quarta-feira, maio 31, 2006

Telegrafia Sem Fim

TELEGRAFIA SEM FIM

Onde o sonho do profundo se adormece
e as flores do enquanto me seduzem
neste vento que me paira e acontece,
o tempo do cansaço me escurece
e das estrelas instantes se conduzem
geométricas e finas linhas frias
cadentes de sonhadas geografias.
Ó meu cantar além dentro de mim
ó meu saber nos dedos o que vejo,
eu sei traçar a negação do fim
no sempre que se aquece para quem
se cria e se inventa de desejo.


SALETTE TAVARES
(1922-1993)
(Quadrada)

"Não vão mais às estrelas..."

MAR MORTO!

A noite cai sobre o cais, sobre o mar, sobre mim.
As ondas fracas, contra o molhe, são vozes calmas
[de afogados.
O luar marca uma estrada clara e macia nas águas,
mas os barcos que saem podem procurar mais noite,
e com as suas luzes vão pôr mais estrelas além.

O vento foi para outros cais levar o medo,
e as mulheres, que vêm dizer adeus e cantar,
hoje sabem canções com mais esperança,
canções mais fortes que a ressaca,
canções sem pausas onde passe uma sombra da
[morte.

Velhos marítimos - a terra é já a sua terra-
olham o mar mais distante e têm maior saudade.

Pára o rumor duns remos.

Não vão mais Às estrelas as canções com noite,
[amor e morte.

Penso em todos os que foram e andam no mar,
em todos os que ficam e andam no mar também.

E a luz do farol, lá longe, diz talvez.

Alberto de Serpa
(in Presença, n.º 43)

Tagore


Obra de Tagore

"QUERO SER O POETA DA NOITE"

Noite, velada Noite,
faz-me teu poeta!
Deixa-me entoar as canções
de todos aqueles
que, pelos séculos dos séculos,
se sentaram em silêncio
À tua sombra!
Deixa-me subir ao teu carro sem rodas
que corre silencioso de mundo a mundo,
tu que és rainha do palácio do tempo,
escura e formosa!

Quantos entendimentos ansiosos
penetraram mudos no teu pátio,
vaguearam sem lâmpada pela tua casa,
À tua procura!
Quantos corações, que a mão do Desconhecido
atravessou com a flecha da alegria, romperam em cânticos
que sacudiam a tua sombra
até aos alicerces!

Faz-me, ó Noite,
o poeta destas almas despertas
que contemplam maravilhadas,
À luz das estrelas,
o tesouro que encontraram
de repente;
o poeta do teu insondável silêncio,
ó Noite!


Rabindranath Tagore
(Prémio Nobel da Literatura em 1913).
"O Coração da Primavera"
Editorial A.O. - Braga
textos escolhidos e traduzidos por Manuel Simões

domingo, maio 28, 2006

Lawrence Durrell



"JE EST UN AUTRE"


Ele é o homem que toma notas,
O observador de chapéu alto preto,
De rosto oculto pela aba:
Em três cidades europeias
Tem-me visto a mim a olhá-lo.

Ă€ esquina de uma rua em Buda e depois
Junto aos correios, um vislumbre
Das abas do casaco sumindo-se
Deu esclarecimento igual e, examinado,
O aperto na garganta.

Outra vez, num encontro ao pé do Sena,
Com as águas um chão de estrelas a mexer,
Quando eu cheguei À porta já se fora,
Mas no pavimento, e ainda aceso,
Lá estava um dos seus habituais charutos pretos.

O encontro na escura escadaria
Onde a maré corria escorreita como um tear:
O atraiçoá-la, os beijos dela,
A tudo ele assistiu: quantas vezes
O ouço rir no quarto ao lado.

Observa-me agora trabalhando até tarde
A dar vida a um poema; os olhos
Reflectem a doença de Nerval:
Inútil é nesta velha casa interrogar
Espelhos, a sua máscara impenetrável.


Lawrence Durrell
Leituras
poemas do inglês
Prefácio e tradução de
João Ferreira Duarte
Relógio d’ Água



HOMERO CEGO


Outra vez uma noite de Inverno, e a Lua
Tinge vagamente os mármores e retira-se.

Os seis pinheiros silvam e retesam-se e ali
A oriente, onde as estrelas gregas se apagam e revivem

Cada noite em resplandecentes banhos de som,
Detém-se o pincel impregnado da manhã.

Agora, todos cederam ao Inverno
Coisas caducas, a pele da cobra e as armas do veado,

Pele rejeitada da uva e da poesia.

Homero cego, os lagartos ainda sorvem o calor
Das pedras, e a Primavera repete-se ainda,

Silenciosa como moedas nos cabelos,
Ditongo após ditongo interminavelmente.

Troca um olhar com aquele cuja arte
Se alia À introspecção contra a solidão,

Neste Fevereiro de 1946, pulso normal, nervos em repouso:
Herdeiro de uma perturbação parecida, ultimamente

Cada vez menos convencido dos seus dotes com as palavras,
Ao pé deste prato de azeitonas, deste tinteiro seco.


Lawrence Durrell
Leituras
poemas do inglês
Prefácio e tradução de
João Ferreira Duarte
Relógio d’ Água

sexta-feira, maio 26, 2006

Laura Pels Ferra


Laura Pels Ferra

Galeria ARTFIT
R. Teixeira de Pascoaes, 11 B
Lisboa
de 03-06 a 15-06 2006

terça-feira, maio 23, 2006

Lasse Söderberg

O DESCONHECIDO

Por que penso em anjos,
Porquê em assassinos?
Armo-me acaso contra eles
com esta rosa de papel sem perfume?

Um homem parece acenar-
medo outro lado da rua.
Está vestido de negro
como sombra de si próprio.

Será anjo ou assassino?
Cheira a sangue ou a cinzas?
Na dúvida atravesso a rua
procurando-o com o olhar.

Às vezes gostava de viver
esquecido de todos, menos dos fantasmas.
O desconhecido desapareceu
e nesse mesmo lugar deponho a rosa de papel.


Lasse Söderberg
Em voz alta
Poesia & Performance
Porto 2001
Campo das Letras

Nada de novo na frente ocidental



Nada de novo na frente ocidental chegou-me numa "herança".
Gasto, sem capa, sem data de publicação.


Passam os meses. Êste verão de 1918 é o mais
doloroso e o mais sangrento de todos. Os dias são
como anjos vestidos de azul e ouro, pairando impas-
síveis sôbre o campo da morte. Todos sabemos que
perderemos a guerra. Não se fala muito nisso. Re-
cuamos; depois desta grande ofensiva, não pode-
remos atacar ; já não temos soldados nem munições.
Todavia, a luta continua, continua-se a morrer...
Verão de 1918... Nunca, a vida, na sua miserável
encarnação, nos pareceu tão desejável como agora:
papoulas vermelhas dos prados dos nossos acampa-
mentos de repouso, brilhantes insectos sôbre tufos
de hervas, tardes quentes nos quartos frescos e na
penumbra; árvores negras e misteriosas ao crepús-
culo, estrêlas e águas correntes, sonhos e longos
sonos, ó vida, vida, vida!...

Verão de 1918... Nunca se sofreram em silêncio
tantas dores como na hora de partir para a primeira
linha. Os tão excitantes falsos boatos de armistício
e de paz brotam, sobressaltam os corações e tornam
as partidas mais dolorosas do que nunca.
Verão de 1918... Nunca a vida na frente foi mais
amarga nem mais atroz que durante as horas passa-
das debaixo de fogo, quando as caras lívidas estão
deitadas sôbre a lama e as mãos se crispam num
único protesto: - Não, não, não, ainda não! Ainda
não, pois isto vai acabar!

Verão de 1918... Vento de esperança que acaricia;
os campos devastados pela metralha, febre ardente
da impaciência e da decepção, arrepio doloroso da
morte. Uma pregunta incompreensível:
- Porquê! Porque não se acaba com isto ? E por-
que correm estes boatos anunciando o fim?


Nada de novo na frente ocidental
Erich Maria Remarque
Tradução de Acúrcio Pereira
Quinta edição
Livrarias Aillaud e Bertrand
Lisboa

Camarades

J'appelai le chien, et je m'assis près de la fenêtre. J'aimais
rester ainsi sans parler, et regarder Pat tandis qu'elle s'habillait.
Je n'éprouvais jamais le mystère de la femme éternellement
étrangere autant que durant ces silencieuses allées et venues
devant le miroir, ces essais pensifs, cette descente en soi-même,
ce glissement dans la sagacité inconsciente du sexe. Je conce-
vais mal qu'une femme s’habillât en bavardant et en riant...
etsi elle le faisait, elle manquait du mystère et de la confuse ma-
gie de ce qui fuit toujours. J'aimais les gestes souples et doux de
Pat devant le miroir. C'était merveilleux de la voir saisir ses
cheveux, ou passer soigneusement, avec précaution, le crayon à
sourcils sur ses tempes, comme une fleche. Elle faisait songer
alors à une biche, et à une mince panthère, et aussi à une
amazone avant le combat. Elle oubliait tout ce qui l'entourait,
son visage était sérieux et absorbé, elle le tournait avec un calme
attentif vers son reflet dans le miroir et, tandis qu'elle se pen-
chait tout contre celui-ci, on eĂ»t dit que ce n'était plus un reflet
mais que là-bas, dans le crépuscule de la réalité et des millé-
naires, deux femmes se regardaient dans les yeux, d'un regard
antique et savant, aigu et inquisiteur.Par la fenêtre ouverte,
le souffle frais du soir venait du cime-
tière dans la chambre. Je restais silencieux, je n'avais rien oublié
de l'après-midi, je me souvenais exactement de tout... mais lors-
que je regardais Pat, je sentais que la tristesse sourde qui s'était
enfoncée en moi comme une pierre était sans cesse balayée par
un sauvage espoir, qu'elle se transformait et se mêlait à lui,
étrangement, que tout se confondait, la tristesse, l'espoir, le vent,
la nuit, et cette belle fille entre le miroir brillant et la lumiêre.
Oui, j'eus un instant l'étrange sentiment que tout cela était réel-
lement et três profondément la vie et peut-être même le bon-
heur : l'amour, avec tant de tristesse, de peur et de connais-
sance silencieuse.

 
Les Camarades
Erich Maria Remarque
Traduit de l’allemand par Marcel Stora
Douxième édition
Gallimard
1938

segunda-feira, maio 22, 2006

Le Premier Livre des Petites Filles




NE DÉNICHEZ PAS LES OISEAUX

Henri a trouvé un nid sur un arbuste du jar-
din; il est heureux des cris de joie.
Dans ce nid se trouvent quatre jolis petits
chardonnerets, qui levent la tête et font :
cui! cui! cui!
Henri allonge le bras pour s'emparer du
nid; mais sa grande soeur, qui est près
de lui, l'arrête et lui dit doucement :
- Je t'en prie; mon Riri, laisse ces petits
oiseaux: ils sont si heureux, là, dans leur
doux nid pourquoi venir troubler leur
bonheur? Comprends-tu le chagrin de leur mère,
si, tout à l'heure, en leur apportant de la nourriture,
elle ne les retrouvait plus!
Et eux, ces pauvres petits, que devien-
draient-ils, loin de leurs parents? Ils mour-
raient sans doute.
Je sais que nous en prendrions soin;
mais ce ne serait plus la même chose.
Nulle part les ênfants ne sont aussi heu-
reux qu'auprès de leur mère. Nul ne peut
les aimer autant qu'elle. Il en est de même
des petits oiseaux.
Console-toi, mon cher petit frère, nous
viendrons voir souvent ces oiseaux,
et quand ils seront devenus grands, ils
nous récompenseront de notre bon coeur.
Ils nous égayeront en voltigeant sous nos
yeux; ils charmeront nos oreilles par leur
chant, et, en dévorant chaque jour des
milliers d'insectes, de vers, de chenilles,
ils préserveront nos récoltes.
Si l'on détruisait tous les petits oiseaux,
bientôt nos arbres fruitiers seraint mangés
en fleur et nos blés seraient mangés en
herbe.
Devinez ce qu'a fait Henri...? - Il a pris
le nid... Non, il a remercié sa soeur de son
bon conseil et il l'a embrassée de tout son
coeur.
Ce petit garçon est tout à fait raisonnable.

Le Premier Livre des Petites Filles
Clarisse Juranville
Livrairie Larousse


domingo, maio 21, 2006

Maria Manuela Couto Viana

Rimance do rapaz de veludo

O mar de Afife levou-o
E trouxe-o de volta à praia.
Foram três dias de argaço,
Três noites de verde raiva.
Quando o vulto da Estadeia
Se ergueu das bandas de Espanha,
O vento espalhou a angústia
E a Lua escondeu a cara.
Em sudário de crespelho
(Cor de sangue e viva brasa)
Jaz o rapaz de veludo
À espera da madrugada.
Sobre o olhar ambarino
Cortinas de longa franja;
Sua boca é uma ferida
Amarga flor genciana
- Flor da Senhora das Neves,
A da Sagrada Montanha;
Sobre o seu peito redondo
Fio e coração de prata;
O cabelo é palha milha,
Folhelho na desfolhada.
A onda que o embalou
Aconchegado nas algas
Deu-lhe ao corpo de veludo
Um movimento de dança:
A gota de Gondarém .
Ou verde-gaio da Armada.
Todo o seu corpo macio
Rebrilha como uma chama
Ou espelho de aço fino
Frente ao Sol que se alevanta.
Quem vela e chora esse corpo?
Quem o beija? Quem o canta?
Quem é que o acaricia,
Quem sofregamente o enlaça?
Que vulto o círculo mágico
Silenciosamente traça?
Poetas do mar de Afife
E fandangueiros das Argas,
Boieiras da verde veiga,
Resineiras da Estorranha,
De meio-lenço amarelo,
Cochiné cor de laranja
E o avental vermelho
Com saia de vergastada.
Por isso grito: - Presente!
Como poeta e amada,
Poeta dos mares de Afife,
Amante das noites claras,
A sombra da sua sombra,
A alma da sua alma,
O eco do seu gemido,
O lençol da sua cama.
Viva-morta em mortos-vivos
A responder à chamada
Com o grito da Pieira
De lobos na noite trágica.
Frementes, meus pés desnudos
Pedem terreiro da dança.
Abraçado à concertina,
O Marco Rocha comanda.
Cantava a encomendação
Deolinda da Castelhana,
Enquanto com seus cabelos
Enxugava as minhas lágrimas.
E vi que o Nelson de Covas
Já tinha a madeixa branca
E que o bailador perdera
A sua estranha arrogância,
Que era de velhos e mortos
Essa velada macabra.
Só o rapaz de veludo
Tinha sua face intacta,
Brilhando no amanhecer
Como concha nacarada.
Fugi gritando nas brumas,
Nas dunas de areia branca.
Em leito de camarinhas
Acordei na manhã alta.
Ai, o rapaz de veludo,
Minha noite de ameaça,
O meu punhal de ciúme,
Minha constante lembrança!
Só não sei se foi o mar
Se fui eu quem o matara.


Maria Manuela Couto Viana
COLÓQUIO Letras
número 76 Novembro de 1983

quinta-feira, maio 18, 2006

Gabriela Mistral

DESOLACIÓN

La bruma espesa, eterna, para que olvide dónde
me ha arrojado la mar en su ola de salmuera.
La tierra a la que vine no tiene primavera:
tiene su noche larga que cual madre me esconde.

El viento hace a mi casa su ronda de sollozos
y de alarido, y quiebra, como un cristal, mi grito.
Y en la llanura blanca, de horizonte infinito,
miro morir intensos ocasos dolorosos.

¿A quién podrá llamar la que hasta aquàha venido
si más lejos que ella sólo fueron los muertos?
¡Tan sólo ellos contemplan un mar callado y yerto
crecer entre sus brazos y los brazos queridos!

Los barcos cuyas velas blanquean en el puerto
vienen de tierras donde no están los que son míos;
y traen frutos pálidos, sin la luz de mis huertos,
sus hombres de ojos claros no conocen mis ríos.

Y la interrogación que sube a mi garganta
al mirarlos pasar, me desciende, vencida:
hablan extrañas lenguas y no la conmovida
lengua que en tierras de oro mi vieja madre canta.

Miro bajar la nieve como el polvo en la huesa;
miro crecer la niebla como el agonizante,
y por no enloquecer no encuentro los instantes,
porque la "noche larga" ahora tan solo empieza.

Miro el llano extasiado y recojo su duelo,
que vine para ver los paisajes mortales.
La nieve es el semblante que asoma a mis cristales;
¡siempre será su altura bajando de los cielos!

Siempre ella, silenciosa, como la gran mirada
de Dios sobre mí; siempre su azahar sobre mi casa;
siempre, como el destino que ni mengua ni pasa,
descenderá a cubrirme, terrible y extasiada.


Gabriela Mistral
Desolación, 1922


Cindy II

1988

Chuck Close

segunda-feira, maio 15, 2006

Julie Mehretu


Julie Mehretu

domingo, maio 14, 2006

Outra estrada

Este blogue vem substituir os blogues cometas_e_estrelas e estrelas_e_cometas.
É mais fácil colocar imagens no blogspt que no blogger.
Se desejarem dar a vossa opinião, agradecia.
O template sofrerá alterações de cor o outras à medida que me sinta com tempo e disposição.

E para começar, Mário Cesariny


IX

no país no país no país onde os homens são só até ao joelho
e o joelho que bom é só até à ilharga
conto os meus dias tangerinas brancas
e vejo a noite Cadillac obsceno
a rondar os meus dias tangerinas brancas
para um passeio na estrada Cadillac obsceno.

e no país no país e no país país
onde as lindas lindas raparigas são só até ao pescoço
e o pescoço que bom é só até ao artelho
ao passo que o artelho, de proporções mais nobres,
chega a atingir o cérebro e as flores da cabeça,
recordo os meus amores liames indestrutíveis
e vejo uma panóplia cidadã do mundo
a dormir nos meus braços liames indestrutíveis
para que eu escreva com ela, só até à ilharga,
a grande história de amor só até ao pescoço.

e no pais no pais que engraçado no pais
onde o poeta o poeta é só até à plume
e a plume que bom é só até ao fantasma
ao passo que o fantasma - ora ai está -
não é outro senão a divina criança (prometida)
uso os meus olhos grandes bons e abertos
e vejo a noite (on ne passe pas).

diz que grandeza de alma. Honestos porque
Calafetagem por motivo de obras.
relativamente queda de água
e já agora há muito não é doutra maneira
no pais onde os homens são só até ao joelho
e o joelho que bom está tão barato.

Mário Cesariny
discurso sobre a reabilitação do real quotidiano
manual de prestidigitação
assírio e alvim
1981