridas,

os olhos gastos pela luz
da ausência.


EDUARDO BETTENCOURT PINTO
A deusa da chuva

Alexandre O'Neill

Há Palavras Que Nos Beijam

Há palavras que nos beijam
Como se tivessem boca,
Palavras de amor, de esperança,
De imenso amor, de esperança louca.

Palavras nuas que beijas
Quando a noite perde o rosto,
Palavras que se recusam
Aos muros do teu desgosto.

De repente coloridas
Entre palavras sem cor,
Esperadas, inesperadas
Como a poesia ou o amor.

(O nome de quem se ama
Letra a letra revelado
No mármore distraído,
No papel abandonado)

Palavras que nos transportam
Aonde a noite é mais forte,
Ao silêncio dos amantes.


Alexandre O'Neill

sábado, fevereiro 14, 2009

Adolfo Casais Monteiro

Debruço-me e escuto...

Tanto ouço que me estoiram os ouvidos...
Mar tão alto
como geme chora ri
e canta!
Vida!

Nesta desordem de andar
que ir e vir que inquieta!
caminhos sempre cortados
marés vivas marés baixas
elipses...

Adolfo Casais Monteiro
VERSOS
INQUÉRITO
1944