quinta-feira, junho 29, 2006

Frederico Mira George

# 15

[estás junto a mim numa prateleira]
escorre água entre as nossas cabeças de oxácido
repara na trepadeira na hera
olha como se enrola na tua língua
esperanto e anjo de aberta madrepérola
que nojo
ainda se em ti o corpo fosse absoluto
ainda que
ainda que
se
um corpo fosse absoluto mas
a tua língua penetrando a hera
que nojo
volto muitas vezes ao lugar onde caíste exausta
sobre o meu peito
suando a última vez que caíste
sobre o meu peito
exausta suando
volto a esse dia e em mim estremece um ácido / como
esta água que agora escorre entre as nossas cabeças
[numa prateleira]
que nojo ver-te assim outra vez
exausta sobre um peito
caída lambendo suando
que desejo


Frederico Mira George
Quarenta Romances de Cavalaria e Outros Poemas
Dom Quixote

Paula Gândara

II. Cortes 2

se se esticar a pele, devagarinho
já se consegue ver por baixo
mas tem que se esticar devagarinho
para não rebentar de repente
estica-se com cuidado
só para ver os rasgões
a carne ferida, feridas fundas e vazias
se se esticar com cuidado
consegue até ver-se para lá das feridas
dos rasgões e da carne aberta do sangue e da agonia
consegue ver-se uma massa informe
um pedaço de qualquer coisa
que batecompassadamente ainda
contentinho do sangue que não escorreu todo
ainda
e bate
como se não fosse nada
como se não estivesse feito uma bola de músculos
veias artérias carne só e ferida
bate cretinamente
se espreitares, devagarinho
hás-de vê-lo
a fingir que não percebe
que não vê
que daqui a nada
daqui a um pedacinho de nada
é hora de já não bater
já não bater
nem mais uma única vez
porque
coitado
há-de finalmente perceber
que não há porque bater.
Ninguém
não abrem a porta.


19 Abr


Paula Gândara
Horas de Língua
quasi

sábado, junho 24, 2006

Serge Gainsbourg

Serge Gainsbourg

L'homme a créé des dieux l'inverse tu rigoles
Croire c'est aussi fumeux que la ganja
Tire sur ton joint pauvre rasta
Et inhale tes paraboles.

Là-bas en Éthiopie est une sombre idole
Haïlé Sélassié négus roi des rois
Descendant de MoĂŻse Ă  ce qu'en croient
Certains quant Ă  moi je les crois sur parole.

Des esclaves le protègent sous de noirs parasols
Du ciel blanc d' Addis-Abeba.
A ses pieds un lionceau emblĂŞme de Juda
Symbole.

Dans son lointain palais le négus s'isole
Prisonnier après un nouveau coup d'État
Peut-être passé par les armes va savoir qui ou quoi
Demande donc Ă  la C.I.A. ou Interpol.

Serge Gainsbourg
Mon propre rĂ´le II
folio
Éditions Denöel
1991

Brâmanes

Há neste reino [de Gujarat] uma sorte de gentios que
chamam brâmanes e são muito grandes mercadores e tra-
tantes, vivem entre os mouros, com que fazem todo seu
trato, estes não comem carne, nem pescado, nem nenhuma coisa que morra,
nem matam, nem menos querem ver
matar, por assim lho defender a sua idolatria, e guardam isto
em tamanho extremo que é coisa espantosa, porque muitas vezes
acontece levarem-lhe os mouros bichos e pas-
sarinhos vivos, e fazerem que os querem matar perante eles
e estes brâmanes lhos compram e resgatam, dando-lhes por
eles muito mais do que valem, por lhe salvarem as vidas e soltá-los
[...].
Estes brâmanes e gentios têm muito por semelhas
a Santa Trindade, honram muito o conto de três em trino, e
a sua oração a Deus, o qual confessam e adoram ser Deus verdadeiro,
criador e fazedor de todas as coisas, que é e um
só Deus, e que há muitos deuses outros, gover-
nadores por eles, em que eles também crêem. Estes brâma-
nes e gentios onde quer que se acham, entram em as nossas
Igrejas e fazem oração e adoração às nossas imagens, pergun-
tando sempre por Santa Maria, como homens que
disso têm algum conhecimento ou notícia, e, como à nossa
maneira, honram a igreja, dizendo que entre eles e nós há
muito pouca diferença.


Duarte Barbosa, O Livro em que dá relação do que viu e ouviu
no Oriente Duarte Barbosa (início do século XVI)
AGENDA 1999
Assírio & Alvim

Projecto de gravura

quinta-feira, junho 22, 2006

Marguerite Yourcenar

O HOMEM QUE AMOU AS NEREIDAS

(continuação)

- Surdo não é - repetiu João Demetriadis
pousando à sua frente a chávena meia cheia
de uma espessa borra preta. - A palavra e o
espírito foram-lhe retirados em condições tais
que chego a invejá-lo, eu o homem pensante,
o homem rico, que tantas vezes apenas en-
contra o tédio e o vazio pelo caminho. Este Pa-
negyotis (é como ele se chama) perdeu a fala
aos dezoito anos por ter encontrado as Nerei-
das nuas.
Nos lábios de Panegyotis, que ouvira pro-
nunciar o seu nome, desenhou - se um sorriso
tímido. Parecia não compreender o sentido
das palavras daquele homem importante em
que reconhecia vagamente um protector, mas
o tom, e não as próprias palavras, atingia-o.
Contente por saber que se tratava dele e que
talvez fosse de esperar outra esmola, avançou
imperceptivelmente a mão, com o jeito receo-
so do cão que aflora com a pata o joelho do
dono, para que se não esqueçam de lhe dar
de comer.
- É filho de um dos camponeses mais abas-
tados da minha aldeia - continuou João De-
metriadis - e, coisa rara entre nós, aquilo é
mesmo gente rica. Os pais têm tantas terras
que nem sabem o que hão-de fazer-lhes, uma
bela casa de pedra de cantaria, um pomar
com diversas variedades de fruta, e legumes
na horta, um despertador na cozinha, uma
lâmpada acesa junto à parede dos ícones, en-
fim, nada lhes falta. Podia dizer-se de Pane-
gyotis aquilo que raramente se pode dizer de
um jovem grego: que lhe coziam o pão todos
os dias e para toda a vida. Podia-se também
dizer que tinha o caminho traçado à sua
frente, um caminho grego, poeirento, pedre-
goso e monótono, mas semeado de grilos a
cantar aqui e além e de umas pausas nada de-
sagradáveis à porta das tabernas. Ajudava as
velhotas na vareja da azeitona; vigiava a em-
balagem das caixas de uva e a pesagem dos
fardos de lã; nas discussões com os compra-
dores de tabaco, defendia discretamente o pai,
cuspindo de desdém a toda a proposta que
não ultrapassasse o preço desejado; estava
noivo da filha do veterinário, uma rapariguita
simpática que trabalhava na minha fábrica;
como era muito belo, atribuíam-lhe tantas
amantes quantas as raparigas da região que
amam o amor; pretendeu-se que dormia com
a mulher do padre; a ser verdade, o padre não
lhe queria mal pois gostava pouco de mulhe-
res e não ligava à dele, que, aliás, se oferece
a qualquer um. Imagine a humilde felicidade
de Panegyotis; o amor das damas, a inveja dos
homens e por vezes o seu desejo, um relógio
de prata, uma camisa maravilhosamente
branca, engomada pela mãe, de dois ou de
três em três dias, o pilaf ao meio-dia e o
glauco e perfumado ouzo antes da ceia. Mas
a felicidade é frágil, e quando a não destroem
os homens ou as circunstâncias, ameaçam-na
os fantasmas.
Talvez não saibam que a nossa
ilha está povoada de presenças misteriosas.

(continua)


A Salvação de Wang-Fô
e outros Contos Orientais
Marguerite Yourcenar
Publicações D. Quixote

quarta-feira, junho 21, 2006

José Régio



Toada de Portalegre

Em Portalegre, cidade
Do Alto Alentejo, cercada
De serras, ventos, penhascos, oliveiras e sobreiros
Morei numa casa velha,
À qual quis como se fora
Feita para eu morar nela...

Cheia dos maus e bons cheiros
Das casas que têm história,
Cheia da ténue, mas viva, obsidiante memória
De antigas gentes e traças.
Cheia de sol nas vidraças
E de escuro nos recantos,
Cheia de medo e sossego,
De silêncios e de espantos,
- Quis-lhe bem como se fora
Tão feita ao gosto de outrora
Como as do meu aconchego.

Em Portalegre, cidade
Do Alto Alentejo, cercada
De montes e de oliveiras
Ao vento suão queimada
(Lá vem o vento suão!,
Que enche o sono de pavores,
Faz febre, esfarela os ossos,
E atira aos desesperados
A corda com que se enforcam
Na trave de algum desvão...)
Em Portalegre, dizia,
Cidade onde então sofria
Coisa que terei pudor
De contar seja a quem fôr,
Na tal casa tosca e bela
À qual quis como se fora
Feita para eu morar nela,
Tinha, então,
Por única diversão,
Uma pequena varanda
Diante de uma janela

Toda aberta ao sol que abrasa,
Ao frio que tosse e gela
E ao vento que anda, desanda,
E sarabanda, e ciranda
Derredor da minha casa,
Em Portalegre, cidade
Do Alto Alentejo, cercada
De serras, ventos, penhascos e sobreiros
Era uma bela varanda,
Naquela bela janela!
Serras deitadas nas nuvens,
Vagas e azuis de distância,
Azuis, cinzentas, lilases,
Já roxas quando mais perto,
Campos verdes e amarelos,
Salpicados de oliveiras,
E que o frio, ao vir, despia,
Rasava, unia
Num mesmo ar de deserto
Ou de longínquas geleiras,
Céus que lá em cima, estrelados,
Boiando em lua, ou fechados
Nos seus turbilhões de trevas,
Pareciam engolir-me
Quando, fitando-os suspenso
Daquele silêncio imenso,
Sentia o chão a fugir-me,
- Se abriam diante dela
Daquela
Bela
Varanda
Daquela
Minha
Janela,
Em Portalegre, cidade
Do Alto Alentejo, cercada
De serras, ventos, penhascos, oliveiras e sobreiros
Na casa em que morei, velha,
Cheia dos maus e bons cheiros
Das casas que têm história,
Cheia da ténue, mas viva, obsidiante memória
De antigas gentes e traças,
Cheia de sol nas vidraças
E de escuro nos recantos,
Cheia de medo e sossego,
De silêncios e de espantos,
À qual quis como se fora
Tão feita ao gosto de outrora
Como as do meu aconchego...

Ora agora,
Que havia o vento suão
Que enche o sono de pavores,
Faz febre, esfarela os ossos,
Dói nos peitos sufocados,
E atira aos desesperados
A corda com que se enforcam
Na trave de algum desvão,
Que havia o vento suão
De se lembrar de fazer?

Em Portalegre, dizia,
Cidade onde então sofria
Coisas que terei pudor
De contar seja a quem for,
Que havia o vento suão
De fazer,
Senão trazer
Àquela
Minha
Varanda
Daquela
Minha
Janela,
O documento maior
De que Deus
É protector
Dos seus
Que mais faz sofrer?

Lá num craveiro, que eu tinha,
Onde uma cepa cansada
Mal dava cravos sem vida,
Poisou qualquer sementinha
Que o vento que anda, desanda,
E sarabanda, e ciranda,
Achara no ar perdida,
Errando entre terra e céus...,
E, louvado seja Deus!,
Eis que uma folha miudinha
Rompeu, cresceu, recortada,
Furando a cepa cansada
Que dava cravos sem vida
Naquela
Bela
Varanda
Daquela
Minha
Janela
Da tal casa tosca e bela
À qual quis como se fora
Feita para eu morar nela...
Como é que o vento suão
Que enche o sono de pavores,
Faz febre, esfarela os ossos,
Dói nos peitos sufocados,
E atira aos desesperados
A corda com que se enforcam
Na trave de algum desvão,
Me trouxe a mim que, dizia,
Em Portalegre sofria
Coisas que terei pudor
De contar seja a quem for,
Me trouxe a mim essa esmola,
Esse pedido de paz
Dum Deus que fere... e consola
Como o próprio mal que faz?

Coisas que terei pudor
De contar seja a quem for
Me davam então tal vida
Em Portalegre, cidade
Do Alto Alentejo, cercada
De serras, ventos, penhascos, oliveiras e sobreiros,
Me davam então tal vida -
Não vivida!, sim morrida
No tédio e no desespero,
No espanto e na solidão,
Que a corda dos derradeiros
Desejos dos desgraçados
Por noites de tal suão
Já várias vezes tentara
Meus dedos verdes suados...

Senão quando o amor de Deus
Ao vento que anda, desanda,
E sarabanda, e ciranda,
Confia uma sementinha
Perdida entre terra e ceús,
E o vento a trás à varanda
Daquela
Minha
Janela
Da tal casa tôsca e bela
À qual quis como se fôra
Feita para eu morar nela!

Lá no craveiros que eu tinha,
Onde uma cepa cansada
Mal dava cravos sem vida,
Nasceu essa acaciazinha
Que depois foi transplantada
E cresceu;
Dom do meu Deus!,
Aos pés lá da estranha casa
Do largo do cemitério,
Frente aos ciprestes que em frente
Mostram os céus,
Como dedos apontados
De gigantes enterrados...
Quem desespera dos homens,
Se a alma lhe não secou,
A tudo transfere a esperança
Que a humanidade frustrou:
E é capaz de amar as plantas,
De esperar nos animais,
De humanizar coisas brutas,
E ter criancices tais,
Tais e tantas!,
Que será bom ter pudor
De as contar seja a quem for!

O amor, a amizade, e quantos
Mais sonhos de oiro eu sonhara,
Bens deste mundo!, que o mundo
Me levara
De tal maneira me tinham,
Ao fugir-me,
Deixando só, nulo, vácuos,
A mim que tanto esperava
Ser fiel,
E forte,
E firme,
Que não era mais que morte
A vida que então vivia,
Auto-cadáver...

E era então que sucedia
Que em Portalegre, cidade
Do Alto Alentejo, cercada
De serras, ventos, penhascos, oliveiras e sobreiros
Aos pés lá da casa velha
Cheia dos maus e bons cheiros
Das casas que têm história,
Cheia da ténue, mas viva, obsidiante memória
De antigas gentes e traças,
Cheia de sol nas vidraças
E de escuro nos recantos,
Cheia de medo e sossego,
De silêncios e de espantos,
- A minha acácia crescia.
.
Vento suão!, obrigado...
Pela doce companhia
Que em teu hálito empestado
Sem eu sonhar, me chegara!
E a cada raminho novo
Que a tenra acácia deitava,
Será loucura!..., mas era
Uma alegria
Na longa e negra apatia
Daquela miséria extrema
Em que vivia,
E vivera,
Como se fizera um poema,
Ou se um filho me nascera.


José Régio

terça-feira, junho 20, 2006

Marguerite Yourcenar

O HOMEM QUE AMOU AS NEREIDAS


Estava de pé, descalço na poeira, no calor
e nas exalações do porto, debaixo do exíguo
toldo de um cafezito onde alguns clientes, re-
fastelados nas cadeiras, em vão esperavam
proteger-se do sol. As suas velhas calças ru-
ças mal lhe chegavam aos tornozelos, e aquele
ossinho bicudo, a ponta do calcanhar, as com-
pridas plantas dos pés, calosas e escoriadas,
os dedos ágeis e tácteis pertenciam a essa
raça de pés inteligentes, acostumados a todas
as lides com o ar e o chão, endurecidos nas
asperezas das pedras, que nos países medi-
terrânicos ainda deixam ao homem vestido
um pouco do livre desafogo do homem nu. Pés
ágeis, tão diferentes dos canhestros e pesados
suportes encerrados nos sapatos do Norte... O
azul desbotado da camisa condizia com os
tons daquele céu esbatido pela luz do Verão;
os ombros e as omoplatas rompiam pelos ras-
gões do pano como agrestes rochedos; as ore-
lhas um tanto alongadas enquadravam-lhe
obliquamente o crânio à maneira das asas de
uma ânfora; viam-se ainda incontestáveis ves-
tígios de beleza no seu rosto pálido e ausente,
como antiga estátua quebrada que aflorasse
em solo ingrato. Os olhos de bicho doente dis-
simulavam-se-lhe sem suspeita por detrás de
umas pestanas tão compridas como as que or-
lam as pálpebras das mulas; mantinha a mão
direita constantemente estendida, com o gesto
obstinado e importuno dos ídolos arcaicos que
parecem exigir aos visitantes dos museus a es-
mola da admiração, e da boca escancarada
sobre uns dentes brilhantes soltavam-se vagi-
dos indistintos.
- É surdo-mudo?- Surdo não é.
João Demetriadis, proprietário das impor-
tantes fábricas de sabão da ilha, aproveitou
um momento de desatenção em que o olhar
vago do idiota se perdia para o lado do mar
para deixar cair um dracma na laje polida. O
leve tilintar meio abafado por uma fina ca-
mada de areia não passou despercebido ao
mendigo, que apanhou gulosamente a moe-
dita de níquel para logo a seguir retomar a
sua posição contemplativa e gemebunda,
como uma gaivota na beira do cais.
 
(continua)

 
A Salvação de Wang-Fô
e outros Contos Orientais
Marguerite Yourcenar
Publicações D. Quixote

domingo, junho 18, 2006

António José Forte


Desenho de Aldina


ASSINATURA


Entre lágrimas de crocodilo
o homem com gestos de lava
que aponta o local do crime
todas as manhãs
e eu despido de rosas
subo a escada de caracol da morte
para ir deixar na tua pele a assinatura bárbara
com a caligrafia trémula todas as manhãs
e todas as noites de terror
entre a música dos astros

António José Forte
Uma Faca nos Dentes
Prefácio de Herberto Helder
Parceria A.M. Pereira
Livraria Editora, Lda.



ODE


Como um girassol a ideia
letra a letra nos dentes do poeta
e ziguezaguear cintilante
até ao fim do mundo dos meus olhos
onde o teu nome canta ó rosácea dos cegos
voz do suicida no túnel nos ouvidos.
Como um icebergue devagar florindo
no horizonte trémulo de púrpura
e peixes doidos de ouro
nas mãos dos assassinos nus
à hora do abismo
ó bússola dos ébrios puta dos impotentes
Flor desfolhada no Evereste
bem-me-quer malmequer alucinado
no labirinto ardente das insónias
ó rosa das horas brancas
asa secreta contra o peito
muito alto no avião da morte
Lâmpada negra suspensa no deserto
uivante entre as pupilas e alta
até à via láctea surreal
agora e na hora dos massacres
cidade ou estrela ó baleia branca
no mar de navios sem capitães
Rosto para sempre adolescente
no relógio das horas violentas
na câmara escura
onde o meu nome deve ser lido aos gritos
cantando na garganta dos lobos
ó furor anel de versos doidos
Porta na memória das sereias
para o mistério de ilhas encantadas
no princípio do mundo
aberta como quem abre os pulsos
ou empurrada pelas lágrimas
pela pólvora ó ranger de dentes podres
Única sem céu e sem inferno
sem fim nos olhos dos amantes
na noite sem fim
de mãos entrelaçada
só fatal maravilhosamente
como um icebergue como um girassol


António José Forte
Uma Faca nos Dentes
Prefácio de Herberto Helder
Parceria A.M. Pereira
Livraria Editora, Lda

sábado, junho 10, 2006

Sena

“DE CORRER MUNDO...”

De correr mundo as terras e os humanos
como paisagem que ante os olhos passa,
e às vezes percorrer umas e outros
nos breves intervalos entre duas viagens,
uma incerteza deixa que é diversa
da que se aprende no convívio longo:
quem se demora vê, sob as fachadas
ou as perspectivas de alta torre feitas
um gesto em que se mostra uma outra vida,
ou troca frases que desnudam crua
o que de interno ser sob as fachadas vive;
mas quem só passa e mal aos outros toca
com mais que olhares ou fugidias vozes,
mais adivinha o que não é paisagem
mas dia a dia tão diverso dela
ou pelo menos para além ansioso.
Mas, se num caso a vida se conhece
e noutro caso nos conhece a nós,
por ambos aprendemos que do mundo
se vive o que não passa, ou se não vive
o que passando é só terras e gentes -
-o conhecer, porém, não se conhece nunca.
Apenas resta a escolha: como descobrir
essa experiência inútil. Antes, pois,
correr do mundo as terras e os humanos
que consumir-se alguém ao lado deles sempre.


Jorge de Sena
Visão Perpétua
SB 3/10/1972

Jorge de Sena

DENÚNCIA

Sonharei, no teu seio calmo,
O sonho invisível do cego de nascença.

Dormirei, no teu cerrar de pálpebras,
Como um peixe desliza entre os ramos de árvore
Reflectidos na água.

Dormirei, nas tuas mãos pousadas no meu corpo,
O desejo de te acariciar sem perigo
- não vá tirar-te escamas, borboleta presa.

Dormirei, no teu sexo, a solidão do meu
Ao existir para que eu pense em ti.

Dormirei, na tua vida, a teimosia humana
De um sentido universal para as coisas connosco.

E se, depois, meu amor, formos estéreis,
Se a demora do tempo tiver tido um gesto abandonado,
E a morte, à nossa volta, um moleiro sem trigo,
O mundo que vier inveja-nos
E o nosso espírito há-de perdoar-nos.


Jorge de Sena.

Herberto

Ninguém se aproxima de ninguém se não for num murmúrio,
entre flores altas: camélias de ar
espancado, as labaredas dos aloés erguidas
de uma carne difícil.
A beleza que devora a visão alimenta-se da desordem.
O espaço brilha dela, sussurra quando passa por uma imagem
tão leve que não suporta o peso
brusco
do sangue - as veias da garganta contra a boca.


HERBERTO HELDER (1930)
Poesia Toda
Poemário 2005
Assírio & Alvim

Herberto Helder

(escrita pouco inocente)

No livro do imaginário a lua é verde de morrer, as
cadeiras brancas, e a terra amarela começa a dormir
- gosto dos poetas obscuros.
Não há poetas obscuros.
Se alguém diz - esta atenção não é minha - não é
um poeta obscuro? e, se diz - esta não é a minha aten-
ção - não é um poeta claro?
Não.
É preciso encontrar chaves - às vezes é fácil, às
vezes difícil.
Não.
Cada imagem é a chave de outra imagem - e elas
abrem-se umas às outras, as imagens.
Não.
Tudo são chaves para abrir tudo.
Não.
A chave entra na fechadura, a porta abre-se sobre
uma nova porta.
Não.
Portas sobre portas até que a porta final abre sobre
a luz que atravessa o espaço aberto de todas as portas.
Não.
Os poetas são metafísicos.
Não.
A metafísica é uma distância de onde os poetas vêem,
em perspectiva, a realidade.
Não.
Não há realidade?
Não, não há realidade - todos os poetas são claros
a esse respeito.
Se eles dizem - atenção - cria-se a realidade da
atenção.
Se eles dizem - atenção - anulam a atenção, cri-
am um espaço vazio.
A imagem não é uma realidade?
O que os poetas provam é que é preciso uma ima-
gem para revelar que a realidade não existe.
No livro do imaginário a lua é verde de morrer, as
cadeiras brancas, e a terra amarela começa a dormir -
gosto dos poetas claros.
Não, ainda não.


herberto helder
PHOTOMATON & VOX
Assírio & Alvim
1995

Camões

Alegres campos, verdes arvoredos,
claras e frescas águas de cristal,
que em vós os debuxais ao natural,
discorrendo da altura dos rochedos;

Silvestres montes, ásperos penedos,
compostos em concerto desigual,
sabei que, sem licença de meu mal,
já não podeis fazer meus olhos ledos.

E, pois me já não vedes como vistes,
não me alegrem verduras deleitosas,
nem águas que correndo alegres vêm.

Semearei em vós lembranças tristes,
regando-vos com lágrimas saudosas,
e nascerão saudades de meu bem.


Luís Vaz de Camões

Luís de Camões

O fogo que na branda cera ardia,
Vendo o rosto gentil que eu na alma vejo,
Se acendeu de outro fogo do desejo,
Por alcançar a luz que vence o dia.

Como de dous ardores se incendia,
Da grande impaciência fez despejo,
E, remetendo com furor sobejo,
Vos foi beijar na parte onde se via.

Ditosa aquela flama, que se atreve
A apagar seus ardores e tormentos
Na vista de que o mundo tremer deve!

Namoram-se, Senhora, os Elementos
De vós, e queima o fogo aquela neve
Que queima corações e pensamentos.


Luís Vaz de Camões

Vendaval

VENDAVAL


Ó vento do norte, tão fundo e tão frio,
Não achas, soprando por tanta solidão,
Deserto, penhasco, coval mais vazio
Que o meu coração!

Indómita praia, que a raiva do oceano
Faz louco lugar, caverna sem fim,
Não são tão deixados do alegre e do humano
Como a alma que há em mim!

Mas dura planície, praia atra em fereza,
Só têm a tristeza que a gente lhes vê
E nisto que em mim é vácuo e tristeza
É o visto o que vê.

Ah, mágoa de ter consciência da vida!
Tu, vento do norte, teimoso, iracundo,
Que rasgas os robles - teu pulso divida
Minh'alma do mundo!

Ah, se, como levas as folhas e a areia,
A alma que tenho pudesses levar
-Fosse pr'onde fosse, pra longe da idéia
De eu ter que pensar!

Abismo da noite, da chuva, do vento,
Mar torvo do caos que parece volver
-Porque é que não entras no meu pensamento
Para ele morrer?

Horror de ser sempre com vida a consciência!
Horror de sentir a alma sempre a pensar!
Arranca-me, ó vento; do chão da existência,
De ser um lugar!

E, pela alta noite que fazes mais'scura,
Pelo caos furioso que crias no mundo,
Dissolve em areia esta minha amargura,
Meu tédio profundo.

E contra as vidraças dos que há que têm lares,
Telhados daqueles que têm razão,
Atira, já pária desfeito dos ares,
O meu coração!

Meu coração triste, meu coração ermo,
Tornado a substância dispersa e negada
Do vento sem forma, da noite sem termo,
Do abismo e do nada!


Fernando Pessoa, 16-2-1920

Fernando Pessoa

Outros terão
Um lar, quem saiba, amor, paz, um amigo.
A inteira, negra e fria solidão
Está comigo.

A outros talvez
Há alguma coisa quente, igual, afim
No mundo real. Não chega nunca a vez
Para mim.

"Que importa?"
Digo, mas só Deus sabe que o não creio.
Nem um casual mendigo Ă minha porta
Sentar-se veio.

"Quem tem de ser?
"Não sofre menos quem o reconhece.
Sofre quem finge desprezar sofrer
Pois não esquece.

Isto até quando?
Só tenho por consolação
Que os olhos se me vão acostumando
À escuridão.


Fernando Pessoa, 13-1-1920.

quinta-feira, junho 08, 2006



Festejos dos santos populares e futebol

quarta-feira, junho 07, 2006

Daniel Maia-Pinto Rodrigues

O Grande Tocador de Xilofone

No primeiro dia
vou, ainda que de lampejo, a dar um beijo
toca o telefone
Vou a levantar a tampa da retrete
toca o telefone
Vou a meter a boca no pão com queijo
toca o telefone
Vou o espírito libertar ouvindo os Roxette
toca o telefone
Vou tocar uma pívia
toca o telefone
Vou tocar xilofone
toca o telefone
Vou a constatar que o telefone está sempre a tocar
toca o telefone.

No segundo dia
saí para desanuviar
encontrei-te
a tomar café com leite
e dei-te o meu telefone
No terceiro dia
estive atento ao telefone
mas o telefone não te trouxe
No quarto dia desliguei o telefone.

E eis-nos chegados ao quinto e Ăşltimo dia
dos dias que referirei
e tanto estes dias, como também este textozinho
vão necessitar de um final
Qual escolheis
o final que termina bem
ou o final que termina mal?
Assinalo que elaborei mais
aquele que termina bem
Repito a pergunta
qual dos dois escolheis?
Para quem ainda não decidiu
eu vou expressar os dois finais
O que termina mal é assim
basicamente
ao quinto dia
saí para desanuviar
e todos vós me vistes, basicamente
Por sua vez o que termina bem
é
ao quinto dia
saí para desanuviar
saí para desanuviar mas é o raio!
encontrei -te
levei-te, trouxe-te e levei-te
levantámos a tampa da retrete
estilhaçámos ao som dos Roxette
percutimos o xilofone
cuspimos no telefone
demos um beijo, que não de lampejo
animámos o já vivido, amámos o divertido
metendo a boca e o nariz no queijo derretido.


Daniel Maia-Pinto Rodrigues
O Afastamento Está Ali Sentado
quasi

terça-feira, junho 06, 2006

No "antro"

Péter Zirkuli

XIX

E atrás de mim o som.
Os sinais de um despertar insistente,
como se uma trombeta tocasse
através da cidade deserta.
Entra na minha pele,
faz nós na minha carne,
as minhas células aterrorizadas agitam-se.
E em breve será a noite,que permanece.
Estende-se indefinidamente
- glóbulo de um ressoar fervilhante.
À minha frente as folhas cintilam,
amarelas, nervuras no chão.
Estalam, estalam os meus
passos. Houve um tempo em que estava vivo.
Assim creio.
E talvez livre,
como os animais. Gritando como eles,
ébrio de vento.


Péter Zirkuli
O INSTANTE LUMINOSO
Tradução colectiva
( Mateus, Abril de 1995)
revista e apresentada
por Nuno Júdice
Quetzal Editores/1997

Péter Zirkuli

III

Lâminas apenas.
Nó, fio, laços
e os ligarmos
de tempos a tempos,
numa pausa.
Desfazem-se mais tarde
e gesticulam, espalham-se
em desordem
os corpos, as coisas.
Somos,
mineral, água, células,
o que nos forma.
Quis uma Outra existência.
Ar imperceptível
que tudo envolve
de uma só matéria em mil partículas.
Agora toda a respiração é vertigem,
espinhas afluindo Ă

garganta.
E a visão enjoa-me,
o panorama granuloso,
a gravura ofegante,
nervura de pedra,
que consolo há nesse abraço,
se é apenas
consolo,
um balouçar em êxtase,
o desejo e as lâminas inchadas
por fim aquietados,
o fremente
rabiscar.


Péter Zirkuli
O INSTANTE LUMINOSO
Tradução colectiva
( Mateus, Abril de 1995)
revista e apresentada
por Nuno Júdice
Quetzal Editores/1997

domingo, junho 04, 2006

Um Não Acabar Mais



UM NÃO ACABAR MAIS

Sou quem sou. Um acaso inconcebível
como todos os acasos.

Outros antepassados
poderiam, afinal, ser os meus,
e então de outro ninho
sairia voando,
de debaixo de outro tronco
rastejaria, coberta de escamas.

No guarda-roupa da Natureza
há trajes de sobra:o traje da aranha, da gaivota, do rato do campo.
Cada um assenta de imediato que nem uma luva
e usa-se obedientemente
até se gastar por completo.

Eu tampouco tive alternativa,
mas não me queixo.
Poderia ser alguém muito menos individual.
Alguém do cardume, do formigueiro, do enxame zuninte,
uma partícula da paisagem agitada pelo vento.

Alguém muito menos feliz,
criado para dar a pele,
para a mesa festiva,
ou algo que nadasse sob a lente.

Uma árvore presa à terra,
da qual o fogo se aproximasse.

Um mero cisco esmagado
pela marcha dos acontecimentos inconcebíveis.
Um indivíduo nascido sob a estrela ruim
que para outros seria boa.

E o que seria se despertasse nas pessoas medo?
Ou só aversão?
Ou só piedade?

Se não tivesse nascido
na tribo certa
e todos os caminhos se me fechassem?

Até agora, a sorte
mostrou-se-me favorável.
Poderia não ter-me sido dada
a recordação dos bons instantes.

Poderia ter-me sido negada
a tendência para comparar.

Poderia até ser eu própria
mas sem o dom da admiração,
quer dizer - alguém completamente diferente.


Wislawa Szymborska
Instante
Tradução de Elzbieta Milewska
e
Sérgio Neves
Relógio d’Água

Wislawa Szymborska

AS TRÊS PALAVRAS MAIS ESTRANHAS

Quando pronuncio a palavra Futuro,
a primeira sílaba já pertence ao passado.

Quando pronuncio a palavra Silêncio,
destruo-o.

Quando pronuncio a palavra Nada,
crio algo que não cabe em nenhum não-ser.


Wislawa Szymborska
Instante
Tradução de Elzbieta Milewska
e
Sérgio Neves
Relógio d’Água

Wislawa Szymborska

TUDO

Tudo -
palavra atrevida e enfunada de soberba.
Deveria escrever-se entre aspas.
Aparenta nada omitir,
tudo reunir, abarcar, conter e ter.
Porém, não é mais do que um farrapo do caos.


Wislawa Szymborska
Instante
Tradução de Elzbieta Milewska
e
Sérgio Neves
Relógio d’Água

sexta-feira, junho 02, 2006

Luís Manuel Gaspar

Antes de parar o coração sob os acordes
de um cavalo negro, ouvia-se a neve
nas vigias, a casca de insectos perfeitos
trocada por um dia perdido. Fúria
de fechar uma após outra as trepadeiras,
o tropel dos flocos no canteiro, a veia
que inchou com o estilhaço.

E no galope, ao bater de asas
do último insecto, roubei-te as imagens:
construíram-nos em pedra, rosas
em fios de fogueira, a pele apartada
dos pulsos. Há um tremor por excesso de pupilas,
o brilho que me arrasta ao arrepio
para o teu campo visual.


Luís Manuel Gaspar
Aguaçais
Pandora
Averno 004

Luís Serrano

PAÍS

País de líquenes
e musgos confundidos
país de pedra
de paredes nuas
e solitárias raízes

país de mar aberto
e rostos de cinza
de cabras dispersas
ruminando a rocha dura
tal um mapa de bolor
e névoa

país de sobreiros
ou espectros descascados
na planura
de sons puros e sol
vertical

país de água
e pássaros e pessoas
que partem e chegam
no comboio da lua

país emigrado
com suas velas
marítimos esqueletos pousados
na memória recente

país de gente
(já perdido o céu)
de nervos desatados e ossos
viajando no convés

país epiderme apenas
por dentro da noite
o sonho semeando
de coisa nenhuma

país de pinheiros
acordados sobre as dunas
uma tão remota
frustração de barcos

país parado na berma da agonia
em ti morre o sonho
se apaga a noite

se consome o dia
em ti submerso e tenso
um povo (ou um incêndio)
a si próprio se ilumina.


Julho, 1979
Luís Serrano
Poemas do Tempo Incerto
Cancioneiro
VÉRTICE
Coimbra 1983
(com desenhos de José Rodrigues)

Luís Amorim

MONÓLOGO DE PENÉLOPE PESPONTANDO OS SEUS CRETONES

tristes falangetas minhas
a procurar tendão músculo e pêlo
na flacidez dos panos que penduro
no parapeito da janela grande.

ó tu que já só posso imaginar
alto e tisnado pestanejando ao sol
contra velas de estopa pespontadas.

porque tardas
em vir beijar-me a risca do cabelo?

que persistentes formigueiros estes
que convulsionam minhas castas coxas?

que novas artes aprendem os meus dedos?


Luís Amorim
NORTE A SUL
o oiro do dia

BuganvĂ­lias

Luna Levi

Apocalipse estereofónico
no aloés
de intermitências algarvias.
Que navegar ao sul
nos coágulos
da bateria,
lacres,
num verso deitado,
deleitado
em delirantes joalharias?

Perfumes simbolistas
insinuam-se,
tão fim-de-século
a opulência,
a decadência!
Perfumes simbolistas
arrastam-na
pela cintura láctea. Há um futuro sideral
À espreita
da via
selenita. Poço
de luz
onde pairam
abelhas
repartidas
entre anéis negros de corvo.
Com antenas de veludo
palpitante.
(Radares.).


Luna Levi
SO2
Guimarães Editores
1980